Deus, hidroxicloroquina e unicórnios: é impossível demonstrar um negativo?

Quem está habituado à discussão teológica está familiarizado com a afirmação de que seria “impossível demonstrar uma negativa”. Ela é rotineiramente usada por crentes e apologetas para argumentar que, “segundo a lógica”, é impossível dizer que Deus não existe, mesmo na total ausência de evidências da sua existência. Logo se você crê em Deus por fé apenas (sem evidencia), você não estaria sendo irracional ou ilógico. Esse argumentos sempre me soou estranho, mas eu honestamente não havia pensado nele por anos até que me deparei com alguns debates recentes na internet envolvendo a hidroxicloroquina e sua eficácia. A discussão segue mais ou menos assim:

Crítico da hidroxicloroquina – Foi demonstrada a ineficácia da hidroxicloroquina

Defensor da hidroxicloroquina – Não foi demonstrada sua ineficácia, porque é impossível demonstrar uma negativa.

O que para mim o curioso nessa história toda é que a frase de efeito, ou truísmo, usado para corroborar esse raciocínio, de que  “é impossível demonstrar uma negativa” é obviamente falso. É completamente lógico derivar um argumento formal no qual a conclusão é a inexistência de algo. Por exemplo, digamos que estejamos argumentando sobre a existência de unicórnios. Eu poderia montar o seguinte argumento

  • P1 – Se unicórnios existem, deveria haver alguma evidencia deles no registro fóssil.
  • P2 – Não existe evidencia de unicórnios no registro fóssil.
  • Conclusão- Unicórnios não existem.

Esse é um argumento logicamente válido no qual a conclusão (uma negativa) é a consequência lógica das premissas. Proposições negativas são tão demonstráveis quanto proposições positivas.

“Mas, calma lá”, você pode pensar “o registro fóssil é notoriamente incompleto. Espécies podem simplesmente não estar representadas sem que isso signifique que elas nunca existiram”.

Esse argumento remete ao problema da indução, que diz basicamente que nenhuma generalização baseada em observações limitadas pode ser bem sucedida. O exemplo clássico é a ideia de que, não importa quantos cisnes brancos você encontre na natureza, você nunca vai poder dizer que todos os cisnes são brancos, visto que você ainda pode encontrar um cisne negro que refute essa generalização. É importante ressaltar que, enquanto isso não invalida a ideia que proposições negativas são demonstráveis, isso parece levantar um problema sério para premissas que sustentem supostas inexistências.

Porém, nem todas proposições são iguais. Imagine que, ao invés de você estar buscando cisnes negros, você que saber se um gene X está associado com a cor das penas em cisnes negros. Uma prática em genética para entender o funcionamento de um dado gene é exatamente deletar esse gene de um embrião, ou “nocautear” o gene. Se o gene era associado com a cor das penas, você espera que o embrião com o gene nocauteado desenvolva penas brancas (ou não-negras). Se o embrião continua desenvolvendo penas negras, você pode afirmar que o gene X não tem efeito sob a coloração negra das penas. Em forma de argumento formal:

  • P1- Se o gene X determina a cor negra da pena, sua remoção produziria penas sem essa coloração
  • P2- A remoção do gene não afeta a cor da pena
  • Conclusão- O gene X não afeta a cor da pena.

Nesse caso não há ambiguidade alguma: uma vez que o mecanismo é proposto e testado, a ausência de um efeito implica que sua hipótese foi refutada: o mecanismo, como designado, não existe. A diferença é que, quanto mais específica é sua premissa inicial, mais certeza você pode conferir à sua conclusão.

O caso de medicamentos tem mais a ver com o encontrar um mecanismo genético do que buscar unicórnios no registro fóssil: a ação de um remédio depende de que um mecanismo proposto seja verdadeiro, ou potencialmente verdadeiro. O que nos trás à hidroxicloroquina.

Presidente Jair Bolsonaro no jardim do Palácio da Alvorada alimentando as emas e mostrando a caixa do remédio cloroquina para as emas, a mesma caixa que mostrou para os apoiadores no ultimo domingo 19/07. Sérgio Lima/Poder360. 23.07.2020

Querida de três em cada três líderes com tendências autoritárias no continente americano (Trump, Bolsonaro e Maduro), a hidroxicloroquina foi alardeada com um possível tratamento ao COVID19 com base em um estudo feito em células in vitro (em placas de petri; aqui e aqui). Esse estudo demonstrou que a hidroxicloroquina em conjunto com azitromicina era capaz de prevenir a entrada do vírus em células vivas. Em investigações sobre a eficácia de medicamentos, a existência de algum tipo de efeito in vitro é considerado premissa básica para que mais estudos sejam realizados, para observar se um remédio pode ter efeito em seres vivos e, em última analise, humanos. De qualquer maneira, esse estudo deu o pontapé inicial à investigação sobre a eficiência da hidroxicloroquina contra o COVID19, resultando em diversos trabalhos que buscaram encontrar um efeito da droga em seres humanos infectados.

Nada disso seria particularmente problemático se políticos não tivessem tomado para si o papel de decidir, com base em evidencias problemáticas, quais são os tratamentos que devem ser seguidos. O que temos agora é a pior situação possível: enquanto a ciência demonstra a total ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento de COVID19 (ver aqui e aqui, por exemplo), políticos e entusiastas destes mesmos governantes se veem na posição de ter que defender pseudociência por motivos meramente ideológicos. E é nesse momento que vemos as pessoas se agarrarem cada vez mais desesperadamente à argumentos falaciosos para defender sua posição. No caso da hidroxicloroquina, como coloquei anteriormente, surge essa ideia de que seu efeito positivo não pode ser negado, pois seria impossível demonstrar uma negativa. Como já argumentei, essa afirmação é falsa (é incrivelmente simples demonstrar um negativo). Mas seria esse o caso da hidroxicloroquina?

Pra entender isso, precisamos entender um pouco como supostamente a hidroxicloroquina deveria funcionar. Para entrar nas células animais, o coronavírus pode se valer de dois mecanismos. O primeiro é se ligando a receptores de superfície das células do hospedeiro para introduzir o seu material genético diretamente no interior da célula. No segundo mecanismo, o vírus é absorvido por invaginações da membrana celular (endossomos) e invadem o citoplasma celular a partir daí. Esse segundo mecanismos, o realizado por endossomos, necessita de uma proteína funcional chamada catepsina L, que necessita de um meio ácido para funcionar. Nesse contexto, a hidroxicloroquina atua diminuindo a acidez do meio intracelular, impedindo a ação da catepsina L, impedindo a entrada do coronavírus na célula. Para voltar para nossas preposições, podemos descrever a atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

  • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
  • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
  • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar na célula.

