Evitando virar almoço 4 – Contra-sombreamento

Você já viu algum peixe escuro na barriga e claro nas costas? Eu nunca vi, mas meu ex-professor Mário Katsuragawa me ensinou a duvidar de nada, especialmente em se tratando de peixes, que são tão diversos. Então se você tiver um exemplo mande nos comentários. Enfim, pelo menos a maioria dos peixes é escuro nas costas e claro na barriga. E não são só os peixes, pinguins são assim, tartarugas marinhas também, até baleias são assim. Bom, se existe um padrão, deve ter um bom motivo para isso.

Não que alguém esteja pensando em predá-la, claro. Fonte: wikipedia.org

Não que alguém esteja pensando em predá-la, claro. Fonte: wikipedia.org

Como a luz vem de cima, um peixe todo branco teria as costas claras e o ventre escuro. Tendo as costas escuras e o ventre claro um peixe iluminado de cima fica mais ou menos todo da mesma claridade do ambiente, por isso fica mais difícil de enxergar.

Escuro no dorso, claro no ventre. Um padrão em animais aquáticos. Fonte: wikipedia.org

Evitando virar almoço 3 – Transparência

Semana passada falamos sobre a camuflagem e animais que mudam de cor. Acreditem, mesmo isso pode custar energeticamente ao animal. Ele gasta energia mudando de cor e fica restrito a um local se for camuflado, mas não mudar de cor. Outra saída seria ser transparente.

O colega Jansen Zuanon descobriu alguns peixes bastante transparentes, como o dessa foto. Ele os denominou, a liga quase invisível. Fonte: Neotropical Ichthyology.

O colega Jansen Zuanon descobriu alguns peixes bastante transparentes, como o dessa foto. Ele os denominou, a liga quase invisível. Fonte: Neotropical Ichthyology.

Um animal transparente pode passar despercebido em qualquer tipo de ambiente. Alguns são mais, outros menos transparentes. Os cientistas nunca viram nenhum animal completamente transparente… por motivos óbvios. Mas isso não importa muito, porque nenhum predador tem a visão completamente perfeita também. Então ser um pouco transparente pode te ajudar a sobreviver um pouco. E sobreviver um pouco, em termos evolutivos, costuma ser o suficiente.

Evitando virar almoço 2 – Camuflagem

A técnica dessa semana de evitar virar comida talvez seja a mais conhecida delas. Entendo aqui camuflar-se estritamente como ter uma cor que se confunde com o meio. Essa é uma técnica mista, porque envolve a forma passiva, simplesmente ter a cor do ambiente que você ocupa, e uma forma ativa, nas espécies que mudam de cor ou que viram seu lado menos colorido quando se sentem ameaçados (pense numa borboleta que tem um lado da asa azul royal iridescente e o outro acinzentado como uma casca de árvore).

Alguns animais são mestres do disfarce e se camuflam absurdamente bem. Mas pense que uma leve capacidade de se camuflar já pode reverter em sobrevivência e ser valorizada em termos evolutivos. Esses exemplos de camuflagem perfeitos demais me preocupam um pouco porque parecem que foram desenhados por alguém com um propósito. Não foram! Parecer 10% com uma folha seca pode significar 10% mais sobrevida, 10% mais filhotes e, voi là, está fixada a característica.

Num banco de algas esse parente dos cavalos marinhos fica absolutamente oculto. Fonte:  wikicommmons

Num banco de algas esse parente dos cavalos marinhos fica absolutamente oculto. Fonte: wikicommmons

Um problema da camuflagem é que em geral ela limita os ambientes em que um animal pode viver. Imagine um dragão do mar como o da foto acima num costão rochoso, ou uma aranha como essa numa flor vermelha. A solução para isso apareceu em animais que mudam de cor e, com isso, conseguem se esconder em vários ambientes. O exemplo clássico são os camaleões, mas pessoalmente invejo muito mais os linguados e as sibas. Especialmente em vésperas de prova quando todos os alunos estão procurando você para tirar dúvidas e tudo o que queremos é sumir.

