Certo, Certeza – A Universalidade da Ciência

François-Marie Arouet – Voltaire. Pintura de Nicolas de Largillière, 1723.

O texto abaixo é extraído do livro Dicionário Filosófico (Dictionnaire philosophique), escrito por Voltaire (pseudônimo do filósofo iluminista francês François-Marie Arouet, ✩1694 – ✞1778) e publicado pela primeira vez em 1764. Este texto é complementar e introdutório às aulas do curso de Metodologia Científica e do Projeto, ministrado por mim na faculdade de engenharia agrícola da universidade estadual de Campinas (FEAGRI/UNICAMP). A análise esperada deste texto é a relação dos conceitos elaborados por Voltaire com as definições de crença, verdade e conhecimento, abordadas durante a aula introdutória. Também é esperado que estas relações sejam totalmente integradas ao panorama atual de como a sociedade como um todo vê a ciência, exaltando o caráter universal e atemporal desse ensaio.

Voltaire é, sem dúvida nenhuma, o filósofo a qual mais li em minha vida. A precisão de sua língua afiada não poupava ninguém: aristocratas, nobres, clero. Foi parar na Bastilha por dizer o que pensava, sempre se expressando com muita irreverência. Seus textos expressavam de forma pungente e ácida a frase em latim cunhada por Gil Vicente: Castigat ridendo mores (ou “é no ridículo que se corrigem os costumes”, em uma tradução livre). É, ao que parece, Voltaire lançou (e continua lançando) muitas pessoas e atitudes ao ridículo. Mas parece que algumas pessoas e atitudes já se lançam sozinhas ao ridículo com maestria…

Uma série de textos que pode dar ainda mais complementaridade à esta postagem está disponível em outra postagem de nosso blog, na qual eu discorro um pouco mais sobre ciência aberta. Vale a pena aprofundar estes conceitos.

Certo, certeza, por Voltaire

— Que idade tem vosso amigo Cristóvão?

— Vinte e oito anos. Vi sua certidão de casamento e de batismo, conheço-o desde criança. Tem vinte e oito anos, tenho certeza, estou certo.

Mal acabo de ouvir a resposta desse homem tão seguro do que diz e de vinte outros que o corroboram, venho a saber que, por motivos secretos e singular engenho, se antedatou a certidão de batismo de Cristóvão. Aqueles com quem falei nada sabem ainda. No entanto, sempre tiveram certeza do que não é.

Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:

— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?

— Temos absoluta certeza – responder-vos-iam à uma

Tinham certeza, e, no entanto, estavam errados.

Sortilégios, adivinhações, obsessões foram durante longo tempo as coisas mais certas do mundo aos olhos de todos os povos. Quanta gente presa dessas ilusões não estava certa do que presumia ver! Hoje acha-se menos em voga essa certeza.

Vem visitar-me um jovem estudante de geometria. Principiante, ainda se acha às voltas com a definição dos triângulos.

— Não é certo – pergunto-lhe – que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos?

— Não só não tenho certeza – responde-me – como nem sequer compreendo claramente essa proposição.

— Demonstro-lhe. Certifica-se, e para o resto da vida.

Eis aí uma certeza muito diferente das anteriores. Aquelas não eram mais que probabilidades que, examinadas, revelaram-se erros. A certeza matemática, porém, é imutável e eterna. Existo. Penso. Sinto. Será isso tão certo quanto uma verdade geométrica? Sim. Por quê? Porque as verdades se provam pelo princípio de que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não Posso existir e simultaneamente não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode ter cento e oitenta graus – a soma de dois ângulos retos – e ao mesmo tempo não os ter.

De mesmo valor são, pois, a certeza física de que existo, de que sinto e a certeza matemática, embora de gêneros diversos.

O mesmo não acontece com a certeza que se funda em aparências ou testemunhos unânimes dos homens.

— Ora essa! Então não estais certo de que Pequim existe?

Não tendes em casa estofos de Pequim! Indivíduos dos mais diversos países e opiniões, que escreveram violentamente uns contra os outros pregando a verdade em Pequim, não vos asseveraram a existência dessa cidade?

— Acho muitíssimo provável ter existido tal cidade.

Mas não apostaria a vida em como exista, se bem não hesite em apostá-la em como os três ângulos de um triângulo perfazem dois retos.

Estampou-se no Dictionnaire Encyclopédique uma coisa jovialíssima.

Sustenta-se lá que, se mo dissesse toda Paris, eu deveria estar tão seguro, tão certo de que o marechal de Saxe ressuscitou, como o estou de que ele venceu a batalha de Fontenoy, quando toda Paris mo assevera. O raciocínio é admirável: Creio em Paris quando toda ela me diz coisa moralmente possível; portanto não devo crê-la quando me diz coisa moral e fisicamente impossível.

Parece que o autor queria rir, e que o outro autor que se extasia ao fim desse artigo escrito contra si próprio também o queria.

Bibliografia

VOLTAIRE. Dicionário Filosófico: texto integral. São Paulo, Martin Claret, 2002.

Gustavo Mockaitis

Professor de biotecnologia, microbiologia e metodologia científica na Faculdade de Engenharia Agrícola da UNICAMP. Apaixonado por ciência e tecnologia, tenho interesse em muitas áreas, desde psicologia até astronomia. Atualmente trabalho com digestão anaeróbia para produção de biogás e outros produtos com valor agregado.

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