Segundo essa lógica – e essa era a lógica que poderíamos aceitar no começo do ano – a hidroxicloroquina (potencialmente) funcionaria no combate a COVID19. Mas o diabo mora nos detalhes. As células usadas inicialmente para demostrar que a hidroxicloroquina funciona in vitro eram culturas de células de rins de macacos. Essas células normalmente apresentam resultados bons o suficiente para a maior parte dos fármacos, porém no caso do coronavírus a coisa parece ser mais complicada. Enquanto é verdade que em células de rim a Catepsina L é essencial para a ação de entrada do vírus, células pulmonares humanas não apresentam essa enzima em grandes quantidades. Ao invés, o mecanismo de entrada do coronavírus na célula é mediada por uma enzima chamada TMPRSS2. O problema é que, diferente da Catepsina L, o funcionamento da TMPRSS2 não é afetado pela alteração da acidez do meio celular. De fato, um estudo recente em células pulmonares humanas demonstrou que a hidroxicloriquina é incapaz de impedir a invasão das células pelo coronavirus. Assim, podemos atualizar a descrição da atuação da hidroxicloroquina da seguinte forma:

  • P1- Para a hidroxicloroquina funcionar no combate a COVID19 ela necessita prevenir a entrada do coronavírus nas celulas pulmonares humanas.
  • P2- Hidroxicloroquina diminui a acidez intracelular, afetando o funcionamento da catepsina L.
  • P3- Catepsina L é usada pelo coronavírus para entrar em células de rim.
  • P4- TMPRSS2, que é usada pelo coronavirus para entrar em células pulmonares, não é afetada pela hidroxicloroquina.

E disso segue que

  • C- Hidroxicloroquina não funciona no combate a COVID19 através do mecanismo proposto.

O que mostra que é plenamente lógico afirmar que a hidroxicloroquina não funciona.

Óbvio que isso não vai satisfazer os defensores da droga, pois inúmeros outros mecanismos podem ser propostos, inclusive mecanismos sem o menor respaldo científico, como foi o caso da “pílula do câncer”, uma droga sem efeito também defendida pelo presidente da república.

Eu acredito que a luta pela hidroxicloroquina vai durar muito mais tempo depois que sua discussão acadêmica estiver de fato encerrada. Estamos entrando em um caminho onde teorias conspiratórias, pseudociência e pseudofilosofia estarão intrinsecamente ligados com a política nacional. Vai ser um caminho tortuoso. Boa sorte a todos nós.

*Para os nerds: sim, eu estou mais que ciente das problematicas sobre o grau de confiabilidade em resultados experimentais e estatísticos. Você pode transformar todos esses argumentos em probabilísticos e chegar a conclusão que a hidroxicloroquina muito provavelmente não funciona (o que é basicamente a mesma, visto que a unica “certeza” que podemos ter em termos científicos são aquelas referentes à altas probabilidades).

Alguns números sobre a reforma da previdência

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Há alguns dias eu divulguei o texto O que não te contaram sobre a Reforma da Previdência que apresentava algumas avaliações sobre os possíveis impactos da nova reforma da previdência. Uma das conclusões desse artigo que mais me chamaram a atenção está representada na figura abaixo, no qual o autor mostra que, se a idade mínima de aposentadoria fosse a proposta pelo governo (65 anos), brasileiros teriam aproximadamente 6 meses de vida saudável após a aposentadoria, enquanto os demais países usados como comparação teriam em média 6 anos.

 

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Porém algumas pessoas levantaram em resposta a esse texto, inclusive na sessão de comentários do artigo, que esta conclusão estava equivocada por se basear na expectativa de vida média com saúde chamada HALE (uma modificação da expectativa média ao nascer). O argumento é que, para saber quanto tempo de vida uma pessoa vai ter aposentada, o que importa é a expectativa de vida média na idade da aposentadoria, e não a no nascimento, que está influenciada por diversos fatores, como por exemplo moralidade infantil e morte na juventude em decorrência de violência.

E sim, de fato o Brasil é um dos países com mortalidade infantil mais elevada, o que parece impactar negativamente a expectativa média ao nascimento. No gráfico abaixo eu mostro a relação entre a expectativa de vida ao nascimento contra a expectativa de vida aos 65 anos (também chamada de expectativa de sobrevida) e é fácil ver que Brasil, Rússia e México tem uma expectativa de sobrevida muito superior a o que é esperado pela sua expectativa de vida ao nascimento.

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Relação entre expectativa de vida (ao nascimento) e expectativa de sobrevida (aos 65 anos). Reta representa uma regressão por quadrados mínimos ignorando os países mais divergentes (Rússia, México e Brasil).

 

Então me parece que, se “o que importa” é de fato a idade ao se aposentar, então deveríamos observar e comparar o Brasil em relação a outros países que tem aposentadoria minima de 65 anos e qual é a taxa de sobrevida média desses países e tirar daí nossas conclusões. Nos gráficos abaixo eu compilei a taxa de sobrevida aos 65 anos dos países da OCDE (os mesmo usados para justificar a proposta do governo) que fixaram a idade mínima de aposentadoria aos 65 anos .

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Expectativa de sobrevida de homens em países da OCDE que apresentam idade mínima de aposentadoria aos 65 anos.

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Expectativa de sobrevida de mulheres em países da OCDE que apresentam idade mínima de aposentadoria aos 65 anos.

Observando esses gráficos podemos observar duas coisas principais. 1- Dentro dos países escolhidos como critério de comparação, o Brasil se encontra entre os com taxa de sobrevida mais baixa. 2- A taxa de sobrevida é de 16.6 anos para homens e 19.7 para mulheres. Ou seja, enquanto é verdade que, uma vez que você se aposente, você vai ter mais de uma década e meia de sobrevida, o Brasil ainda está dentre um dos piores países com regras similares para a aposentadoria.

Se observarmos o caso dos homens (que apresenta muitos mais pontos de comparação, visto que a maioria dos países admite idades distintas para homens e mulheres), vemos que o Brasil se agrupa com países como México e Chile, o que me parece esperado visto que são ambos países latino-americanos com mais similaridades geopolíticas conosco do que os demais países listados. Vale também notar que essas diferenças são pequenas e que, para ambos os sexos, a expectativa de sobrevida brasileira difere da média em 1.25 anos para homens e 1.35 anos para mulheres.