Linguados mudam de cor muito mais eficientemente que camaleões. Fonte: webecoist.momtastic.com

Linguados mudam de cor muito mais eficientemente que camaleões. Fonte: webecoist.momtastic.com

Evitando virar almoço 1 – Coloração disruptiva

Os animais têm um monte de técnicas para evitar virar comida dos outros animais. Algumas são técnicas ativas, comportamentos que o animal realiza. Outras são formas passivas, características que o animal sempre tem, que servem de proteção. Nas próximas semanas veremos algumas dessas técnicas a começar por hoje.

Quantas zebras você vê? Um leão também!

Quantas zebras você vê? Um leão também!
Fonte: deolhono-lance.blogspot.com

Predadores frequentemente precisam escolher uma presa e atacá-la individualmente. Já reparou como uma alcateia de lobos isola um búfalo? E se for difícil saber onde começa um animal e onde termina o outro? Experimente contar quantas zebras tem na figura acima. Espero as respostas nos comentários. Agora imagine esse monte de listrinhas correndo e se embaralhando. Espero que você não tenha labirintite.

O besouro fratricida

Para minha irmã.

Feliz aniversário.

Besouro crisomelídio da batata

Grande, bonito, saudável? Graças aos irmãozinhos que comeu na infância. Foto de Scott Bauer.

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

A secretária não parava de olhar o besouro, primeiro cliente a chegar naquela manhã. Ele tinha duas olheiras sob os olhos compostos e as antenas pendiam desoladamente no alto da cabeça amarela. Ao perceber-se observado ele tentou inutilmente afastar a cara de preocupação. A psicanalista, que havia acabado de chegar para o trabalho, cutucou a atendente e pediu baixinho que parasse de encarar os pacientes. Em seguida chamou para entrar o besouro. Ele nem alçou voo. Arrastou o corpo que parecia mais pesado que de costume com os élitros baixos e um olhar lívido.

-Tive o sonho mais terrível com meus irmãos essa noite! – Declarou sem rodeios o besouro. A terapeuta nada disse. Quer dizer, ela disse que estava muito interessada e que preferia que o cliente narrasse todo o sonho antes que ela se pronunciasse. Mas tudo isso foi transmitido com um olhar consternado e interessado para o ocupante do divã que, sem alternativa, continuou a falar.

-De repente eu estava de volta à folha de batata onde nasci, àquela superfície tenra que aconchegava e deliciava. Sempre adorei comer folhas de batata, sabe, doutora? Então, lá estava eu, recém-saído do meu ovo e cercado dos ovinhos dos meus irmãos. Mas não era o mesmo campo verdejante e seguro onde nasci. No meu sonho eu eclodi num campo devastado, as folhas estavam já todas carcomidas por outros herbívoros e zumbiam no ar as asas e o fedor de percevejos vorazes e outros predadores. Apavorado com a visão daquele campo e a falta de perspectivas para meu futuro tomei a mais drástica das decisões. Comecei a destroçar e devorar os ovos de meus irmãos. – O besouro narrava com tamanho terror que às vezes lhe faltava ar. E prosseguiu.

-Doutora, meu corpo, ainda com forma de lagarta, se atirou sobre os ovos ao meu redor, maxilas em atividade, quebrando, rasgando e devorando meus irmãos. Dos ovos saíam gritos implorando piedade, mas eu os ignorava. Hemolinfa esbranquiçada escorria dos cantos da minha boca e eu gargalhava em meio à destruição de meus irmãos. Foi a coisa mais horrível! Só sosseguei quando todos já estavam estraçalhados ao meu redor. – Ele contava com movimentos frenéticos da hipofaringe e do labro como a analista jamais havia pensado possível.

