O Misterioso Monstro de Tully

Não tão famoso mundialmente quanto o Monstro do Lago Ness, mas pelo menos, muito melhor documentado.

O Misterioso Monstro de Tully  (e suas lições para Paleontologia):

Diferente do lendário monstro escocês, o Monstro de Tully é um fato. 

Encontrado unicamente na região de Illinois, Estados Unidos, a criatura bizarra acabou por tornar-se símbolo desse Estado americano.

O tal monstro desafia a literatura da zoologia de invertebrados:

Trata-se de uma criatura de corpo mole, fusiforme, segmentado e com um longo rostrum, que mais se assemelha a uma tromba. Essa ‘tromba’ é coroada por uma boca em pinça, com duas estruturas em formato de ‘garras’. Dois prolongamentos com função desconhecida se projetam lateralmente da sua parte ventral, assim como um achatamento e alargamento lateral de sua região posterior formam de uma espécie de “nadadeira”.

Os maiores exemplares não ultrapassam 35 cm de comprimento, e o mais interessante: nenhuma outra criatura viva ou fóssil já encontrada se assemelha a esse animal…

Afinal:

O QUE É O MONSTRO DE TULLY??

 

E PORQUE “MONSTRO“??

 

Sem pânico. Eles não são criaturas sugadoras de cérebros ou devoradores de carne rastejantes e asquerosos. Apesar do nome e de sua descrição levarem a uma quase imediata associação aos filmes trash de monstros dos anos 70 e 80…

O “Monstro de Tully”, na verdade, é conhecido somente por meio de fósseis.

Pois é, não fique tão decepcionado…

A foto acima não passa de uma brincadeira. Uma brincadeira muito bem bolada, devo admitir!

O autor da pegadinha é Bryan Patterson, então professor da Universidade de Havard, que enviou esta foto ao colega Eugene Richardson, do Field Museum of Natural History, no Natal de 1968. A foto vinha com a seguinte legenda: “O fim da caçada”.

A graça da brincadeira estava no ar de mistério que então envolvia os fósseis apelidados de “Monstros de Tully”: Ninguém fazia a menor ideia do que ele se tratava.

Eugene foi quem apresentou à Bryan esta criatura pela primeira vez.

Bryan ficou tão impressionado e intrigado com o animal misterioso, que resolveu pregar uma peça no colega. Inventou uma fantasiosa história sobre estranhos “vermes dançantes” em Turkana, na África, que tratar-se-iam de criaturas muito semelhantes ao tal “Monstro de Tully”…porém ainda viventes.

A história do fóssil era tão problemática, que a possibilidade de existirem animais viventes aparentados seria simplesmente fantástica! Porém, foi tudo uma brincadeira. A foto criada por Patterson representaria o registro de uma bem sucedida caçada ao animal fantasioso.

A descoberta do monstro

Mr. Francis Tully e seu ‘monstro’

Descobertos no final da década de 1950 por Francis Tully em uma mina próxima a Braidwood, Estado de Illinois, os fósseis desse estranho animal deixaram perplexos os pesquisadores da época. Aparentemente abundantes no registro local, mas distintos de qualquer outro ser vivente ou fóssil conhecido até então, não havia como estabelecer qualquer  afinidade para a criatura.

Perante o mistério que envolvia o animal, ele foi apelidado de “Mr. Tully’s Monster” e depois, batizado formalmente por Eugene Richardson como Tullimonstrum gregarium, uma forma latinizada do apelido informal recebido anteriormente (“gregarium” significando “comum”).

Aparentemente encontrado única e exclusivamente no Estado de Illinois (EUA)Tullimonstrum provém de depósitos estuarinos com idades de 300 milhões de anos (Período Carbonífero). –> Nessa época, por exemplo, os vertebrados encontravam-se ainda no início de sua conquista do ambiente terrestre e enormes florestas de samambaias e licopódios prosperavam ao redor do mundo.Estas imensas florestas, que viriam a formar as nossas mais ricas reservas de carvão mineral.