Então, ao menos desse ponto de vista, não parece que a reforma da previdência é particularmente danosa, principalmente de quem já ganha o benefício mínimo. Porém me parece que um dos maiores receios das pessoas está na ideia de que você vai morrer sem se aposentar, e os dados expostos acima não resolvem essa questão. Afinal, se você já se aposentou, você está fora da demografia para qual esse medo é uma realidade. Me parece que uma avaliação mais precisa dessa questão deva ser feita não confrontando expectativas de vida, mas quantas pessoas de fato morrem antes de atingir 65 anos e que antes poderiam se aposentar. Se usarmos a idade média de aposentadoria no brasil como parâmetro (59 anos), vamos que entre a faixa etaria de 55-59 anos e a de 65-69 anos temos uma perda de aproximadamente 2 milhões de homens e 2 milhões de mulheres, o que totaliza 2% da população. Porém, isso é um cenário extremamente pouco conservador, visto que a maioria dos brasileiros já se aposentam por idade e não por tempo de contribuição. Se considerarmos apenas os aposentados por tempo de contribuição (que se aposentam em média com 55 anos), esse valor seria reduzido para menos de 1% da população. Esse valor é alto? Dificil dizer. Obviamente é má notícia para as pessoas diretamente afetadas, mas está longe de ser catastrófico.

Enfim, o que tudo significa? Que a reforma proposta pelo governo é a melhor possível? Provavelmente não. Mas também não significa que todo argumento em favor ou contra ela é automaticamente bom.

 

Olavo de Carvalho fala que procurar Bóson de Higgs é “coisa de QI 12”

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A primeira vez que cruzei com o sr. Olavo de Carvalho foi na era pré-google da internet, antes de entrar na faculdade, quando frequentava sites de mídia alternativa e de movimentos sociais. Na época, comentários no site do Centro de Mídia Independente deram a entender que contribuidores de outro site, o Mídia Sem Mascara, um site de noticias e teorias conspiratórias de direita comandado pelo Sr. Olavo, estavam tentando plantar um comentário no CMI ameaçando o sr. Olavo de morte. A motivação seria ferir a credibilidade do CMI, por algum motivo político que me foge.

Essa foi a primeira vez que vi esse tipo de embate na internet, com facções bem definidas, que se odiavam e usavam de todas as táticas para minar seus oponentes. Obviamente nessa época eu não sabia da existência de criacionistas. Bons tempos…

De qualquer forma, de lá para cá o sr. Olavo parece ter capitalizado em cima da sua influencia intelectual, gerando uma espécie de culto a personalidade que o tem em alta estima. Talvez o ápice da sua popularidade foi ter atraído a atenção de artistas conservadores como Danílo Gentili e Lobão, que parecem o usar como fonte para suas…. err… “teorias” sociológicas. O sr. Olavo se vangloria de grandes feitos, como ter refutado cientistas como Einstein, Darwin e Newton. O Sr. Carvalho também defende que o Sol gira em torno da Terra, que a Pepsi usa fetos para adoçar suas bebidas, que existem evidencias científicas para experiência extra-corpóreas e que existe uma conspiração global comunista. Ouro puro.

Em um vídeo postado recentemente no youtube, Olavo ataca de novo a física moderna, comentando especificamente sobre o Bóson de Higgs.

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=RkpdtZNiv44&”]

No vídeo, um de seus alunos faz uma colocação de que a busca pela Partícula de Deus (o Bóson de Higgs) seria um “delírio cientificista”. O que ele quer dizer exatamente com isso, só deus sabe, o que não parece impedir o sr. Carvalho de opinar a respeito. Segundo ele:

Veja…. Se você tentar encontrar a razão da existência da matéria numa partícula da matéria… é coisa de QI 12.

O que me parece que o sr. Olavo está querendo apontar é que existe uma contradição em tentar explicar toda a existência através de uma partícula da matéria, visto que a partícula seria também material, o que implicaria que toda a matéria não teve sua origem explicada.

Apesar de parecer que o sr. Olavo tem um ponto aqui, existem duas questões que precisam ser elucidadas: 1) o Bóson de Higgs não está procurando explicar a existência da matéria e 2) mesmo se estivesse, a detecção do Bóson seria apenas a corroboração de uma teoria, e essa sim é que apresenta poder explicativo.

O primeiro ponto é o mais simples. O Bóson de Higgs procura explicar o porque as partículas elementares apresentam massa diferente de zero. O Bóson é parte do Modelo Padrão de física de partículas, que descreve a composição da matéria e como seus diferentes constituintes interagem.

Talvez a confusão do sr. Olavo e seu aluno venha do fato de que o Bóson foi chamado de “a Partícula de Deus” em um livro de autoria do físico Dr. Leon M. Lederman. Talvez por suas predisposições religiosas (o sr. Olavo é um cristão convicto) somadas a uma certa quantidade de ignorância sobre o assunto, ambos parecem assumir que se algo tem o nome de “Deus”, então ele deve explicar tudo. O problema desse raciocínio é óbvio, mas para piorar ainda mais, o nome de “Partícula de Deus” foi uma decisão editorial. Segundo o Dr. Lederman:

Porque a Partícula de Deus? Bom, duas razões. Primeiro, o editor não nos deixou chamar de “A Partícula Maldita”, apesar desse ser um título mais adequado dada a sua natureza traiçoeira e o trabalho que ela tem causado. A segunda é que ele [o nome] tem uma conexão com outro livro, um muito mais antigo…

E aqui Lederman está se referindo ao Genesis Bíblico. Então, apesar da confusão ser compreensível, é válido notar que o que importa para a validade de uma empreitada científica é a validade das suas premissas teóricas, e não o maldito nome que associaram a ela.

Agora ao segundo ponto. Vamos assumir que existe uma hipótese que explica a existência de toda a realidade e de todas as propriedades de todas as coisas que nela residem. Agora ainda assumir que essa hipótese prediz que, se ela é verdade e se todos os processos que ela descreve aconteceram, então poderíamos ver um sinal disso na natureza, como na presença de uma partícula elementar qualquer. Podemos colocar isso em um formato silogístico simples:

  • P1- A hipótese X contem modelos e processos.
  • P2- Um desses modelos prevê a existência de uma partícula na natureza

Agora, vamos assumir ainda que

  • P3- Tal partícula existe na natureza

Isso significa que a hipótese X está correta? Bem, não. Essa questão remete ao problema da indução em ciência, na qual não existe um numero finito de observações que possa corroborar qualquer generalização.

Porém, observar a presença de tal partícula definitivamente significa que não podemos dizer que ela é falsa. Isso, em ciência, é o suficiente para constituir uma “hipótese de trabalho”, uma hipótese provisória que será subsequentemente testada e, se todas as tentativas de demonstra-la como sendo falsa falharem (ou se todos as observações forem consistentes com a hipótese), então essa ideia pode se consolidar na ciência com um alto grau de certeza.

O ponto central disso tudo é que, se observamos a partícula, o que contem poder explicativo é a hipótese, e não o fato. Fatos não explicam nada, e apesar de o Olavo colocar esse ponto (de certa forma), ele parece confundir deliberadamente o que é fato e o que é hipótese para fazer uma afirmação verdadeira (“fatos não apresentam poder explicativo”), porém irrelevante fora da representação fantasiosa de o que cientistas realmente fazem. É um festival de bobagem.

