O corolário da dúvida eterna, carta aberta à Dayane

Dayane querida,

 

Se esse professor aqui puder te deixar um único ensinamento, esqueça que as vértebras caudais das aves se fundem gerando o pigóstilo, esqueça que o cálcio secretado pelo retículo sarcoplasmático é fundamental para a conexão entre actina e miosina, mas nunca se esqueça do seguinte: Duvide sempre. Duvide do que está no livro, duvide do que seus colegas disserem, duvide de um e-mail que recebeu, de um artigo de revista científica. Duvide principalmente daquilo que seu professor disser! Duvidando você irá raciocinar por conta própria, e é isso que fará a diferença.

Fiquei feliz em receber o seu e-mail com o texto encaminhado sobre evidências acerca da homeopatia ainda mais depois da nossa conversa na aula de fisiologia. A ideia toda é muito interessante, examinei-a detalhadamente abaixo.

Primeiramente eu fui até o artigo original da New Scientist mencionado no texto, tive alguma dificuldade porque o texto se refere à edição de 17/1/2011 deste periódico, mas essa edição não existe. Deve ter sido só um engano, porque achei o artigo na revista de 15/1. Aproveitei para conferir o artigo científico que embasou o de divulgação que você me passou (L. Montagnier, J. Aissa, E. Del Giudice, C. Lavallee, A. Tedeschi, G. Vitiello. DNA waves and water. Nature 23 Dec 2010 Vol.: 333, 816 – 818. DOI: 10.1038/333816a0). Um dos artigos refere-se à página 816 a 818 da edição de 23/12/2010, volume 333. Acontece que essa edição não tem página 816, não tem artigo nenhum do Luc Montagnier e é o volume 468, não o 333. Esta só será encontrada em 1988, ali sim há um artigo na página 816 mas que nada tem a ver com Montagnier. O DOI apresentado na referência também leva ao artigo de 1988. Deve ter sido outro engano, mas o fato é que o artigo base do texto não existe, ele não foi publicado nem avaliado por outros cientistas.

Edição de 23/12/2010 da Nature, o artigo mencionado não consta.

O texto que você enviou começa apresentando as credenciais do autor do estudo de teletransporte de DNA. O cara é prêmio Nobel em medicina! Muito impressionante. Luc Montagnier, descobriu que o HIV causa AIDS. Mas lembra do ensinamento? Vamos esquecer quem fez o experimento, finge que foi o seu colega Ashbel. A coisa muda de figura? Não deveria, no meu corolário da dúvida eterna você deve desconfiar igualmente de conclusões apresentadas pelo Nobel de medicina e pelo Ashbel. A isso nós damos o nome de falácia do argumento de autoridade. O Linus Pauling (Nobel de química em 1954 e da paz em 1962) jurava que vitamina C blindava o corpo contra câncer, doença que matou sua esposa e a ele próprio depois de anos de sobredosagem desta vitamina (mas veja que ele já tinha passado dos 90, dica da Ana Claudia). O próprio Pauling dizia que o progresso da humanidade depende dos jovens duvidarem dos mais velhos.

Linus Pauling, caso exemplar da maldição da medalha dourada

Fonte: nobelprize.org

Dando uma navegada por aí você vai ver que o Montagnier gosta de uma controvérsia, ele propôs curar autismo com antibióticos, escreveu um artigo sobre como diagnosticar AIDS usando a impressão que o HIV deixa nas moléculas de água e o publicou em sua própria revista 3 dias depois de submetê-lo (provavelmente sem análise por pares) e ainda patenteou o método. Bom, mas cabe a nós duvidar disso também, senão caímos na falácia do argumento ad hominem, atacamos o Montagnier no lugar das ideias dele.

O e-mail traz a afirmação de um químico australiano de que “se os resultados estiverem corretos, esta será uma das maiores revoluções científicas dos últimos 90 anos”. O fato é que, para uma ideia ser sustentada, é essencial que ela seja replicável. Se o DNA se teletransporta por eletromagnetismo, ele o deverá fazer no laboratório do Luc Montagnier, no CPEDA, na Tailândia e em Marte. Se só funcionar quando aquele pesquisador fizer… hum, não sei não, hein. Acontece que os resultados não se repetiram desde janeiro, coisa que já poderia ter sido feita.

Um motivo para a gente questionar os resultados do Luc Montagnier é a contaminação. Imagina a dificuldade para se retirar completamente todo vestígio de DNA de um tubo de ensaio. Contaminações já arrasaram algumas das “mais incríveis descobertas científicas dos últimos tempos”, como seres vivos que usam arsênico no lugar de ATP, bactérias alienígenas e DNA de dinossauro perfeitamente conservado. A coisa fica ainda mais complicada porque o método usado para identificar se o DNA passou de um tubo ao outro foi o da PCR. Esse método irá, na verdade, dizer se havia no 2º tubo algum DNA. Ele não diz se o DNA do 2º tubo é igual ao do 1º. Para isso seria mais interessante sequenciar os fragmentos. O 2º tubo estar contaminado com exatamente o mesmo fragmento de DNA do 1º tubo seria coincidência demais. Mais simples ainda seria fazer o PCR de um tubo sem ter passado pelo teletransporte quântico. Aquilo que chamamos de controle, lembra? Se em um dos controles aparecesse DNA poderíamos dizer que houve contaminação. Bom, sempre existe a possibilidade do pesquisador afirmar que o DNA se teletransportou para o controle também.

