A andorinha decepcionada

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Naquela manhã, no consultório psicanalítico.

 

A doutora estava mostrando à nova secretária como funcionava o sistema de marcação de consultas. Era um mau começo de dia para a psicanalista, que estava novamente às voltas com uma secretária por treinar. Sua última funcionária pedira demissão depois de ter se identificado com um caranguejo ermitão e ido morar sozinha numa casinha simples no alto de uma montanha.

A primeira cliente do dia chegou ainda bem cedo. Era uma andorinha do barranco que vinha sempre passar as férias de inverno pelas bandas do Brasil.

– Bom dia, dona Riparia. – Acolheu-a a doutora. – quer ir se acomodando enquanto eu termino com a secretária aqui?

Ao entrar no consultório a doutora já havia percebido o semblante mal-humorado da andorinha. – Como foi de viagem? – Perguntou a analista tentando ser simpática.

– Longa, cansativa e monótona, doutora. – A avezinha migrava até 11 mil km todos os anos dos Estados Unidos até o Pantanal.

– É, estou vendo que a senhorita não está nada bem hoje. O que foi que houve? – A andorinha não conseguia ver direito a doutora na contra-luz do abajur de chão.

– Ah, doutora, vim invernar com ódio no coração. Ódio da minha mãezinha.

– Que sentimento mais triste. E o que levou uma filha tão dedicada a se sentir assim? Saturou-se de ajudar seus pais a cuidar de seus irmãos? – A doutora bem sabia que a mães e filhas sempre tinham seus atritos.

– Nada disso, não aguento mais morar com meus pais. Em casa só sirvo de babá. Não tenho uma vida minha própria! A senhora acredita que na última ninhada mamãe colocou oito ovos e quem teve de chocar e depois dar de comer a todos fui quase sempre eu? – Piava a andorinha num tom melancólico e irritado.

– E nos anos anteriores não foi sempre assim, dona Riparia?

– Agora é diferente, tudo mudou. – Respondeu a andorinha reticente.

– Minha amiga, sinto que você não quer me contar tudo o que aconteceu. Deste jeito não temos mais o que conversar hoje e terei que encerrar a sessão. – Disse a terapeuta com voz doce, mas assertiva.

A andorinha deu um longo suspiro e baixou os olhos. – Doutora, desconfio que minha mãe anda traindo meu pai. Sabe estes oito pretensos irmãos de que cuidei? Pois alguns ali não tinham nada a ver comigo ou com papai. Eram criaturinhas estranhas, intransigentes e apressadas. Não me deixavam em paz um minuto e o pior é que eu tenho certeza de que nem meus irmãos mesmo eles eram. Ai que ódio! Como eu sou burra, devia ter deixado eles morrerem de fome ou minha mãe que os alimentasse. Depois que ela começou a demorar em suas saídas do ninho, receber visitas. Nunca imaginei que minha própria mãe… Humpf! E pior é que o bobo do meu pai não desconfiou de nada. Mas comigo que ela não irá mais poder contar, ela que arranje outro trouxa para enganar.

– Mas, Riparia, independentemente das escapadas de sua mãe, os filhotes não são seus irmãos do mesmo jeito? – Provocou a analista.

– O que? Aquelas pragas? Se fossem meus irmãos de todo, filhos de papai e mamãe, eu saberia. Mas não vou me dedicar a criar falsos irmãos que quase nada têm a ver comigo. Não mesmo! Nunca mais cuido de filhotes que não sejam meus parentes próximos. Ai, doutora, não sei mais o que fazer.

– Bom, por que não sai do ninho dos seus pais? Não procura sua própria toquinha no barranco e um marido só seu? – Depois da pergunta da psicóloga a andorinha permaneceu alguns momentos em silêncio e uma gota lhe escorreu das glândulas de sal.

– É, doutora, acho que você está certa. Vou é ter meus próprios filhotinhos, arranjar um bom marido que me respeite e a quem eu respeite como minha mãe não respeitou meu pai. Estou decidida a não voltar mais para o ninho dos meus pais este verão. – Decidiu-se a avezinha pegando mais um lenço de papel para enxugar os olhos. – Obrigada, doutora.

A doutora acompanhou a cliente até o parapeito da janela da sala de espera, de onde ela alçou voo rumo ao norte.

– Doutora, já ligaram cinco vezes passando trote. Telefonam, eu atendo e não dizem nada. – Avisou a recepcionista.

– Não, querida, é um tamanduá cliente meu.

 

Cornwallis CK, West SA, Davis KE, & Griffin AS (2010). Promiscuity and the evolutionary transition to complex societies. Nature, 466 (7309), 969-72 PMID: 20725039

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