Ou, quem sabe, o Olavo acabou de refutar a priori o modelo padrão da física de partículas. Mais uma refutação colossal para a lista dele, eu suponho…

Criacionista da Terra Jovem distorce pesquisa de brasileiros para corroborar o Design Inteligente

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Esse é Dr. Marcos Nogueira Eberlin. Professor da Unicamp. Pesquisador. Membro da Associação Brasileira de Ciência. Criacionista. Eberlin é um daqueles espécimes raros que acredita na literalidade do livro Genesis. O que o torna mais raro ainda é o fato de ser um pesquisador de alto impacto, apresentando um índice de produtividade impressionante para qualquer área de conhecimento acadêmico (mais de 800 artigos publicados, citados mais de mil vezes).

Talvez por ser um daqueles poucos criacionistas com credenciais científicas, Dr. Marcos Ebelin se tornou um garoto propaganda do Design Inteligente, uma versão menos pretensiosa do criacionismo, que apenas busca demonstrar que algum aspecto da realidade (normalmente focando em organismos e estruturas biológicas) foi criado por uma inteligência divina superpoderosa. A despeito disso, Ebelin em todo o seu discurso se assemelha mais a um criacionista terra jovem, tomando como literal os relatos bíblicos da criação especial (mágica) das espécies e na historicidade do dilúvio universal de Noé.

Com o tempo, Dr.Eberlin perdeu toda e qualquer pretensão de sutileza ao defender suas crenças anti-científicas, utilizando-se do facebook como sua principal mídia. Dentre referencias abundantes a sites criacionistas como o answersingenesis.org, podemos encontrar posts como o abaixo:

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De onde saem informações como a de que somos mais similares a porcos do que a chimpanzés (chamados de “chimpas”) me é um mistério. Mas talvez o mais impressionante é o estilo de escrita e argumentação utilizado por um pesquisador que estaria dentre um dos mais produtivos do Brasil.

Recentemente o Dr. Eberlin resolveu argumentar, em uma série de posts em sua página pessoal, que algumas pesquisas desenvolvidas por pesquisadores brasileiros corroborariam o Design Inteligente:

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Nesse post o Dr. Eberlin sugere que a pesquisa referida corroboraria a hipótese de Design Inteligente, e ainda sugere que isso não foi dito no texto do artigo pois tais especulações seriam proibidas dentro da academia (referida pelo Dr. Eberlin como Akademia, talvez como uma referencia à Nomenklatura, um meme usado por outro criacionista brasileiro).

Intrigado com essa afirmação, eu resolvi perguntar diretamente ao principal autor do trabalho, o Dr. Marcus Smolka, se seu trabalho poderia ser interpretado como uma corroboração do Design Inteligente. Abaixo reproduzo na integra a resposta do Dr. Smolka:

Olá Fabio,

Obrigado pela mensagem. Definitivamente NÃO concordo que minha recente publicação seja suporte, em qualquer maneira, para a idéia de DI. O Prof. Eberlin tem o direito de interpretar meu texto do jeito que quiser, porém, me parece que ele esteja fazendo um jogo equivocado de palavras para tentar vender a idéia de DI. Realmente não entendo a lógica dele. Pessoalmente, acho um desfavor a ciência.
Um abraço,
Marcus

Ou seja, nada no resultado reportado na revista Molecular Cell está sustentando a tese criacionista do design inteligente.

Pode parecer picuinha, mas esse caso evidencia o Modus Operandi dos criacionistas do DI: eles não produzem nada que corrobore sua tese, se limitando a canibalizar os esforços alheios, distorcendo os achados e interpretando-os de forma que os beneficie.

Isso não é uma prática honesta, e não é algo que um pesquisador do calibre do Dr. Eberlin deveria se reduzir a fazer. Mas é exatamente isso que ele faz.

Só nos resta perguntar o porque.

Em defesa do CFBio contra o Criacionismo

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Recentemente o Conselho Federal de Biologia (CFBio) publicou uma nota repudiando a PL8099 do Pastor e Deputado (nessa ordem de importância) Marcos Feliciano que tornaria o ensino do Criacionismo obrigatório em escolas. O projeto de Lei em si é um absurdo pelo festival de equívocos e imprecisões. Nesse sentido, o CFBio se adicionou a uma multiplicidade de associações acadêmicas e de ensino no repúdio dos avanços dos projetos criacionistas no Brasil, dentre elas:

Porém o que me chamou mais atenção foi a publicação do Maurício Tuffani no seu blog na Folha. Segundo Tuffani (divulgador que eu respeito bastante), a afirmação do CFBio foi equivocada, principalmente por conta da última frase na seguinte citação:

Ao contrário do que está exposto no PL 8099/2014, a Teoria da Evolução não é uma crença e, portanto, não tem nenhum fundamento dizer que ensinar evolução nas escolas é violar a liberdade de crença. O evolucionismo se baseia em observações fundamentais e em pesquisas científicas que surgiram com experimentos devidamente comprovados. A Evolução das espécies através da seleção natural não é uma teoria, mas uma coleção de fatos amplamente comprovados.

Segundo Tuffani, o texto se contradiz ao dizer que a teoria evolutiva é primeiramente uma teoria e depois que ela não é uma teoria, mas uma coleção de fatos. Além disso:

 Ao negar, em vez de corrigir, a falaciosa afirmação de que “a evolução é só uma teoria”, até mesmo alguns cientistas acabam afirmando uma grande bobagem, a de que a teoria da evolução é cientificamente comprovada. É uma bobagem porque nenhuma teoria científica pode ser comprovada. E a exploração dessa bobagem tem feito sucesso.

Tuffani aqui se refere à tática criacionista de tentar igualar o termo “Teoria” no seu uso cientifico, que é um conjunto de modelos que busca explicar uma coleção de fenômenos, com o seu uso informal, que seria algo como um chute ou uma opinião não corroborada. Segundo os criacionistas, o fato de a Teoria Evolutiva ser chamada de “teoria”, demonstra que ela não é corroborada, logo pode ser descartada em favor de outra teoria qualquer, como o Criacionismo. O Tuffani faz um bom trabalho de evidenciar essa questão, então sugiro ler o post dele para essa questão.

Porém eu não pude deixar de demonstrar espanto com o posicionamento do Tuffani, visto que a visão exposta no site do CFBio é idêntica a o que muitos biólogos e defensores da evolução defendem: de que evolução, além de uma Teoria, é um Fato. Se olharmos por esse lado, o texto do CFBio não é contraditório, pois primeiramente fala sobre a Teoria evolutiva, e depois se refere ao fato (ou fatos) da evolução. Nada de espantoso.

