O Falso Culpado

A cultura cinematográfica está repleta de ambientes de presídio.
Lugar-comum recorrente – o prisioneiro inocente. Vítima de uma qualquer trama mais ou menos maquiavélica, de um erro do sistema judicial, estes injustiçado faz tudo para se libertar daquela condição.
Recentemente a revista National Geographic publicou o estudo de manuscritos coptas que revelavam a remição do mais famoso dos traidores – Judas. Segundo os investigadores, Judas teria tido um papel essencial, a pedido de Jesus, no processo que levou à condenação de Cristo.
Este reescrever da história é fundamental não só para a própria compreensão dos fenómenos em jogo, como também para que se entenda que as realidades não são sempre como nos as “pintam”, nem tudo é preto-e-branco.
Na maioria das vezes vemos o que queremos ver.

Um dos objectivos do paleontólogo é descobrir os verdadeiros papéis de cada um dos “actores” do “filme” que é a História da Vida.
No século passado o Museu Americano de História Natural de Nova Iorque levou a cabo diversas expedições paleontológicas e antropológicas à Mongólia, mais concretamente ao deserto de Gobi. Descobrir vestígios de mamíferos primitivos e, em última análise, a origem do próprio Homem eram os seus intuitos.
Em 1923 (numa das várias campanhas do MAHN à Mongólia) foi descoberto um esqueleto quase completo de um dinossáurio carnívoro com características excepcionais – apresentava um crânio com mandíbula semelhante a um bico de papagaio.
Este dinossáurio foi encontrado sobre um ninho com ovos, que os paleontólogos pensavam ser de Protoceratops (dinossáurio herbívoro). Devido a associação do dinossáurio carnívoro com os ovos fossilizados, este foi baptizado de Ovirator (“ladrão de ovos”).
Estava descoberto um dinossáurio que se dedicava a roubar ovos!
A verdade científica diz-nos que existiram duas imprecisões nas inferências paleontológicas estabelecidas: a primeira que os ovos eram de Protoceratops e a segunda que o Oviraptor os estaria a roubar.
A primeira inferência, que condiciona a segunda, baseou-se na enorme quantidade de restos fósseis de Protoceratops encontrados no deserto de Gobi. Se foram encontradas enormes quantidades de vestígios ósseos de dinossáurios herbívoros porque não pertencerem os ovos àquela mesma espécie?
A segunda inferência é mais linear – dinossáurio carnívoro encontrado perto de ovos…havia um “crime” a acontecer!
Tínhamos o criminoso e tínhamos o motivo. Víamos o que queríamos ver.

O futuro reservaria um “apelo” neste tribunal paleontológico que absolveria o nosso ladrão-de-ovos.
Nos anos 90 do século passado, Phillip Currie do Museu Royal Tyrrel, descobriu novos ninhos de dinossáurio na Mongólia. Tal como nas primeiras descobertas também desta vez foi possível observar que o Oviraptor estava sobre um ninho. Ovos iguais aos conhecidos em 1923 jaziam nesse ninho. Mas desta vez um dos ovos tinha preservado um embrião. Era um embrião, não de Protoceratops, mas de…Oviraptor!
Estudos posteriores permitiram completar este puzzle – uma mãe (ou pai) Oviraptor havia sido surpreendida por uma tempestade de areia que a havia soterrado e aos ovos.
Desta forma o Oviraptor foi absolvido do seu “crime” – de ladrão de ovos passou a mãe/pai extremosos.
O caso do Oviraptor não foi um erro de casting. Foi apenas uma interpretação apressada, condicionada por aquilo que se queria ver.
Era um guião demasiado complexo para uma única leitura – a História da Vida na Terra.
Tal como o culpado nem sempre é o mordomo, também muito menos o foi o Oviraptor…

P.S.- o título remete para o filme de 1956 Wrong man (“O Falso Culpado”) de Alfred Hitchcock.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 20/04/2006)

Discussão - 1 comentário

  1. rosa disse:

    Estando a googlar sobre o filme O falso Culpado, de Hitchcock, deparei-me com este texto: bem, não era o que estava à procura, mas ainda bem que o li!
    A relatividade da culpa e da inocência , como analogia para as interpretações apressadas (ou não - algumas interpretações perduram por séculos ou milénios... veja-se o geocentrismo, por exemplo) é interessantíssima, quando aplicada aos dinossáurios.
    Gostei muito de o ler!

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