Luc Montagnier, teletransporte quântico do DNA. Será?

Fonte: nobelprize.org

Lá pelas tantas o texto no seu e-mail diz que “é difícil imaginar que a equipe de um pesquisador agraciado com o Prêmio Nobel seja ingênua a ponto de divulgar uma pesquisa tão controversa sem tomar todos os cuidados metodológicos necessários”. Bom, pode ser difícil, mas vamos usar o benefício da dúvida. Não seria de se imaginar que um Nobel cometeria erros metodológicos. Mas o que você diria de um cientista que, por ter seu projeto com financiamento federal negado por problemas éticos, só conseguiu realizá-lo cobrando das próprias cobaias pelo experimento? O que você diria se um cientista quisesse publicar um artigo supostamente revolucionário sem fazer um grupo controle. O que você diria de um experimento com 12 réplicas (Quantas repetições tem a sua monografia?). O que você diria de um cientista que, se fez o controle de seu experimento, não o explicou na metodologia? O que você diria se esse cientista fosse o Luc Montagnier, Nobel de medicina em 2008?

O
s patos são as teorias e hipóteses, cada tiro é um experimento

Fonte: game-artist.net

Para concluir, Dayane, eu reforço. Desconfie de tudo, inclusive desse post cheio de informações. Os dados do texto que você me mandou podem sim se tornar uma reviravolta da ciência, mas para isso os resultados terão que se sustentar aos testes e serem replicados. Minha imagem mental preferida de uma teoria científica robusta é a de um estande de tiro aos patos num parque de diversões. A teoria mais robusta é a que mais tempo fica de pé enquanto os cientistas tentam atacá-la, derrubá-la. O que não vale é sair divulgando seus resultados antes mesmo dele ter sido posto à prova no estande de tiro (antes de ter sido avaliado por pares e publicado).

 

Bessa

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Discussão - 9 comentários

  1. Gustavo Seabra disse:

    Olá Bessa,
    Ótimo artigo, parabéns. Só queria registrar que o artigo base existe sim, mas no arxiv. Isso quer dizer que foi submetido, mas ainda não foi necessariamente aceito em nenhuma revista.

  2. bessa disse:

    Gustavo, compreendo como artigo apenas aquilo que está publicado. Manuscrito submetido, mas não publicado não conta. Mas existe sim um manuscrito no link do arxiv., como você mencionou, talvez seja apenas uma questão de tempo, só é certo que ele não sairá na edição 333 nem no dia 23/12/2010.

  3. Marcelo, disse:

    cara sinceridade isso tem nome no brasil cheira a picaretagem,
    teletransporte quântico meio forçado. Estou só no terceiro período de física mas acredito que o sistemas quânticos não possuem teletransporte e sim troca de informações.

  4. Marão disse:

    Pouco pode um arquiteto entrar nessa querela, que pena! Mas eu acho que duvidar é criticar e nisso colo com o Bessa. Mergulhar no instrumental metodológico e entendê-lo por dentro, isso traz a vantagem de ensejar a superação científica, chutando a canela da debilidade interna da teoria analisada e não por basófias e fatores externos. Qual é a ciência objetiva e qual é a ciência equivocada? Aonde está a consciência verdadeira nesse caso? O tal argumento da autoridade é apenas uma técnica primitiva de imunização à crítica e induz à obediência automática e burra. Todos sofremos de alienações, ideologias diversas e falsas consciências, inclusiva as autoridades incriticáveis ou acima de qualquer suspeita. Esse é o busilis do problema, me parece. O apego incondicional a um autor ou professor é improdutivo, pois o argumento fica amarrado, submisso e incapaz de sustentar-se na coerência e consistência internas. Muita “verdade” é sinal de muita autoridade e pouca ciência... ou não!

  5. Felipe disse:

    Olá Bessa,
    acompanho teu blog há algum tempo e gosto dos textos. Hoje estava passeando pelos blogs da Nature e encontrei essa série (http://blogs.nature.com/u6e5b2ce1/2011/04/) de entrevistas com estudantes de doutorado. As entrevistas fazem parte de uma série especial da Nature sobre a formação de "PhD´s". Lembro que há algum tempo atrás você fez uma série de post´s sobre a vida de biólogo.
    Que tal fazer uma série como a da Nature voltada para estudantes brasileiros? Entrevistar alguns alunos de pós e convidá-los a discutir sua formação?
    Bom... fica como sugestão.
    Mais uma vez parabéns pelo trabalho no blog.
    Abraço.