Agora, eu sou completamente contrário a essa ideia: nada pode ser um fato e uma teoria ao mesmo tempo. Já escrevi alguns posts sobre o assunto e pretendo retomar essa discussão algum dia:

Mas o ponto é, essa ideia de que evolução é um fato é extremamente difundida, e não é nem de longe algo que é obviamente errado para a maioria de pesquisadores e leigos que aceitam a evolução.

Eu concordo com Tuffani de que tal visão é equivocada e que o CFBio errou em não abordar o equivoco central na tese criacionista. Porém também compreendo que o CFBio não é uma entidade acadêmica, e que está apenas expressando o que eles acreditam ser uma tese correta, tendo em vista a difusão dessa ideia dentre biólogos.

Em outras palavras: pisaram na bola, mas é compreensível.

Não façam de novo.

Feio.

Deus é o ovo

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Cientificismo, segundo o filosofo Tom Sorell, é a “demasiada valorização da capacidades da ciência natural em comparação com outros ramos do aprendizado ou cultura”. Em outra palavras, é o uso inapropriado da ciência e das teorias científicas para explicar fenômenos que normalmente não são da alçada de uma área de conhecimento específica.

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“Hey, bob. Que tal a gente elaborar um construto social elaborado, com relações complexas com mitos de nossa cultura para que a gente possa, eventualmente, comer um bifão?”

Stephen Jay Gould deu um exemplo disso em seu artigo sobre o “adaptacionismo” nas ciências biológicas, que é a tentativa de explicar todo e qualquer fenômeno nos organismos vivos como sendo produto de seleção natural. Em seu artigo co-autorado por Richard Lewontin entitulado “The Spandrels of San Marco and the Panglossian Paradigm: A Critique of the Adaptationist Programme” de 1979, Gould exemplifica a questão quando critica a sugestão de E. O. Wilson, pai da sociobiologia, de que o consumo de carne humana (canibalismo) em culturas astecas poderia ser um reflexo de uma falta crônica de proteína animal, ignorando toda uma literatura antropológica avaliando o significado e as possíveis causas culturais de tal fenômeno.

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O que acontece com um paleontólogo ao escutar que dinossauros são uma construção social.

 

Usualmente a acusação de “cientifismo” é aplicado ao uso de ciencias naturais (química, física, biologia, geologia, etc) em outras áreas, usualmente humanas. Mas não há nenhum motivo para que o emprego do termo seja assimétrico: muito do chamado “pós-modernimo” é o emprego de técnicas e conceitos provenientes das humanidades, principalmente crítica literária, em outras ciências. Nesses casos a validade de uma teoria científica deixa de ser avaliada de acordo com sua adequação às evidências empíricas (marca fundamental das ciências) e passa a ser avaliado quanto a sua adequação à ideologias e processos sociais. A validade da evolução deixa de ser seu escopo explicativo, mas um julgamento da cultura que permitiu o surgimento dessa teoria (européia, renascentista, branca e machista), e o significado dessa ideia para a sociedade.

Acusações de cientificismo também são comumente usadas por alguns religiosos e teólogos ao acusar cientistas de tentar “opinar” em assuntos religiosos do ponto de vista científico. Por exemplo, Victor Stenger, no seu livro “The Fallacy of Fine-tunning” afirma que

“(…) as observações da ciência e dos nossos sentidos não apenas mostram a ausência de evidencias para [a existência] de Deus mas também dão evidencias para além da qualquer dúvida razoável de que um Deus que tem um papel tão importante e cotidiano no universo como o Deus Judaico-Cristão-Islamico não existe”

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“Meus super-sentidos não detectam a presença de nenhuma entidade omnipontente, omniciente e omnibenevolente no universo. Parece que sou a única divindade solar por aqui mesmo…”

Segundo alguns religiosos, usar a ciência para analisar afirmações sobre o supernatural e o divino são exemplos de cientificismo, visto que é a utilização da ciência (natural, normalmente) em uma área na qual ela não se adequa, que seria a teologia.

Visto que a acusação de cientificismo é tão rotineiramente utilizada por intelectuais religiosos para defender sua fé de intelectuais ateus, me soa particularmente irônica a utilização de achados científicos como base para afirmações de fé. Um exemplo claro disso é no chamado “Argumento Cosmológico para a Existência de Deus”. O argumento tem a seguinte forma:

  • [P1]- Tudo que que começa a existir tem uma causa
  • [P2]- O universo começou a existir
  • [C]- o universo tem uma causa (que é Deus, por sinal)

A validade da conclusão depende da validade das premissas, e o que é usualmente utilizado para corroborar a segunda premissa, é a teoria do Big-Bang, que afirma que o universo visível atual teve uma origem em um ponto específico de nosso passado, aproximadamente a 15 bilhões de anos atrás.

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Bom, acho que isso explica o período inicial de inflação cósmica…

 

Obviamente eu não estou sugerindo que teólogos não deveriam se basear em ciência e fatos conhecidos para tirar suas conclusões sobre o universo. Porém essa empreitada é fútil quando todos os argumentos baseados em ciência são necessariamente provisórios e tentativos, o que está em claro desacordo com a necessidade do teólogo de se comprometer com uma conclusão específica.

Robert M. Price brilhantemente exemplificou essa questão durante durante um debate com o filosofo e apologeta cristão William Lane Craig sobre a existência da figura histórica de Jesus Cristo:

Historiadores críticos não estão engajando em epistemologia metafísica como se eles pudessem saltar em uma máquina do tempo e pontificar “‘A’ não aconteceu, ‘B’ sim!”. De novo, Craig e seus irmãos estão apenas projetando. São eles, e não os historiadores críticos que querem poder apontar para resultados absolutos. Imagine um credo “Se tu confessar da tua própria boca ao Senhor Jesus e acreditar em seu coração que Deus provavelmente ressuscitou-o dos mortos, tu provavelmente serás salvo”. Na cara de quem está a piada aqui?

No caso do Big Bang e do argumento cosmológico, a piada é mais óbvia ainda. Quando em 1951 o papa Pio XVII quis alardear que o Big Bang era comprovação de que o catolicismo era verdade (justamente pelo Argumento Cosmológico), Georges Lemaître, o primeiro proponente desse modelo cosmologico e padre o impediu, afirmando que sua teoria era neutra a respeito da existência de Deus. E ele obviamente deveria ter que fazer isso. Caso o contrário, se Deus fosse uma conclusão com base em um modelo científico, se tal modelo cai, Deus cai também. E visto que Lemaître (assim como qualquer outro católico e cristão no mundo) provavelmente não estava preparado para abandonar a crença em um Deus apenas pela refutação de uma teoria científica, ele argumentou contra a associação de ambos. Defensores do Design Inteligente e criacionistas não tem essa clareza: uma vez que suas hipóteses foram refutadas (e todas elas foram), tudo o que lhes resta é negar a ciência. É o cientificismo levando ao anti-intelectualismo.

