Dodós modernos?
Num momento de intenso debate sobre o futuro de uma área importante da cidade de Lisboa, da qual fazem parte os Museus da Politécnica – Museu de História Natural e Museu da Ciência – bem como o Jardim Botânico, retomo um artigo que publiquei em Outubro de 2006.
(Publicado no jornal O Primeiro de Janeiro a 12/10/2006)
O drama biológico do Dodó é sobejamente conhecido – ave originária das ilhas Maurícias e parente dos actuais pombos, não voava e não tinha qualquer receio da espécie humana.
Estes dois factos terão estado na origem da sua extinção no séc. XVII.
O Dodó extinguiu-se porque não foi capaz de se adaptar às alterações introduzidas no seu habitat pela pressão de um factor externo – a actividade humana.
Não tenho a certeza da validade da metáfora do Dodó para os Museus de História Natural mas, tal como o primeiro, estes últimos encontram-se, a nível mundial, a atravessar um momento de forte pressão “ambiental”.
Durante a minha escola primária tive duas ou três visitas ao Museu Zoológico da Universidade de Coimbra. Foram momentos de pura felicidade em que nos deslumbrámos com numerosas espécies empalhadas, só o esqueleto ou conservadas dentro de frascos.
Foi o meu primeiro contacto com parte daquilo que se entende por um Museu de História Natural (MHN).
Este conceito emanou do de Gabinete de Curiosidades (séc. XVI) em que os profissionais das ciências biológicas acumulavam exemplares biológicos (esqueletos, conchas, peles, flores, etc.) de “fora” com o objectivo não só de os preservarem mas igualmente de os utilizarem como materiais de estudo para os seus alunos. Isto ocorreu numa época em que os cientistas naturais começavam verdadeiramente a construir o seu campo de investigação.
Posteriormente e com o apogeu dos Exploradores Naturalistas no século XIX – exemplo paradigmático é o de Darwin – as colecções dos MHN são ampliadas com espólio proveniente de diversas partes do mundo, “servindo” não só a ciência como igualmente a curiosidade do habitantes das metrópoles relativamente a tudo aquilo que vinha das colónias.
FUNÇÕES DE UM MHN
INVESTIGAÇÃO/COLECÇÕES
É fundamental que qualquer MHN tenha uma política de estudo das suas colecções bem como profissionais especializados (biólogos, paleontólogos, antropólogos) nos seus quadros capazes da organização, catalogação, inventariação e estudo do espólio natural.
O estudo das colecções por parte de investigadores deve ser uma das principais linhas de orientação de qualquer MHN.
Prova desta importância é o Programa Synthesys, suportado pela União Europeia e que possibilita a mobilidade de investigadores de diversas áreas (genética, zoologia, paleontologia, antropologia, etc.) a diversos MHN europeus. Desta forma se pode estudar o Património Natural europeu, permitindo o conhecimento cada vez mais amplo da História Natural.
Segundo Keith S. Thomson, director do Museu Universitário de Oxford, as colecções de um MHN devem ter três objectivos principais:
–Informação – as colecções devem constituir uma enorme biblioteca dos seres vivos que já habitaram e habitam o nosso planeta. Por exemplo um investigador em farmacologia deve poder localizar os “parentes” de determinada planta que tenha um efeito medicinal; um biólogo molecular poderá encontrar o ADN de uma espécie extinta e compreender melhor a evolução do património genético desse ser vivo; um agrónomo poderá estudar determinado insecto ou planta resistente a uma doença para uma possível cura;
Desta forma o Património Natural, passado e presente, que são as colecções de um MHN constitui a base da investigação em áreas científicas fundamentais tais como: evolução, ecologia, alterações climáticas, biogeografia, etologia e, se incluirmos as ciências humanas, aspectos culturais humanos.
–Identificação – todo o objecto de uma colecção de um MHN deve estar correctamente identificado e catalogado e, consequentemente, enquadrado quer temporal quer espacialmente – onde, como, quando e por quem foi colhido, são informações absolutamente fundamentais. Sem estas informações bem como a posterior descrição e enquadramento taxonómico, o exemplar fica desenquadrado e praticamente sem valor científico embora possa ser utilizado para fins de divulgação/exibição. Para além do referido é necessário a actualização do enquadramento da classificação.
–Comparação – para além de todos os exemplares, alguns colectados há mais de 200 anos, actualmente também se “arquivam” amostras de ADN e tecidos biológicos. Por intermédio do estudo comparativo, os investigadores analisam exemplares de diversos pontos geográficos e de várias idades, não só em busca de padrões de fenómenos naturais como também identificar as suas causas e prever o seu curso futuro.
No meu caso pessoal, permite-me estudar e digitalizar os restos fossilizados dos dinossáurios saurópodes, sejam espécies sul-americanas, asiáticas ou africanas, com vista à compreensão da evolução daquele grupo de animais extintos.
Como se pode compreender os MHN têm um papel fundamental não só na protecção da Biodiversidade como da sua compreensão, quer a passada quer a presente, com vista a um melhor futuro ambiental.
DIVULGAÇÃO/EDUCAÇÃO
Para além das funções de investigação e preservação do Património Natural, um MHN deve constituir um espaço acessível de educação científica em diversos campos e a diversos níveis. Protecção do Património Natural, Educação Ambiental e Educação para a Cidadania são áreas em a intervenção destes espaços museológicos deve ocorrer.
Apesar de todo o potencial atractivo de que gozam e sempre gozaram os MHN, também enfrentam hoje em dia uma série de desafios que passam pelos “inimigos” de muitas áreas: a Televisão, a Internet, entre outros.
Hoje em dia podemos observar quase tudo e de uma variedade enorme de maneiras. Os MHN
têm assim que ter a capacidade de reagir às exigências dos novos públicos, cada vez mais informados e exigentes. Estes públicos procuram saber mais do que o nome e a proveniência quando visitam uma exposição de história natural – procuram saber qual o papel daquele actor natural no seu ambiente natural; qual o papel que essa entidade natural tem ou teve na vida actual do visitante. Este conjunto de informações deve também procurar evitar um dos perigos comuns – o do espírito parque temático como a Disneylândia.
Cada vez mais na base na base de uma exposição de história natural devem estar ideias e temas actuais, mais do que as colecções.
Estas devem servir antes para contar uma história do que serem elas próprias a história.
Os MHN têm, assim, que se adaptar a novas realidades para que não sejam eles próprios novos Dodós.
Tenho trabalhado e feito investigação em diversos Museus de História Natural mundiais – de Nova Iorque a Marraquexe, de Berlim a Trelew na profunda Patagónia, passando por Londres e Pequim.
Encontrei condições de trabalho muito diferentes; profissionais melhor preparados que outros; espaços físicos maiores ou mais pequenos; de estilo clássico ou do mais puro vanguardismo arquitectónico.
Mas em todos eles se procura preservar, compreender e divulgar o Património Natural nas suas diversas vertentes para que um dia saibamos não só o que foi um Dodó mas também porque não podemos observar um hoje em dia.
Imagens – daqui e Luís Azevedo Rodrigues
Referências
Keith S. Thomson. Natural History Museum Collections in the 21st Century. – daqui
Discussão - 0 comentários