-Acordei apavorado e não consegui mais dormir. Fiquei pensando em meus irmãos, minha irmã em especial. Quanto tempo não a vejo! Se mudou para tão longe, doutora. Fiquei preocupado com ela. Me senti culpado pelo sonho. Que bobagem, foi só um sonho, não é? Mas fiquei, sabe? Queria falar com ela, saber como estão as coisas. Se eu vou ganhar sobrinhos essa primavera. Sabe, doutora, durante o sonho eu me via comendo meus irmãos e ao mesmo tempo me recriminava, pensava nos meus sobrinhos que eu estava condenando a jamais nascerem. Acho que nessa hora estava já meio dormindo e meio acordado, sabe? Passei o resto da noite em claro. – A psicóloga ainda não havia aberto a boca desde o início da sessão, o que não era bem um problema, mas chegara a hora de intervir.

-Sr. Leptinotarsa, – A doutora não cansava de se surpreender com os nomes de seus clientes. – duas forças habitam os seres vivos:  Pulsão de vida e Pulsão de morte. Entre os besouros da batata o canibalismo de ovos é fazer uso da pulsão de morte, devorando os irmãos de ninhada. Isso é mais comum na pulsão de vida daqueles que estão ameaçados por falta de comida e excesso de predadores. Exatamente o seu enredo onírico.

-Mas como é que esses besouros ficam em paz depois do que fizeram. Eu estou carregando uma tonelada de culpa por ter sonhado com isso. Imagine quem praticou mesmo o canibalismo! – Surpreendeu-se o cliente.

-Olha, nossos sonhos são manifestaçõesdessas pulsões básicas e incontroláveis. A culpa é a censura por atendermos nossos instintos. Portanto, a felicidade está fadada ao fracasso, já que sempre haverá duas forças contraditórias. Só nos resta aceitar uma infelicidade mais branda. Nem imagino a culpa deles, mas não devorar os irmãos também é um problema. Se não comerem, tanto eles quanto os irmãos serão alvos dos predadores antes de tornarem-se adultos. Comendo os irmãos pelo menos eles chegam mais rápido à idade adulta e evitam serem presas dos percevejos. Só sobra o irmão mais velho e toda a plantação só para ele. O que também é uma vantagem na hora de competir por alimento. Sabe como é: “Ao vencedor as batatas.”

-Que coisa triste, doutora. Ainda bem que nascemos na plantação de batatas mais farta que existe.

-Nosso tempo acabou, mas acho que esse assunto também.

A psicanalista ficou em sua escrivaninha enquanto o crisomelídio ia embora, dessa vez voando pesadamente. Talvez pela culpa, talvez pelo exoesqueleto quitinoso. Enquanto isso a doutora pensava em como somos tentados a julgar antes de saber a história de vida de cada um. Mesmo as atrocidades mais graves têm seus motivos.
Collie, K., Kim, S., & Baker, M. (2013). Fitness consequences of sibling egg cannibalism by neonates of the Colorado potato beetle, Leptinotarsa decemlineata Animal Behaviour, 85 (2), 329-338 DOI: 10.1016/j.anbehav.2012.11.013

O cervo veado?

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora havia instalado na antessala um equipamento de som ambiente. caixinhas de som bem fracas apenas para quebrar o silêncio e o clima tenso da sala de espera. Fez também uma seleção de bossas, jazzes e até uma levada eletrônica mais lounge que ela gostava. Acontece que a secretária nova insistia em trocar as músicas e colocar algo de seu gosto (duvidoso). Aquele dia a doutora encontrou na antessala seu cliente novo incomodado com o repertório da atendente, que ia de Village People a Barbara Streisand, numa playlist que poderia receber o nome de gay parade.

-Credo, doutora. Essas suas músicas dão sono. Nem aumentar o volume dá com esses alto-falantes fracos que você comprou. – Reclamou a secretária. – O veado do seu próximo cliente já chegou.

-Não sou veado, sou um cervo! – bramiu o cliente, bufando pelas narinas.

-Ele não é veado e isso aqui não é uma danceteria. Por favor, desligue isso! – Respondeu a analista e, transformando a cara sisuda num sorriso sutil virou-se para o cliente. – Bom dia, Sr. Cervus, queira entrar e acomodar-se no divã.