Mas caso nada disso tenha ficado claro, aqui vai um exemplo mais simples: sabe aquela história de que em uma semana os médicos e pesquisadores afirmam que ovo faz mal, e em outra eles afirmam que ele faz bem, nunca chegando a um consenso, se contradizendo e refutando um ao outro recorrentemente?

Imagina que Deus é o ovo.

O lado negro de compartilhar videos de animais fofos na internet

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[AVISO: esse post contem imagens fortes]

Quem não gosta de compartilhar animais fofos na internet? Os gatos são inegavelmente os reis da rede, mas outras espécies menos comuns recentemente ganharam popularidade. Filhotes de lontra abandonadas? Quase 8 milhões de visualizações. Quatis sonolentos sendo acariaciados? Quase 6 milhões.

Talvez o grande apelo desses videos seja o fato de que as pessoas são expostas a animais que antes eram desconhecidos, e ficam surpresos em como esses animais podem ser belos, inteligentes e, sem sombra de duvida, fofos. E que mal há em dividir um pouco de fofisse animal na rede?

Segundo o artigo de Nekaris e colaboradores publicado na PLOS em 2013, talvez a atividade não seja tão inocente assim.

Os autores analisaram um video de um Loris recebendo cócegas e aparentemente gostando da experiência. Um loris, para quem não sabe (ver foto acima), é um tipo de primata associado à lêmures. Recebem muitas vezes a alcunha “lentos” por se movimentarem de forma pausada por entre as árvores. Assim como grandes primatas (como chimpanzés, gorilas e humanos) não possuem rabos, mas isso é uma convergência evolutiva, ou seja, não é explicado por ancestralidade comum. Diferente da maioria dos mamíferos, os loris apresentam um arma muito estranha: uma glândula de veneno no sovaco. A secreção dessa glândula, quando misturada com saliva, confere aos loris uma mordida venenosa, usada para caçar pequenas presas e para defesa de predadores e competidores.

 

De qualquer forma, por motivos que me fogem completamente, esse video foi visualizado um numero gigantesco de vezes, ultrapassando a marca de 12 milhões de visualizações, se somarmos todas as versões do video.

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Tabela 1 de Nekaris e colaboradores (2013) mostrando o total de visualizações do video do Loris em diversos canais do YouTube e Vimeo.

Ok, e qual é o problema? Os autores apontam que nesses videos, os principais tipos de comentários se referiam sobre o como os animais eram bonitinhos, sobre o que ele estava fazendo e sobre como o comentador queria um daqueles animais como bicho de estimação. E é nesse ultimo que mora o perigo.

Todas as espécies de Loris se encontram ameaçadas de extinção por devastação de áreas naturais, caça e, obviamente, por tráfico de animais para servirem de bichos de estimação e ornamentais. Visto que a venda dessas espécies é considerada ilegal em grande parte das nações desenvolvidas, é muito provável que a presença desses animais nas mãos de particulares implica na extração de animais da natureza para satisfazer nossa necessidade por fofura. Mas não tem nada de fofo no que os animais passam para virarem “pets”.

O artigo de Nekaris e colaboradores citam alguns exemplos horríveis: Em Taiwan, em 1993, uma remessa de losises pigmeus confiscadas teve uma taxa de mortalidade de 80%. Em Praga, entre 1990 e 2000, todos os lorises pigmeus confiscados entrando no aeroporto morreram durante a quarentena.

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Na esquerda, uma remessa confiscada na Thailandia de lorises pigmeus (exóticos à região). Na direita, uma remessa de animais (todos mortos) confiscada pelas autoridades da Indonésia de Lorises da Sumatra, a espécie mais ameaçada. Foto originalmente publicadas em Nekaris e colaboradores (2013).

E, como se não bastasse, animais que eventualmente sobrevivem a experiência tem que passar por mais um ritual bárbaro: a remoção de seus dentes incisivos, para impedir o envenenamento de seus futuros donos.

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Sim, isso é um cortador de unhas

A remoção dos dentes, além de ser potencialmente letal (até 34% de mortalidade em um dos casos relatados pelos autores), impede que os sobreviventes sejam reintroduzidos na natureza.

Mas o que isso tudo tem a ver com videos na internet? É bem simples: se esses animais são o produto do trafego trafico de animais, esses videos são a propaganda que expõem esses animais a novos mercados consumidores, em escala mundial. E o anuncio por parte de cerca de de 10% dos comentadores de que gostariam de ter esse animais pode ser um incentivo a mais para traficantes de animais intensificarem a exploração de populações nativas.

Obviamente isso não significa que tais videos devam ser removidos da rede. Isso é quase que efetivamente impossível. Mas os autores do artigo argumentam que campanhas de conscientização podem reverter a opinião pública, e transformar uma “propaganda gratis” para traficantes de animais, em campanha de conscientização contra a a exploração desses animais.

Então, da próxima vez que você ver uma foto ou video de um animal silvestre fofo, lembre dos loris:

Traffic - In cage

e se pergunte: De onde esse animal vem? Ele é ameaçado de extinção? Ele é traficado ilegalmente?

E se alguma das ultimas perguntas for sim, talvez, por mais fofo que esses animais sejam, o lugar deles é na natureza ou, na pior das hipóteses, no zoológico*.

 

*Ver aqui e aqui para posts prévios discutindo sobre o assunto.

Em tempos de FlaXFlu eleitoral…

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Essa discussão entre direita e esquerda sempre me foi árida por um motivo simples: ambas as posições nunca me foram definidas de forma satisfatória pra mim.

Lembro que já escutei que, por definição, direita é situação e esquerda é oposição, o que faria com que a ditadura comunista stalinista fosse de direita e seus opositores capitalistas, como o pai da Ayn Rand, fossem de esquerda. Isso pode até ser verdade, mas não indica nada do que a direita ou esquerda “acreditam”. É só um sinônimo para uma outra coisa.

Uma definição muito utilizada hoje em dia me parece a centrada no tamanho do estado: gente que defende estado mínimo seria de direita e gente que defende estado grande seria de esquerda. Isso colocaria todas as ditaduras na ala da esquerda, visto que seria necessário um estado forte para controlar todas as facetas de uma sociedade. Mas essa definição também parece ter problemas: no caso dos Estados Unidos, os Republicanos, normalmente associados à direita, defende um estado mínimo na economia, mas interferência estatal, na forma de leis, na vida privada. Isso mostra que existem formas diferentes de se defender o estado mínimo. Essa tensão levou a proposição de uma nova dimensão no espectro político que diz respeito ao tamanho do estado: de um lado temos totalitários (ditaduras) e do outro libertários, que defendem estado mínimo em todas as esferas políticas, inclusive a social.

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Diagrama de Nolan mostrando os espectros políticos: Esquerda-Direita e Totalistarismo-Anarquia.