  6. ana claudia disse:

    um detalhe sobre Linus Pauling que talvez devesse ser incluído neste contexto: ele viveu de 1901 a 1994, daí associar sobredosagem de vitamina C à sua morte por câncer fica um pouco menos direto... não é? Eu imagino que ele morreu "de velho"... daí a associação com o câncer: segundo alguns pesquisadores (N.M.V. Gomes et al./ FEBS Letters 584 (2010) 3741–3751), quanto mais replicações uma linhagem celular sofrer, mais próxima está de tornar-se precursora de uma linhagem tumoral. Concordo que é preciso ficar atento para desconstruir todo e qualquer "argumento da autoridade", mas esta colocação sobre o câncer e a vit.C achei meio "forte".
    Ótimo post!
    ana

  7. Fernanda disse:

    "é difícil imaginar que a equipe de um pesquisador agraciado com o Prêmio Nobel seja ingênua a ponto de divulgar uma pesquisa tão controversa sem tomar todos os cuidados metodológicos necessários".
    As vezez jugamos cientistas pelo seu status (quantidade de diplomas que carrega). minha amiga Dayane sempre me coloca em xeque quanto a artigos que vão contra a técnica da homeopatia! obrigada professor por esses sábios esclarecimetos... sempre me ajuda a questionar o que parece óbvio, principalmente quando leva pessoas renomadas!

  8. Daniel disse:

    É preciso duvidar de tudo. é verdade, por isso é preciso duvidar da ciência que alguns anos depois desdiz o que garantir alguns anos antes. a Ciência é um Método, muito bom por sinal. É um Método de sistematizar o Conhecimento, mas não é a Verdade, nem chega à Verdade. É apenas um Método que segue o Discurso do Método de Descartes. Mas tal Método contém uma falta grave: a Matéria é com a Ciência e a Alma, Espírito ou algo do género é com a Religião. Ora. o Verdadeiro buscador da Verdade pesquisa em todo o lado, sem barreiras, nem ideias pré-concebidas. Max Plank no ano 1900 iniciou a Física Quântica que contradiz o Cartesianismo. Portanto Descartes é válido só no patamar da Matéria. A Ciência oficial é válida só neste nível material e, o que é mais grave, quando tem a aprovação dos grandes interesses ou, pelo menos, não os coloca em causa. Se a Verdade for contra certos interesses, é uma Fraude, uma Charlatanaria, uma Bruxaria. Tal é o nível científico de muitos dos nossos intelectuais.
    A Homeopatia está testada por mais de 200 anos de experiência. Mas só funciona nas mãos de quem a sabe fazer funcionar. As regras da Homeopatia são diferentes das que são usadas na Farmacologia, do mesmo modo que a Física Newtoniana é diferente da Relatividade ou da Física Quântica. Não sou Homeopata, ms sei algo sobre o assunto. Sou Médico e vi resultados inacreditáveis da Homeopatia. Mas enfim, se os cegos não vêem, os que recusarem ver, nunca, nunca, mas nunca verão. Continuem cegos porque essa é a sua condição. A Homeopatia não tem o Poder de abrir os olhos dos cegos. Em boa Verdade, a Homeopatia é uma terapêutica complementar que também não substitui a Farmacologia. Os Homeopatas que pensam que nunca precisarão de alguns Fármacos são igualmente cegos. O fanatismo é algo de terrível! A Homeopatia é uma terapêutica fantástica, tão fantástica como a Farmacologia, a Cirurgia, a Psicoterapia, a Acupunctura, a Fisioterapia ou a Fitoterapia. O grande Problema é que é de difícil aprendizagem, é barata e pode baixar um pouco os lucros obtidos por alguns Laboratórios. A Homeopatia é mesmo eficiente nas situações em que está indicada, mas não pode curar tudo, tal como as outras terapêuticas.

  9. bessa disse:

    Ai ai, será que respondo ao comentário? Vamnos lá, vou responder. Daniel, concordo com boa parte do que você diz. Sim, devemos duvidar da ciência. De fato, boa parte do progresso que a ciência experimenta reside no processo de se auto-contestar, isso a faz mais forte. Também concordo que a matéria é o produto da ciência, tudo o que depender de fé cega e sem contestação não pode ser objeto desta. Assim, se alguém quer crer no bezerro sagrado, em agulhas superficiais afetando meridianos energéticos ou em esferas de açúcar que curam, o façam, só saibam que é fé. Sem indústria farmacêutica, sem interesses escusos, sem conspiração cósmica, quem não crer no mesmo que você é apenas portador de uma fé diferente (e como é difícil aceitar as diferenças de fé, hã!). Também concordo com o poder da homeopatia como terapia complementar, você faz um tratamento sério e toma homeopatia como complementação se esta for a sua fé. Você pede a São Longuinho, dá três pulinhos e continua procurando para encontrar o que quer, é a mesma lógica. Por fim, uma mentira contada por muito e muito tempo não se torna verdade, não importa quantos anos a homeopatia tenha, ela não passará a ter bases científicas por isso. Acredita-se que existam versões variadas do bicho-papão desde os fenícios, mas isto nunca fez surgir um bicho-papão de verdade.

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