A milhafre obsessiva

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora já esperava o aviso de sua secretária quando escutou um barulho na janela do consultório. Apesar de ter amplas janelas de onde se podia ver boa parte da cidade, raramente as cortinas estavam abertas, dando ao consultório um escurinho uterinamente aconchegante. Ao afastar as pesadas camadas de Blackout a doutora reconheceu a cliente marcada naquele horário, uma fêmea do milhafre preto, um gavião migrador, com duas sacolas presas às possantes garras. Na mesma hora a doutora contraiu ligeiramente o canto da boca num sinal reprimido de desaprovação.

-Bom dia, Sra. Milhafre, eu a esperava pela porta da frente.

-Bom dia, doutora. Vim direto do shopping, o caminho mais curto era pela sua janela. Me perdoe.

-Era o caminho mais curto ou a senhora estava evitando minha sala de espera? – Os olhos da ave, em geral ameaçadores, ficaram vazios e ela engoliu seco. Havia algum tempo a analista precisou reprimir esta cliente que estava decidida a redecorar seu consultório e antessala. Ela alegava que mudanças eram necessárias. Na falta de resposta a analista prosseguiu. -Fazendo compras novamente então? – Perguntou fitando as sacolas da Etna e Tok Stok.

-Pois é, doutora, mas juro que não foi por compulsão. Estávamos precisando de umas coisas para casa. Olha essa capa de almofada, que coisa mais linda! Combina com o tapete da mesa de centro e as flores secas. E estes quadros que vou colocar na cozinha, que mimos. Achei baratinhos dois jarros…– A doutora, que acabara de desistir de prestar atenção, certamente não conhecia o ninho da Sra. Milhafre, mas, dado o volume de presentinhos domésticos que ela trazia a cada sessão, ou morava em um palacete ou em um relicário abarrotado de quinquilharias.

-A senhora quer me explicar por que é que estava “precisando” dos enfeites que trouxe desta vez? Convença-me de que estes artigos não são supérfluos. – À primeira vista a doutora teria rotulado esta paciente de leviana, mas ela sabia que ali havia um problema mais grave.

-Doutora, eu sei o que a senhora vai me dizer. Que eu uso isso de cuidar da casa para chamar a atenção do meu parceiro. Que é seleção sexual. Que minha obsessão é uma forma de chamar a atenção e ser mais amada. Que eu preciso encarar meus problemas de frente em vez de me esquivar. Mas dessa vez não é isso! – A analista a encarava curiosa de aonde a gavião queria chegar. – A senhora não entenderia, mas eu me sinto muito mais segura quando meu ninho está enfeitado. Lembro-me de quando era apenas uma mocinha e meu ninho era sem graça, nenhum enfeite. Meus filhotes demoravam séculos para se emplumar e vinham sempre de um em um. Sabe quantos ovos botei este ano? Três ovos, doutora! Todos nasceram saudáveis e estão crescendo lindos. Isso jamais aconteceria num ninho feio.

A Milhafre em momento nenhum olhava para a analista, ela não tirava os olhos de um quadro de Niko Timbergen que a psicóloga havia propositalmente entortado antes da sessão a título de teste. A ave tomou fôlego e prosseguiu. – E sabe do que mais? Até os engraçadinhos sem-teto que viviam invadindo meus ninhos antes de eu começar a enfeitá-los desistiram de se aproximar. É, de longe meu lindo lar demonstra que ali vive uma família sólida e decidida a cuidar do que é seu. Tenho muito menos trabalho com malandros hoje em dia. Só preciso evitar que alguém encontre e coma meus ovos, mas ladrões de ninhos, nunca mais.

– Estou convencida, Sra. Milhafre. A senhora está de alta! – Sentenciou a doutora.

– Quer dizer que estou curada?

– Não precisa mais voltar aqui. – Concluiu a analista sem responder diretamente à pergunta.

A milhafre antes de retornar ao consultório para pegar suas sacolas

Fonte: rezowan.wordpress.com

A doutora acompanhou a cliente até a janela de onde ela alçou voo com uma sacola em cada pé. Seu voo era livre e confiante como a doutora nunca havia visto, mas por dentro ela se perguntava. Se toda aquela racionalização estivesse correta, então sua obsessão pelo ninho era boa e deveria ser mantida. Se fosse apenas um subterfúgio, a analista já estava cansada de assistir sua cliente se justificando e repetindo os mesmos erros. Para se enganar era melhor que ela economizasse nas consultas. De todo modo o mais correto era dispensá-la das sessões.

Sergio, F., Blas, J., Blanco, G., Tanferna, A., Lopez, L., Lemus, J., & Hiraldo, F. (2011). Raptor Nest Decorations Are a Reliable Threat Against Conspecifics Science, 331 (6015), 327-330 DOI: 10.1126/science.1199422

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Discussão - 2 comentários

  1. Marão disse:

    Essa Dona Carcará, ou coisa que o valha, apesar de bicho age maquinalmente. Dirão os doutos biólogos com toda razão, tratar-se do comportamental ou de hábitos, o que seria o mesmo!? Somos todos seres de hábitos arraigados, obcessivos, nossas preferências pessoais até mudam com o tempo, mas duram à Bessa. Costumamos nos servir por um vasto lapso temporal, das mesmas vestes, dos mesmos lugares de pasto, ócio, estudos, das mesmas rotas diárias e até das mesmas predileções sexuais. Tudo bem, tudo normal. Porém vem essa Dona Carcará e grita na nossa janela:” É impossível praticar a espontaneidade!” sacaram por que? Os hábitos obstruem as mudanças. Dão-nos a falsa impressão de que estamos garantidos nesse mundo louco, em incessante mutação. Os bons e maus hábitos têm singularidades: os primeiros são voláteis, enquanto os últimos persistem. Todavia ambos dizem muito de nós mesmos. Eles constituem uma expressão do pensamento e do que valorizamos para a continudade. Desejamos as mudanças como as serpentes trocam de pele e tantos outros exemplos na natureza. Todos de vez em quando, queremos mudar “algo” em nós próprios, em nossas vidas profissionais, em casa, na decoração do ninho de Dona Carcará e por aí vai. Quase toda vez nem sabemos o que queremos de verdade ou o que fazer. Queremos mudar e não queremos. Às vezes evitamos até aquelas mudanças que reconhecemos e nos certificamos que são benéficas. Portanto, “Xô Caracará!” disse a Doutora. “Deixa a vida me levar...”diria o Zéca.

  2. Mr. Bhyngo disse:

    Carcará pega mata e come (João do Vale)
    Se esse pássaro é o carcará, a música de João do Vale não nega que é um bicho danado. Como todo obsessivo ele está preso entre o amor e o ódio. Ama a partir do próprio narcisismo e odeia na medida em que o outro ameaça a sua integridade porque está fixado na ameaça da morte.
    Dizem que habitam duas forças dentro de cada ser vivo. Uma delas é harmoniosa estabilizante e a outra agressiva e transformadora - o equilíbrio é o movimento entre esses opostos. Logo, de boba não tem nada esse psicanalista ao deixar o gavião voar para bem longe para continuar com os seus rituais que minimizam suas ameaças. Percebeu como aquietar seus desejos?

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