Mas essa proposta não parece muito satisfatória: inevitavelmente nossos partidos e políticos parece adotar duas posturas distintas (esquerda X direita). Libertários e totalitaristas costumam ser posições um tanto minoritárias (a ultima mais do que a primeira) que acabam se aliando a um lado ou a outro.

Mas então fica a pergunta: o que diabos seriam a esquerda e a direita?

As melhores definições que já vi são as seguintes:

  • Direita: visão ou posição política que aceita a hierarquia social ou desigualdade social como inevitável, natural, normal, ou desejável
  • Esquerda: visão ou posição política que aceita ou suporta igualdade social

Nada inovador até aqui. Tirei da wikipédia. Mas me parece interessante mostrar que essa definição é objetiva e elegante. Segundo essa definição, o Nazismo era de direita, pois defendia as desigualdades inerentes às raças e o Stalinismo era de esquerda pois defendia a igualdade dentre as pessoas e o comunismo como meta.

Mas essas definições ainda não parecem inteiramente satisfatórias também. Por exemplo, alguém pode ser de direita por defender que existem diferentes castas sociais indicadas por Deus, ou por acreditar que as desigualdades sociais são geradas por um sistema natural social que vai privilegiar uns indivíduos em detrimento de outros. São duas posições que diferem porque tem motivos diferentes pelo qual aceitam as desiguales sociais. Serem ambas “de direita” não indicam muito além disso.

Nesse ponto vejo muita gente fazendo generalizações apressadas sobre as crenças das pessoas baseadas na simples percepção de onde tal pessoa cai nesse espectro político, e isso é uma falácia. Alguem pode ser um comunista porque defende o bolsa família, mas não necessariamente. O que temos que fazer é perguntar qual é o motivo pelos quais as pessoas tem a sua visão política e não outras, e temos que estar prontos para dar os nossos motivos.

E apesar do grande envolvimento das pessoas nas mídias sociais nessa ultima campanha eleitoral, eu vi pouquíssimas pessoas prontas para defender racionalmente suas posições políticas, e isso tem que mudar.

Chega de Fla X Flu ideológico.

P.S: esse post foi escrito sem nenhum tipo de pesquisa prévia e sob a influencia de fortes anti-gripais.

Lugar de tigre é no zoológico

Recentemente tivemos uma fatalidade. Um garoto, aparentemente estimulado por seu pai, ultrapassou a grade de segurança de um zoológico no município de Cascavel, no Paraná, e foi atacado por um tigre. A lesão resultou na amputação do braço direito do menino e, atualmente, o pai pode responder por lesão grave. Isso foi documentado por videos e fotos. Se você tiver estômago, acredito que consiga achar as imagens e vídeos por si só.

Como de costume, esse evento foi o suficiente para despertar os trolls da internet, que formaram dois grupos de opiniões: os primeiros eram favoráveis à eutanásia do animal, que obviamente seria perigoso para o contato humano; o segundo grupo clamava pela cabeça do pai, ao mesmo tempo que condenava o zoológico por manter um animal selvagem em cativeiro.

Não vou criticar longamente a primeira posição. Afinal, essas pessoas parecem acreditar que, assim como cachorros, um tigre seria um animal domesticado que deveria estar capacitado à andar entre pessoas, sendo assim a eutanásia justificada. A estupidez dessa posição me é evidente. Vamos a segunda posição.

Tigre: uma espécie ameaçada

Há cerca de um século, tínhamos aproximadamente 100.000 tigres selvagens no mundo. Hoje esse numero não passa de 3.200 espécimes, uma redução de mais de 97% da sua população nativa. As principais pressões em populações naturais são caça por pele, perda de habitat e  morte por vingança: devido a redução de seu habitat natural, tigres enfrentam escassez de alimentos, o que muitas vezes os força a atacar gado e outros animais domésticos. Isso, por sua vez força moradores locais a matar o predador para preservar seu rebanho, algo muito similar ao que ocorre com onças no brasil.

Parece horrível, e é. Mas o ponto é que tudo isso ocorre na natureza. Uma das grandes iluminações que qualquer movimento conservacionista deve ter é que tais pressões em populações naturais ocorrem, principalmente, por um motivo simples são também fortemente influenciadas por dois motivos simples: crescente população humana e desigualdade de renda. Não são apenas populações ricas que vivem em enclaves de matas, cortando ilegalmente madeira para plantar beterrabas e criar carneiros. Pois é… o Capitão Planeta estava errado.*

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– Vamos, crianças, vamos descer o cacete naqueles pobres. Pela natureza!

 

O meu ponto é: enquanto tivermos uma população crescente e desigualdade de renda brutal, teremos problemas ambientais, especificamente os do tipo que causam o declínio de populações de mamíferos de grande porte, como o tigre.

Agora, vamos ser honestos: quais as chances disso acontecer em um tempo viável para salvar populações naturais que às vezes tem menos de 200 animais na natureza? Pois é… foi o que eu pensei.

Conservação ex situ

Conservação ex situ é, resumidamente, a conservação de espécies biológicas fora de seu habitat natural (ex: fora, situ: sitio, local). Isso normalmente significa a conservação de animais em zoológicos, aquários e santuários e de plantas em jardins botânicos. Muitas vezes essas instituições tem programas específicos de manutenção de variação genética, por cruzamentos preferenciais, de forma a manter a viabilidade das espécies, mesmo em cativeiro. Isso é feito através da manutenção de registros minuciosos das relações de parentesco de animais em cativeiros ao nível global, que permite a realização de trocas e cruzamentos em cativeiro de maneira informada. Isso é necessário, pois na eventualidade de extinções locais, tais populações podem ser reestabelecidas a partir de estoques em cativeiro. Não é a melhor opção, não é a mais usada, mas é uma possibilidade.

Uma avaliação desses registros também demonstra um detalhe: a grande maioria dos animais em cativeiros nessas instituições não advém da natureza, mas sim de programas de cruzamentos que já estão em vigor ha décadas. Ou seja, com exceção de animais que estão inviabilizados de serem reintroduzidos por diversos motivos como doenças, injúrias ou pelo simples fato de não sabermos de onde eles vieram, de modelo geral, animais em cativeiro não poderia ser liberados sem um programa muito especifico e custoso de reintrodução. Eles não podem e nem devem ser liberados na natureza: além de despreparados para cuidar da própria subsistência, por estarem mais habituados à presença de humanos, eles podem se tornar um perigo real para populações locais, como já acontece nos Estados Unidos com ursos. Esses animais precisam ser abatidos, e tigres liberados na natureza de forma displicente também teriam que ser.