Veados preferem ficar juntos com outros do seu próprio sexo, mas disso a gente já sabia. Foto: Mehmet Karatay

Veados preferem ficar com outros do seu próprio sexo, mas disso a gente já sabia. Foto: Mehmet Karatay

O enorme cervo, um macho garboso, com andar elegante e galhada imponente, entrou e deitou-se. Atrás dele a terapeuta posicionou-se num ponto onde o cervo não enxergava, sob a luz fraca de um abajur alto.

-Doutora, minha fama não está das melhores. Andam dizendo coisas de mim…

-É mesmo? Não estou interessada no que os outros dizem. Quero saber o que você tem a me dizer sobre você. – cortou a terapeuta astuta.

-Doutora, eu sou muito macho! Macho mesmo! Sou o cervo mais macho que existe.

-Interessante. Por que toda essa sua formação reativa? Ser muito macho é a informação mais importante que tem sobre você?

-É sim, no momento é! Ah! Só porque eu só ando com machos, os outros animais ficam me chamando de veado. Ridículo! Eu gosto mesmo de andar com meus amigos, só ligo mesmo para estar com as meninas da minha espécie quando elas estão no cio. Mas isso não quer dizer que sou gay, oras. Eu ando com outros machos se eu quiser. Pronto!

-Tudo bem. Mas qual é o seu desejo? Para que você quer andar com seus colegas?

-Ah, eu e meus amigos sempre vamos para onde tem comida melhor, nos separamos das crianças e dos mais velhos. Ficamos só nós, que mais temos a ver um com o outro. É uma coisa de afinidade e do que é melhor para nós. – Desabafou o cervo abanando as vastas galhadas.

-Sr. Cervus, não se preocupe tanto com o que os outros falam. A sociedade nos impõe mais pressões do que somos capazes de suportar, então seja você mesmo, seja feliz.

E o cervo saiu do consultório caminhando mais confiante sem perceber as Weather Girls fazendo aquela tradicional previsão do tempo. Para trás ficou a psicóloga pensando em como somos manipulados por desejos e pressões que nem nossos são e no tempo que perdemos tentando agradar os outros.

 

Alves, J., Alves da Silva, A., Soares, A., & Fonseca, C. (2013). Sexual segregation in red deer: is social behaviour more important than habitat preferences? Animal Behaviour, 85 (2), 501-509 DOI: 10.1016/j.anbehav.2012.12.018

Vício

Estou olhando para o armário. Sei que ela está lá dentro. Pelo menos dessa vez é consciente. Desejo mais uma dose. A ideia domina meus pensamentos como um refrão chato, recorrentemente. Tantas vezes nem me dou conta. Quando percebo já consumi mais um pouco. Só resta a embalagem vazia evidenciando meu fraquejo.

Um vício pernicioso e perigoso. Fonte: usp.com.br

O pó branquinho, refinado, nem apela tanto a mim, mas acabo consumindo escondido, de outras formas às quais não resisto. Conheço bem esse desejo que sinto agora. Sei que ele só aquieta se eu ceder, mas voltará mais forte depois. Penso na sensação do consumo. No bem-estar instantâneo que ela me dá. Na substância entrando no meu corpo, sendo absorvida no meu sistema digestório, entrando no sangue. No alívio de senti-la atingir meu cérebro. Meu sistema límbico excitado pelo prazer do consumo vai lembrar daquilo e, como agora, me fazer querer mais.

Mas sei também dos malefícios. Pelo menos conscientemente sei. Conheço tanta gente que se perdeu para o vício. Tanta gente que morreu por ele, na minha própria família. Tento pensar na dependência, tento pensar no estrago que virá se eu ceder. Tento me convencer de que não posso abrir mão das conquistas que alcancei até agora, de todo o trabalho feito para me livrar. Na deterioração do meu corpo que o consumo causará. Na insulina que um dia pode não ser mais suficiente. Nada adianta, o pensamento retorna cada vez com mais força.

