Saudável Liberdade
José estava mais do que preparado para o embate que se avizinhava – a entrevista de emprego.
Nos últimos dois anos, para além de inúmeros contactos pessoais e envio de CV’s, tinha-se preparado afincadamente para o momento: cursos, especializações e até umas aulas de mandarim lhe haviam ocupado o tempo sem trabalho.
Sentou-se, carregado da sua competência, formação e atitude.
“O senhor fuma?”, perguntou o inquisidor laboral.
“Já uma pausa?”, pensou José. “Sim, fumo.”, respondeu em tom agradecido.
“Humm…Então parece que a entrevista vai ter que ficar por aqui. Sabe, a nossa empresa tem a política de não contratar fumadores. Escuso já de ver o resto do seu CV.”, debitou monocordicamente o ex-futuro-empregador.
Actualmente nos E.U.A. existe já um número considerável de empresas que negam trabalho a fumadores, chegando a realizar análises sanguíneas para se detectarem eventuais vestígios de nicotina.
Se não se podem negar os malefícios do tabaco, mas esta cruzada da saúde esconde outro tipo de controlos. Agora é o tabaco, amanhã o sal ou o açúcar, e num futuro mais próximo do que antevemos, iremos ter que provar geneticamente se desenvolveremos Alzheimer, quais as probabilidades de contrairmos cancro numa idade precoce, ou mesmo a disposição para votarmos num determinado partido.
No passado, a purificação da raça foi lema de algumas mentes doentes. Hoje, são as mentes da saúde que procuram a pureza dos genes.
Atentar contra a liberdade individual é mais fácil (e mais barato) do que educar os indivíduos para o livre arbítrio.
Relato agora um diálogo que há tempos tive com a minha cardiologista, tinha a Assembleia da República acabado de legislar sobre os teores de sal nos alimentos.
A Liberdade e a Cardiologista
Abandonei o silêncio penitente a que se remetem os pacientes.
Farto da parede muro-das-lamentações que me tapava a vista, falei.
“E o sal, doutora?”.
Não o meu; o da Assembleia da República.
“Legislaram bem. Apesar de não ser original, já que os teores de sal são já controlados em muitos alimentos…Olhe, até nos refrigerantes eles põem sal!”.
Reforçou o argumento espetando-me o peito com maior intensidade.
“Bem…”, ganhei balanço, entre empurrado pelo desconforto do ecocardiógrafo.
“Não se trata só de uma questão de Saúde Pública. É também uma questão de liberdade individual, de escolha pessoal. A seguir vem o quê? A cor dos meus boxers?”.
Agradeci encontrar-me num cardiologista e não num urologista, já que a estética cromática é uma lacuna grave da minha personalidade.
“Liberdade? O senhor sabe o custo para os contribuintes do consumo excessivo de sal? Sabe que o cancro do estômago está relacionado com teores de sal na urina, que por sua vez reflectem o consumo de sal? É caríssimo, não há dinheiro. É preferível cortar essa pequena liberdade!”.
Num instante, o meu miocárdio deve ter posto a língua de fora porque a médica me perguntou:
“Tem andado a sentir-se bem?”.
Maldita tecnologia, pensei. Não dá a mínima hipótese, qual detector de mentiras.
“Claro que tenho, doutora. O meu dealer salino está em promoções!”.
Imagem: daqui
Discussão - 1 comentário
Gostei muito do texto!
Um abraço, João Cascalho