Defensores dos animais X prudência

Uma das coisas que mais me incomoda em alguns dos autoproclamados “defensores dos animais” é sua ausência completa de pragmatismo: testes em animais é errado, mas nenhuma alternativa racional é proposta (com ênfase no “racional”); zoológicos são antros de exploração animal e deveriam ser fechados, mesmo que os ambientes naturais estejam degradados, e que populações naturais quase com certeza estejam fadadas à extinção. Acho que o melhor exemplo disso foi o recente post de nossa “defensora dos animais” favorita, Luisa Mell:

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Eu não duvido por um momento que pessoas como a Luisa Mell agem por causa de sua empatia para com animais não-humanos, algo que considero louvável. Agora o que não é louvável é a utilização de desinformação para manipular os sentimentos das pessoas para fortalecer o seu próprio ponto de vista, no caso, anti-capitalista. De boas intenções, o inferno está cheio. E o que sobra em qualquer movimento social, incluindo no movimento de defesa dos animais, são boas intenções.

Não, Luisa, esses animais não foram retirado de seu meio-ambiente. Eles nasceram em cativeiro e sua presença em zoológicos e outros centros de conservação ex situ se torna cada vez mais necessário em um mundo de crescente degradação ambiental e desigualdade social. Zoológicos precisam de mais recursos para tratar bem de seus animais e a cobrança de ingressos é um jeito de faze-lo. Abusos e maus-tratos devem ser denunciados, mas isso não advoga contra zoológicos, mas em favor de uma administração correta e bem fiscalizada.

O mundo não é perfeito para humanos, para ursos polares ou para tigres. Lide com isso.

* Devido a criticas, modifiquei essa passagem, apesar de achar que não muda a mensagem central do texto. Para maiores informações e referencias, checar o comentário do Luiz Pires no facebook sobre o assunto.

A tese do ateísmo universitário

Calouros...
Calouros… ¬¬

Nunca fui grande fã do termo “neo-ateísmo”. Inicialmente usado para se referir aos ateus que resolviam emitir suas opiniões sobre religiões e dogmas, em distinção aos “antigos” ateus, calmos, pacatos e respeitosos (um mito, na minha opinião), esse termo sempre me pareceu carecer de conteúdo informativo sobre o que aqueles que eram assim classificados de fato acreditam. Sempre me pareceu ser muito mais uma designação sobre forma do que sobre conteúdo, visto que o que contava para ser classificado como “neo-ateu” era simplesmente o quão vocal, estridente ou agressivo alguém era ao colocar suas opiniões. Não ajudava em nada o fato de muitos críticos dos “neo-ateus” ora usarem o termo de forma pejorativa contra aqueles que feriam sentimentos religiosos, ora criticarem a total ausência de diferença em relação a todos os outros ateus ao longo da história da humanidade, como quem diz que os ateus atuais se julgam inovadores, enquanto na verdade não são. Por esses e outros motivos, eu sempre fico de olho quando alguém parece dar algum tipo de definição sobre os “neo-ateus”. O filosofo David V. Johnson resolveu propor uma tese que ele considerou ser o conceito unificador por trás das ideias de escritores tidos como os lideres do movimento “neo-ateísta”, especificamente Christopher Hitchens, Sam Harris e Richard Dawkins. A tese é deveras simples e pode ser resumida sucintamente da seguinte forma:

“O mundo seria melhor sem religião”

O que me parece uma descrição realmente precisa. Todos os autores acima citados, assim como muitos ateus que conheço, de fato parecem subscrever à ideia de que a crença teísta não apenas é falsa, mas também danosa. Não é de admirar que o estopim de tal movimento foram os atentados de 11 de setembro de 2001, uma das expressões mais diretas dos potenciais riscos do fundamentalismo religioso. Desde então, o movimento neo-ateu parece ter se focado não apenas na falsidade das idéias e dogmas religiosos, mas também na avaliação moral e ética de crenças religiosas. Por exemplo: Dawkins diz que associar ideologias religiosas a crianças é abuso, Harris critica religiosos moderados por acobertar fundamentalistas e Hitchens critica a moralidade do deus do antigo testamento. Um mundo sem tudo isso seria melhor. Johnson, porém, não vê essa tese como sendo válida. Ele apelida ela, jocosamente, de “A tese do ateísmo universitário” (the undergraduate atheist thesis). Segundo ele, para comprovar essa tese, seria necessário

“que nós somemos todas as boas e más consequências de os seres humanos serem religiosos do começo ao fim da história da humanidade e todas as boas e más consequências de humanos não serem religiosos.”

Ou seja, para que a tese seja em princípio corroborada, seria necessária a computação de todos os eventuais males e benefícios de ambas visões de mundo (com e sem religião) e escolher a que soma o maior bem e/ou o menor mal e voilàO ponto de Johnson com esse exercício é mostrar que tal computação seria extremamente complicada de ser realizada e que, então, a empreitada como um todo é uma farsa. Se o mundo seria melhor ou não sem religião seria, segundo a proposta de Johnson, um mistério.

Eu tenho um problema com essa argumentação. Parece que Johnson acredita que a “tese do ateísmo universitário”, como ele chama, é um exercício metafísico, em que criamos mentalmente mundos e avaliamos cenários hipotéticos, erradicando religião não apenas do presente, mas também do passado. Essa é uma idéia absurda. É como argumentar que se alguém não gosta do sabor de rabanetes, ele tem que avaliar se toda a sua vida teria sido melhor sem a fábula da Rapunzel para concluir que tirar rabanetes de sua vida é realmente algo desejável. Similarmente, Johnson parece acreditar que o objetivo dos neo-ateus é construir uma máquina do tempo, voltar ao passado e, sei lá, matar Jesus… ou impedir que ele fosse morto… algo assim.

Se essa forma de pensamento fosse válida, dificilmente teríamos abandonado escravidão ou mesmo tentaríamos abandonar formas de abuso social e econômico, como evidenciado nesse clip do comediante do Luis CK:

[youtube_sc url=”https://www.youtube.com/watch?v=UVTXFsHYLKA”]

Afinal, se a lógica é válida, então a existências das pirâmides do Egito, ou até mesmo do Judaísmo (e por consequência, o Cristianismo e Islãm) deveriam ser levados em conta quando você avalia se escravidão é bom ou não. Ou seja, se você acha que cristianismo faz mais bem do que mal, você nunca poderia ser contra escravidão.

Isso é um exagero, obviamente, para mostrar o absurdo da tese (reductio ad absurdum). No fim, Johnson está errado. A tese neo-ateísta não é que o mundo seria melhor se religião nunca tivesse existido. Talvez ela seja melhor expressada pela ideia de que o mundo está pronto para abandonar as amarras desnecessárias que tornam a religião necessária. E se alguém disser que não há nada de “neo” nesse ateísmo, estará correto:

A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião.

A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.

A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola.

A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote.

 Karl Marx, 1844

E se você me perguntar, taí uma tese e tanto.