Um lado sombrio de mim contra-argumenta: Quase todo o mundo usa e nada acontece. Não seja paranoico. É só mais um pouquinho, não vai te fazer mal. Você merece, já está sem faz algum tempo. É tão bom. Resolvo tomar uma atitude. Visto-me e saio, sem dinheiro no bolso para evitar comprar na rua, onde em toda esquina é fácil encontrar. Vou dar uma volta. Tentar esquecer. Pelo menos adiar ceder ao vício. Muita gente nem me considera um viciado, mas eu sei da verdade. Sou viciado em açúcar.

O nudibrânquio emasculado

Naquela manhã, no consultório psicanalítico…

Não devia ter chamado o cliente de lesma. A secretária olhava o rastejando para dentro do consultório com o lábio inferior evertido e as narinas contraídas numa clara expressão de nojo. A doutora não conseguia entender como a secretária podia ver com asco aquilo que ela mesma considerava lind@. Uma lesma marinha com duas protuberâncias alaranjadas na parte da frente e um tufinho de brânquias atrás, tod@ vermelho vinho com pintas brancas. É isso, não devia ter chamado de lesma.

-Entre, senhor@ Chromodoris. – Convidou a analista tentando evitar uma declinação de gênero a esse animal hermafrodita. – O que @ traz aqui hoje?

O amor nos faz perder coisas que nem imaginamos. O nudibrânquio emasculado. (Fonte: eol.org)

O amor nos faz perder coisas que nem imaginamos. O nudibrânquio emasculado. (Fonte: eol.org)

Por um tempo @ nudibrânqui@ tergiversou sobre seu trabalho de arquivista numa repartição burocrática, sobre o conforto que a rotina dava e sobre sua falta de criatividade, que el@ não via como problema, porque era melhor não ousar que ver as coisas dando errado. A psicóloga, que já tinha alguns anos de experiência, sabia quando tentavam evitar problemas reais.

-Como era sua relação com sua pãe e seu mai? – Pãe, como se sabe, é o indivíduo hermafrodita que recebeu os espermatozoides do mai na hora do sexo. Um mesmo animal pode ser pãe de um filho e mai de outro se o sexo for recíproco.

-Nossa, doutora, que mudança radical de assunto. Bom, meu mai foi pouco presente em nossa família, nunca nos deu muito apoio. Em compensação minha pãe tinha um pulso firme. Pulso é maneira de dizer, né. Nós nudibrânquios não temos pulso. Papãe era muito sever@, fazia questão de que tudo andasse nos eixos. Papãe era mai e pãe ao mesmo tempo, e não era só porque era hermafrodita. Acho que é normal ser oprimido, né?

-Não é não. @ senhor@ precisa se impor também. Isso é complexo de castração! – Pronunciada a última frase, ficou instantaneamente lívid@ , os rinóforos murchos completavam o quadro de desolação.

-Co-como a senhora sabe? – Gaguejou baixinho em pânico.  – Como sabe que eu fui castrado? Todos podem perceber?

– Eu quis dizer em sentido figurado. Mas por que você diz isso? Quer me contar algo mais?

Chromodoris passou os minutos seguintes contando sobre seu primeiro e último relacionamento apenas algumas horas antes, mas que pareciam uma eternidade. Como @ namorad@ era charmos@, mas ao mesmo tempo dominador@. Como haviam se amado mutuamente, mas também como a culpa havia surgido avassaladora. Num momento de confusão entre ser macho, fêmea ou hermafrodita, arrancara violentamente o próprio membro. Agora era toda mulher, mas a culpa e a confusão não passavam. Já perdera a concha quando ainda era uma larvinha, agora a perda auto-infringida do pênis era demais para suportar. Por isso marcara a sessão urgente com a analista.

Enquanto narrava @ cliente percebeu aquela sensação intoxicante no osfrádio e lágrimas começaram a escorrer aos borbotões. A psicanalista esperou alguns instantes e preparou um lenço de papel e sua voz mais acolhedora.

-Acalme-se. Você é o que você é. Sua castração é meramente temporária, de fato, se você olhar agora mesmo perceberá que um novo pênis está se formando. Quando encontrar outr@ parceir@ já estará pront@ para copular outra vez.