Uma excepcional preservação

Os fósseis de Tullimonstrum foram preservados de uma maneira muito especialAnimais de corpo mole são raros no registro fossilífero, enquanto que partes duras, mineralizadas (como conchas, ossos, escamas e dentes) são mais recorrentes porque resistem mais facilmente aos processos tafonômicos (i.e. necrofagia, decomposição, desarticulação, sepultamento, etc.). Então o que pode ter havido com os fósseis de Tullimonstrum?

Tullimonstrum pertence a uma famosa assembléia fóssilífera de animais de corpo mole e plantas muito bem preservados provenientes de uma unidade conhecida como como Mazon Creek. Devido a qualidade excepcional de seus fósseis, Mazon Creek é considerada um Konservat-lagerstätte (clique aqui e leia mais sobre isso).

Condições químicas especiais no ambiente de fossilização é que favoreceram a preservação detalhada de tantas plantas e invertebrados. Íons dissolvidos na água salgada reagiam com a lama e a matéria orgânica dando início a formação de um nódulo ao redor dos corpos sepultados de organismos (Veja a foto a seguir). Foram esses nódulos, compostos de siderita, que ajudaram na preservação do registro da vida antiga. Hoje eles são encontrados entremeados em um pacote de folhelho, que apresenta entre 25 e 30 metros de espessura e é recoberto por uma valiosa camada de carvão.

Tulimonstrum, molde e contra-molde

Esquesitice inigualável

Sem dúvida, Tullimonstrum é o maior incertae sedis até hoje. Mesmo depois de décadas desde o seu descobrimento e milhares de exemplares bem preservados terem sido coletados, não foi possível reconhecer qualquer caráter compartilhado com filos modernos. Semelhanças, todavia, já foram observadas em fósseis de idade Cambriana, como Opabinia* e Vetustovermisporém tais apontamentos não passaram de especulações até agora. Nenhum estudo se aprofundou nessa questão.

Sua bizarrice é tamanha, que tornou-se carismática. Acabou por virar uma lenda da Paleontologia. Trata-se de um dos principais exemplos sobre as mais diversas e excêntricas experimentações da vida durante sua radiação e evolução no planeta. Quantos grupos de organismos não terminaram em uma um “beco sem saída” como o Tullimonstrum? Seria ele um dos últimos raros sobreviventes de um filo de origem Cambriana?

As lições do monstro

O monstrinho de Tully nos deixa algumas lições:

A Paleontologia é sempre cheia de lacunas. Principalmente  aquela que estuda os invertebrados.

Temos que lembrar, que o registro fóssil é descontínuo! Tanto no tempo, quanto no espaço… e que, além disso, e talvez PRINCIPALMENTE, sofre um desvio brutal por aquilo que chamamos de processos tafonômicos (leia mais sobre isso AQUI e AQUI ***). Esses, muito mais cruéis com os pobres animais de corpo mole….

O que conhecemos por meio dos fósseis hoje, é apenas a pontinha de um gigantesco iceberg de tudo que já existiu.

Se as afinidades mais próximas de Tullimonstrum realmente forem com criaturas de idade Cambriana, pelo menos mais de 210 milhões de anos de história desse grupo de animais se passou sem que um único fóssil de um representante de sua linhagem fosse preservado.

É bem provável que nunca teremos conhecimento de uma imensa quantidade de páginas da história da vida e é um fato, que milhares de personagens se perderam para sempre. No meio dessa história, o monstro de Tully vai continuar sendo um mistério… até que a próxima peça do quebra-cabeça seja revelada.

Referências

Johnson, R.G, and Richardson, E.G. 1969. Pennsylvanian invertebrates of the Mazon Creek area, Illinois: The morphology and affinities ofTullimonstrum. Fieldiana: Geology  12 (8): 119–149.
Nash E.G. 1968.  The quest for the dancing worm. Bulletin of the Field Museum of Natural History 39(4): cover + 4-6http://archive.org/details/cbarchive_107413_thequestforthedancingworm1966
Richardson, E.G. 1966. Wormlike Fossil from the Pennsylvanian of Illinois. Science 151(3706): 75-76
Richardson, E.S. The tully monster. Bulletin of the Field Museum of Natural History 37(7): cover + 4-6.  July 1966 <http://archive.org/details/bulletin37312fiel>