Duas histórias familiares
Esses dias conhecemos pessoalmente o Gustavo Cerbasi numa palestra no Salão do Livro, iniciativa louvável do pessoal da Livraria Ideias para tirar Tangará do marasmo cultural. De quebra ainda ganhamos a edição nova do “Dinheiro: os segredos de quem tem” com dedicatória e tudo e saímos para jantar com o Cerbasi. Desde a palestra ficamos pensando num modo de compartilhar aquilo tudo.
Era uma vez dois amigos que cursavam a faculdade juntos, vamos chamá-los de Artur e Beto. Eles se conheceram no laboratório que estagiavam e seguiram carreiras paralelas pela vida toda. Os dois receberam sua primeira bolsa de iniciação científica juntos, vinham de famílias sem muitos recursos, mas que sempre valorizaram a educação. Artur, no entanto, não teve educação financeira em casa, ao contrário do Beto. Ele se impos o desafio de guardar, desde a primeira bolsa, 10% daquilo que ganhava. Beto estudou um pouquinho e encontrou uma aplicação com rentabilidade de 0,5% ao mês acima da inflação. Esse valor é até realista, mesmo que você não seja muito ligado na economia e não esteja muito disposto a correr riscos.
Ainda na graduação os tempos eram difíceis para os dois. As refeições eram no bandejão, balada no botequim de cerveja barata. A única diferença é que o Artur ia mais ao cinema enquanto o Beto trocava pela locadora. A república do Beto também era um pouquinho mais barata, não tinha churrasqueira. Eram tempos de aperto e era necessário dirigir os gastos para o realmente prioritário: cerveja e mulheres, claro. De resto a vida dos dois era igual. Na formatura Beto havia economizado a assombrosa cifra de R$ 1.017,28. Ok, não é muito, mas é um começo. O importante foi a determinação do Beto e o compromisso que assumiu com seu futuro. Artur não tinha nada.
No mestrado os R$ 1500,00 da bolsa eram uma verdadeira fortuna para quem vivia com R$ 400,00. Artur logo afrouxou os gastos e aprendeu a viver justinho com o valor da bolsa. Não que ele não guardasse, mas suas economias tinham a meta limite do carnaval seguinte. Uma vez o Beto abriu mão de um congresso em Porto Seguro. No dia da defesa ele tinha guardado R$ 4.961,43. Artur defendeu pouco depois dele, mas não tinha nada guardado.
Os dois amigos voltaram a conviver muito no doutorado, que fizeram no mesmo laboratório. Artur, já fazia alguns meses, fechava o mês devendo quase R$ 500,00, então o aumento da bolsa de doutorado para R$ 2200,00 foi um alívio, em alguns meses ele quitou as dívidas. Beto também melhorou bastante de nível de vida, mas continuou guardando 10% do que ganhava. Ele estava namorando firme, então essa economia toda saiu da divisão do aluguel do apartamento com a namorada. Artur também havia comprado um carro. Já passava da hora, era o que diziam. As prestações ele até pagava, mas como pesavam o combustível, seguro e impostos. Quatro anos depois os dois defendiam suas teses. Beto tinha no total R$ 18.204,96. Artur não.
Os dois tiveram muita sorte, passaram rápido em concursos federais. As vagas pareciam ter sido feitas para eles, não foi difícil superar os concorrentes. Os dois estavam empregados poucos meses após defenderem, compraram uma casa legal com o novo orçamento de R$ 8300,00. A de Artur era um pouco maior com uma área de lazer para fazer amigos na cidade nova. Também compraram carros novos. A diferença é que o Artur sabia que recebia 8300,00, enquanto o Beto colocou na cabeça que recebia 7470,00. Beto decidiu não aumentar mais sua contribuição mensal. Com a progressão da carreira seu salário aumentaria, mas ele manteria o investimento em R$ 830,00.
Foram-se 35 anos de trabalho para os dois. Artur certamente tinha construído algumas posses, como um apartamento pequeno alugado, mas a disciplina de Beto tinha recompensado melhor. Artur teve uma forte queda no padrão de vida com a perda de alguns benefícios na aposentadoria. Para evitar isso e a dependência dos filhos passou a dar aulas numa universidade particular. Beto tinha somado um capital de R$ 1.128.885,82. Aplicados com os mesmos 0,5% de rendimento mensal acima da inflação esse valor geraria R$ 5644,43, além da aposentadoria pelo INSS. Isso significa que o Beto poderia sacar esse valor todo mês sem nunca dilapidar o patrimônio que construiu. Ele pensava em deixar para os filhos ou criar uma bolsa de estudos para jovens cientistas promissores. Seu padrão de vida continuou aumentando depois da aposentadoria e permitiu que ele pudesse escolher como, onde e se queria continuar trabalhando.
É a mágica dos juros compostos. Os 10% que o Beto investiu é um valor proposto por alguns especialistas (não pelo Cerbasi), mas é meramente cabalístico. Pode ser menos, pode ser mais. Começar só no mestrado ou no doutorado. Pode-se começar com 5% e ir aumentando ao longo da vida, pode ser variável. O importante é a disciplina do Beto, sua iniciativa de começar cedo. Funcionou para ele. Funciona para você também.
Discussão - 3 comentários
Um detalhe importante: 0,5% ao mês é praticamente o que a inflação come de valor de nossas economias. Desta forma, se o rendimento de 0,5% for sacado todo mês, o patrimônio sofre uma dilapidação de 0,5% ao mês. O correto seria sacar apenas a parte do rendimento que supere a inflação, mas com a inflação batendo nos 0,54% ao mês (jun/2012~jun/2013), o "saque" seria negativo... Com essa inflação, nossas alternativas acabam sendo procurar investimentos que apresentam mais risco ou dão mais trabalho para gerenciar. Eu acho que a grande vantagem financeira para o poupador ocorre por não precisar pagar juros quando compra um eletrodoméstico, carro e talvez até uma casa. Nestes casos dos juros a pagar (+ taxas) os valores costumam superar em muito a inflação.
Tem toda a razão, Maximus. Acabei deixando implícito que é um rendimento mensal de 0,5% ACIMA DA INFLAÇÃO, vou complementar isso no texto. De todo modo a coisa permanece igual. 0,5% acima da inflação não é um valor irreal, é na verdade bem plausível. Além da inflação, precisamos lembrar ainda da mordida do leão do imposto de renda e da taxa de administração para muitos dos investimentos. Também vale lembrar que esse 0,5% foi a rentabilidade média desses anos todos de investimento. É possível que o Beto tivesse anos de 0,1% que seriam compensados no futuro por anos com 0,9%. Foi uma simplificação, claro, por isso, aliás, continuem acompanhando o Cientista S/A que vamos continuar falando do tema com outros casos menos simplificados.
[...] http://scienceblogs.com.br/cientistasa/2013/07/duas-historias-familiares/ [...]