Despediram-se na porta do consultório. @ nudibrânqui@ rastejando para o elevador do prédio enxugando as lágrimas. Mais conformad@ e menos assustad@, el@ até ensaiou um sorriso amarelo que mal descobria a rádula enquanto a porta do elevador se fechava. A doutora ficou para trás, pensando em como somos todos hermafroditas e temos dificuldade de lidar com isso.

ResearchBlogging.org
Sekizawa, A., Seki, S., Tokuzato, M., Shiga, S., & Nakashima, Y. (2013). Disposable penis and its replenishment in a simultaneous hermaphrodite Biology Letters, 9 (2), 20121150-20121150 DOI: 10.1098/rsbl.2012.1150

 

Os camundongos inconformados

ResearchBlogging.orgNaquela manhã, no consultório psicanalítico…

A doutora aguardava dois clientes camundongos, mas estava preocupada mesmo era com a reação da secretária. Sua última ajudante ficou apavorada quando um cliente antigo, um ratão do banhado que tinha medo de água, entrou na sala de espera. Ela sempre achara simpática a cara daquele animal, mas concordava que o rabo era repugnante.

A primeira cliente já aguardava na antessala. Uma mãe de oito camundonguinhos de olhos fundos e mamas inchadas de devoção pelos seus filhotes se queixava do parceiro que não a ajudava.

Fêmeas de camundongo pedem ajuda para cuidar da prole a seus parceiros usando feromônios e ultrassons. Fonte: eurekalert.org

Fêmeas de camundongo pedem ajuda para cuidar da prole a seus parceiros usando feromônios e ultrassons. Fonte: eurekalert.org

-Para mim, doutora, a demonstração maior da inutilidade dos machos são aqueles mamilos. Usaram tão pouco que perderam a função! Por mim eles todos podiam cair em desuso e desaparecer que não fariam falta.

-Não seja tão lamarckista. – Interpelou a doutora.

-Extremista?

-Lamarckista. Deixa para lá. Você já pediu a ajuda dele para cuidar das crianças?

-É claro que sim.

-Mostre para mim como você falou com ele. Finja que sou seu marido e me peça ajuda. – Sugeriu a terapeuta usando a técnica do espelho.

-Ora, doutora. Eu pedi. Ah, não sei. Falei mais ou menos assim… Bom, ele nãos está vendo como estou sobrecarregada? Não acho que eu precisasse falar. O que é? Ele queria participar só na hora de fazer a ninhada? Não é justo! Ele fica lá só metido nas coisas de macho dele e não olha para mim. Não colabora. Esquece as minhas necessidades e as dos filhos dele. Nem parece que moramos na mesma cuba do mesmo biotério.

– Você tem razão, mas se não contar para ele que precisa de ajuda não pode exigir que ele adivinhe. Machos são menos inclinados a cuidar da prole mesmo, especialmente em mamíferos como você. Você tem que pedir ajuda do jeito certo.

-Que jeito é esse? – Perguntou a roedora arregalando os olhinhos escuros, mexendo de leve as orelhinhas arredondadas e eriçando as vibrissas.

-Bom, primeiro você precisa liberar feromônio e então emitir vocalizações ultrassônicas. Uns 38 kHz são suficientes.

-ASSIM?!?-Gritou estridentemente a Sra. Mus fazendo tremer os vidros do consultório e levando a analista a tampar os ouvidos, mas num tom que você e eu não escutaríamos.

-Isso, mas não precisa ser tão alto, só agudo. Agora vá para casa e semana que vem você me conta no que deu. – A doutora encerrou a seção encaminhando a primeira cliente até a porta e já chamando o segundo, um camundongo macho de outra espécie. Ao se cruzarem na sala de espera a cliente anterior lançou-lhe um olhar cheio de ressentimento que a ela pareceu cabido contra camundongos machos, mas deixou-o sem entender nada.

