A porta

Eu sou feita de madeira

Madeira, matéria morta

Mas não há coisa no mundo

Mais viva do que uma porta.

 

(…)

Eu fecho a frente da casa

Fecho a frente do quartel

Fecho tudo nesse mundo

Só vivo aberta no céu!

(Vinícius de Moraes)

 

Tem tempo que a porta da casa onde moro se deteriorou bastante e estava precisando trocá-la. Não imaginava o trabalho que é trocar uma porta. O serviço bastante sujo começou ontem, tiramos a porta antiga, amassadinha, e estávamos aguardando a entrega da nova porta. Ela não veio. Passei a noite sem porta em casa num misto de protetor das minhas coisas e medroso. Se fechava a porta do quarto ficava com medo de alguém entrar e levar minhas coisas. Se a deixava aberta temia por mim mesmo. Foi uma noite tensa.

o que restou da minha porta, snif

o que restou da minha porta, snif

Por que será que tanto me afligiu essa situação? Somos bichos territoriais! Essa noite um desses fenótipos estendidos que criamos para expressar nossa natureza humana mais animal me faltou. Meu território estava desprotegido, sem porta. Nosso DNA, atualmente considerado o principal nível de atuação da seleção natural, é simplesmente um codificador de proteínas e peptídeos. Teoricamente ele nada diz sobre açúcares, gorduras ou qualquer outra molécula do mundo que integra seres vivos, que dirá seus comportamentos ou conseqüências dele. A teoria do fenótipo estendido, proposta pelo inglês Richard Dawkins, sugere que, apesar do DNA só codificar proteínas, tudo em nossas vidas está definido nos genes. É que as proteínas advindas do DNA podem afetar a formação de outras moléculas orgânicas como gorduras, açúcares ou outras moléculas, podem ainda definir um comportamento e até efeitos desse comportamento no ambiente. Seus exemplos preferidos de fenótipo estendido no livro são os cupinzeiros e as barragens dos castores. O meu hoje é a minha porta. Tudo bem, essa teoria do Richard Dawkins é bem determinista e coloca os genes como o centro de tudo, aliás, como tudo o que ele escreve. Mas hoje essa porta está me fazendo falta como uma enzima digestiva!

O território é uma forma de nós, animais, resolvermos em parte o problema da competição. Pegamos recursos escassos como área ideal para se viver, alimento, talvez até a nossa parceira sexual, guardamos naquele território e pronto, estamos seguros. Às vezes esses recursos podem ser tão raros e valiosos que outros bichos nas cercanias tentam tomá-los de nós. Daí nós guardamos melhor e melhor nossos recursos. Só nas cercanias aqui de casa hoje, mobilizado por esse tema, me saltaram aos olhos o tanto que nossa vida é pautada pela territorialidade. Na esquina tem uma revenda de portões e cercas de madeira, em frente um chaveiro, na outra rua uma empresa de seguranças e nos fundos uma academia que dá aulas de Muay Thai (!?!).

Uma aluna minha, a Larissa, está trabalhando com comportamento canino. Outro dia estávamos conversando sobre como evitar que um cão ataque pessoas ou outros cães. Imediatamente sugerimos tirá-lo de casa e fazer as apresentações na rua. Isso surpreende muita gente, mas é bastante lógico na verdade. Imagine-se em sua casa quando de repente aparece um cara de 1,90m com bíceps da grossura das suas coxas e uma cara meio brava. Me deparei com esse cara na academia outro dia e isso não me surpreendeu muito. A situação é totalmente diferente. Para o cachorro também. Cães, como nós humanos, são animais territoriais.

No momento em que digito esse final ouço o ruidinho áspero do concreto sendo assentado nas margens da minha porta nova e sinto o cheiro tão peculiar do cimento úmido. A casa está uma zona, toda suja, ainda terei que esperar o pintor reparar os estragos na pintura, mas essa noite dormirei melhor. Meu genótipo voltou a se expressar por inteiro, tenho uma porta novamente.

Discussão - 9 comentários

  1. Raquel disse:

    Olá!!!
    Estou aqui apenas para comentar que o seu blog é muito bom! Sou estudante do 3º ano de Biologia da Unesp, Campus de Botucatu, e acho demais essa proximidade que vc dá entre ciência e o cotidiano das pessoas!
    Parabéns! Você ganhou uma nova frequentadora do blog! =)

  2. Larissa Soares disse:

    Oi Bessa,
    Adorei o post, muito legal as suas comparações com o nosso dia-a-dia, facilita o entendimento...
    Legal ter citado o meu trabalho com cães, para mostrar um pouquinho que nossos amiguinhos de quatro patas tem comportamentos e capacidades muito parecidas com as nossas, podendo ser até comparadas...
    Aproveitando a ocasião. Continue sendo esse grande professor e orientador que vc é... vc me fez gostar mais ainda de zoo. de vertebrados e a gostar do meu trabalho com os cães tb... vc tem uma ótima didática e atenção com os alunos...
    BJUXXX

  3. Rafael [RNAm] disse:

    Bessa,
    Estava procurando material de fenótipo estendido e caí aqui. Muito legal mesmo este post. Citarei, ok?
    Abraço

  4. maroleps disse:

    Há Porta?
    Desço ao esôfago para verificar espectros vagidos,
    Que vocês insistem em analisar estéticamente.
    Rotunda memória escorre pegajosa e turva.
    Revejo o vaso de flores, desajeitado, como sempre,
    Chamam o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito FEDERAL.
    Curiosamente,
    Arrombaram a porta e encontram-me morto.
    Entro à esquerda e vou direto a casa cinco desta sene
    Conjunto Um – Hum!
    Sou Eu, que Era... geológico!
    Um rosto deformado pelo acúmulo dos anos,
    Fagocitado pelo conformismo social,
    Oficial do Dia,
    Obedeço triste,
    Lírio decaído como um jacinto flácido.
    Quanto mais identifico-me com o Outro
    Mais preciso estigmatizá-lo,
    Sabbadini disse: Sim Salabin!
    “Para los animales depredadores de la selva, la regla de vida es matar o ser matado.
    Para el ser humano depredados em la sociedad, la regla de vida es estigmatizar o ser estigmatizado”
    Agora paro!
    E conservo a esperança em banho-maria.
    Dentro de mim, minhas verdades são reinventadas
    Reeditadas, a toda hora, à toda
    Masmorra sombria numa noite escura
    Cheia, Ceia e Feia...
    Importa?

  5. Sr. Bhingo disse:

    A porta simbolicamente separa o mundo externo do interno. As nossas fantasias e segredos ou, quero dizer, fadas e belzebu habitam o mundo psíquico. Quem de nós não olhou um buraco de fechadura para saber o que se passa do outro lado? A Globo bem explora essa nossa curiosidade (BBB). E qual foi o nosso medo na infância de abrir a porta que leva ao quarto escuro? Sendo assim, o melhor é rebocar o que nos assusta. Fecha logo essa porta! Eu quero dormir.

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