A forma da toca desse roedor é determinada geneticamente. Fonte: wikimidia.org

A forma da toca desse roedor é determinada geneticamente. Fonte: wikimidia.org

-Doutora, toda minha vida imaginei a casa dos meus sonhos. A mais linda da ravina. Localização e tamanho de cada cômodo, portas, janelas e corredores amplos. Sonhava em deixar aquelas tocas tradicionais para trás, viver numa casa aconchegante e cheia de personalidade, a minha personalidade. Desde que me lembro vivo em tocas exatamente iguais, um longo corredor de entrada, uma câmara central e um corredor de fuga quase até a superfície para o caso da invasão de um predador. Meus pais vivam assim, meus avós paternos e maternos viviam assim. Queria sair desse ciclo. – Queixava-se o camundongo deitado no divã. – O problema é que, agora que chegou a minha hora de realizar o sonho, fazer minha própria toca, não consigo abandonar o paradigma. Estou construindo os mesmos túneis estreitos e longos, câmaras e saídas de emergência de meus ancestrais.

-É comum reencenarmos coisas do passado, Sr. Peromyscus

-Eu sei, doutora. É aquela história freudiana de recordar, repetir e elaborar os traumas. Né? – interrompeu o roedor.

-Não exatamente. Aí o que está acontecendo é que suas tocas são influenciadas pelos genes. Você herdou essa conformação de toca de ambos os seus pais, portanto tende a repeti-la.

-Mas, doutora, os genes controlam até isso? Não é determinismo demais? – Perguntou o cliente franzindo as sobrancelhas e apertando a boca até quase fazer sumir os longos incisivos.

-Compreendemos ainda muito pouco sobre o papel dos genes no comportamento e sua modulação, mas parece que no caso da sua toca você está geneticamente condenado a repetir a morada dos seus pais. Até as três sequências genéticas que indicam o comprimento do túnel de entrada e a sequência que indica a presença da saída de emergência são conhecidas para a sua espécie. – Sentenciou a psicóloga.

Despediram-se na porta do elevador, o camundongo se esgueirando ligeiro pelo canto do corredor, resignado e mudo. Enquanto isso a doutora pensava como todos nós temos dificuldade de lidar com a realidade. Dois camundongos tão diferentes, mas tão semelhantes. Um quer mudar o parceiro, o outro o lar. Somos todos inconformados. O que não é de todo mau, já que esse inconformismo nos move.
Liu, H., Lopatina, O., Higashida, C., Fujimoto, H., Akther, S., Inzhutova, A., Liang, M., Zhong, J., Tsuji, T., Yoshihara, T., Sumi, K., Ishiyama, M., Ma, W., Ozaki, M., Yagitani, S., Yokoyama, S., Mukaida, N., Sakurai, T., Hori, O., Yoshioka, K., Hirao, A., Kato, Y., Ishihara, K., Kato, I., Okamoto, H., Cherepanov, S., Salmina, A., Hirai, H., Asano, M., Brown, D., Nagano, I., & Higashida, H. (2013). Displays of paternal mouse pup retrieval following communicative interaction with maternal mates Nature Communications, 4 DOI: 10.1038/ncomms2336
e
Weber, J., Peterson, B., & Hoekstra, H. (2013). Discrete genetic modules are responsible for complex burrow evolution in Peromyscus mice Nature, 493 (7432), 402-405 DOI: 10.1038/nature11816

Sugestão de natal – A verdade sobre cães e gatos

Você que é biólogo e está sem ideias para o presente de natal, minha sugestão é “A verdade sobre cães e gatos”, do meu vizinho de Scienceblogs Mauro Rebelo. O livro traz um pouco do cotidiano desse carioca irreverente à luz da Biologia que ele conhece tão bem. As discussões vão desde por que fazemos sexo oral ou qual a quantidade ideal de convidados para uma festa até por que sentimos raiva. A narrativa despe a Biologia de seus jargões (que até dão as caras, mas apenas como coadjuvantes) e apresenta o que há de mais legal: ideias.

A verdade sobre cães e gatos

A verdade sobre cães e gatos. Uma boa pedida de natal para iniciantes e iniciados na Biologia.

O livro pode ser adquirido pelo facebook nesse link.