Todos os posts de Aline Ghilardi

Aline é bióloga, especialista em paleontologia de vertebrados e criadora da rede de divulgação científica "Colecionadores de Ossos". Atualmente é professora adjunta de Paleontologia do Departamento de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, RN.

Os Sobreviventes

A história da vida na Terra tem em torno de 3.8 bilhões de anos, mas devo enfatizar que esta não foi uma jornada fácil. Mesmo espécies bem sucedidas por milhares ou centenas de milhares, até mesmo milhões de anos, estiveram altamente suscetíveis aos mais catastróficos e devastadores eventos de extinção do nosso planeta (5 no total). A lição de humildade: Todos somos criaturas efêmeras – querendo ou não -, frágeis e vulneráveis ao completo desaparecimento.

Espécies mamalianas não costumam durar mais que um milhão de anos antes de desaparecerem por completo ou serem substituídas por outras melhor adaptadas a um ambiente particular. Isso também vale para outros grupos de vertebrados e muitos invertebrados. Porém, vez por outra, a evolução tira a sorte grande. Um determinado tipo de organismo, sem sofrer extraordinárias modificações morfológicas, pode rasgar o tempo e sobreviver por eras, quase como se a espécie tivesse sido transportada por uma máquina do tempo. Estes são verdadeiros sobreviventes, e o seu tempo no Planeta Terra é contado por dezenas ou até centenas de milhões de anos. São organismos tão respeitáveis, que sobreviveram até mesmo aos golpes mais duros dos piores eventos de extinção em massa. Darwin os nomeou de “fósseis vivos” – oxímoro que também sobreviveu por quase um século e meio até cair em desuso no meio científico.
 
Fóssil de Carangueijo-ferradura e seu repressentante vivente
 
Pegue o exemplo extremo dos estromatólitos – associações microbianas que formam acumulações sedimentares caracteristicamente estratificadas (Veja fotografia). Eles são encontrados em poucos lugares inóspitos do planeta hoje em dia, como Shark Bay na Austrália. Suas estruturas laminadas são virtualmente indistinguíveis daquelas encontradas no registro fóssil por todo mundo, cuja idade pode ter até 3.45 bilhões de anos, quando a vida no planeta ainda era ‘recém-nascida’.
Estromatólitos atuais em Shark Bay, Austrália
Fósseis de Estromatólitos
Outro exemplo bastante impressionante é o do braquiópode Lingula. Braquiópodes são animais marinhos de corpo mole que foram muito abundantes durante o Paleozóico. Eles são compostos por duas valvas ornamentadas (conchas), a semelhança dos moluscos bivalves atuais, porém possuem simetria diferenciada. Lingula, em particular, tem o seu nome devido à semelhança ao formato à língua humana. Apesar de seu desenho ser tão simples e o animal não ter nada de extraordinário, Lingula foi muito bem sucedida e está presente no Planeta Terra há mais de 500 milhões de anos.
Lingula atual e Lingula ordoviciana
Lingula atual
Outros sobreviventes são mais carismáticos, apesar de menos extremos:
Podemos citar o Límulo ou carangueijo-ferradura, que sobreviveu quase inalterado por mais de 450 milhões de anos, ou os celacantos, um grupo de peixes de nadadeiras lobadas, aparentado dos peixes pulmonados, que está no planeta há aproximadamente 400 milhões. – Os próprios peixes-pulmonados permanecem sem grandes mudanças há mais de 220 milhões de anos.

Carangueijo-ferradura (Limulus) atual
Carengueijo-ferradura fóssil
Celacanto atual e fóssil
É fascinante a idéia de mergulhar no tempo profundo e encontrar criaturas que sobreviveram por tão longo período, enquanto galhos inteiros da árvore da vida foram ceifados. Porém é triste observar, que alguns sobreviventes extremos não consigam ultrapassar a barreira da presença humana no planeta. Nós, Homo sapiens sapiens declaramos a grande Sexta Extinção em Massa. – Mais uma vez, após 60 milhões de anos, a taxa de extinção de espécies ultrapassa a taxa evolutiva (“criação” de espécies). A taxa média de extinção extrapola e muito a chamada ‘taxa de extinção de fundo’ e centenas de espécies desaparecem antes mesmo de serem conhecidas pela Ciência.
O Náutilo, um raro cefalópode com concha, único sobrevivente de um ramo muito diverso de organismos que preencheram os mares mesozóicos, está hoje em perigo iminente. O ilustre sobrevivente da extinção cretácica (aquela que pôs fim não só aos dinossauros não-avianos, mas também a outra série de organismos extraordinários, como os grandes grupos de répteis marinhos e pterossauros) pode desaparecer pelas mãos humanas, graças à pesca excessiva, e principalmente a pressão da indústria turística, atraída pelas suas conchas peroladas.
Nautilus
Nautilóide fóssil
 
A vingança dos ‘verdadeiros sobreviventes’ virá, todavia, com muita ironia: O mundo será das baratas, os animais mais prováveis a sobreviverem ao Apocalipse Nuclear ou a qualquer outra catástrofe que possamos imaginar que venha a destruir o nosso reinado primata. Elas estão quase imutáveis, morfologicamente dizendo, há mais de 300 milhões de anos e fornecem um lembrete desgostoso da fragilidade de nossa própria espécie. Onde está a ‘superioridade evolutiva’? Existe ‘superioridade evolutiva’?
Apesar do exemplo desses fortuitos sobreviventes, é importante enfatizar que o fato de possuir uma característica adaptativa bem sucedida não é garantia de sobrevivência na certa. É preciso muita sorte também. A nossa suposta inteligência primata pode ser uma boa arma na competição evolutiva, mas também dependemos da causalidade. Incontáveis vezes na história biológica do Planeta Terra, inovações evolutivas extraordinárias foram silenciadas por eventos catastróficos inesperados. A história biológica, portanto, poderia ter sido completamente diferente e, sob esta perspectiva, somos um verdadeiro milagre.
Da mesma forma, é importante salientar, que a aparente imutabilidade morfológica não significa a ausência do processo evolutivo propriamente dito. A morfologia do animal apenas reflete parte das mudanças ao longo do tempo geológico. A evolução procede majoritariamente de forma invisível aos olhos humanos, dentro das cadeias de moléculas que regem o que é o ser. Apenas algumas alterações tornam-se visíveis, ou macroscópicas, quando expressas fenotipicamente. A maior parte das mutações permanece obscura, na forma de deleções, inserções e trocas mudas no DNA. A aparência do animal pode ser ‘primitiva’, mas ele não deve ser considerado dessa forma. A respeito de tempo, ele esteve constantemente evoluindo, e não parado no tempo. A diferença é o equilíbrio ou constância de seu plano morfológico: se ele funciona muito bem para os seus propósitos, não há porque alterá-lo. A evolução, dessa forma, procede de ‘maneiras misteriosas’, rastreadas com auxílio de estudos genéticos aplicados.
Não há um ápice evolutivo. A evolução não segue um caminho. De acordo com o tabuleiro do jogo, determinados jogadores serão mais bem sucedidos que outros – até que haja uma reviravolta. A evolução sempre tem um ‘porém’. Esses caras aí em cima, até agora têm sido supremos vencedores, lugar no pódium que muito dificilmente macacos com polegares opositores poderão conquistar enquanto tomarem atitudes coletivas tão pouco inteligentes como as quais temos demonstrado em massa nos últimos milênios. A vangloria de nossa própria civilização – o progresso – nos colocou numa ‘barca furada’. Nós já apertamos o gatilho e seremos nossos próprios algozes. Estamos correndo contra o tempo pela nossa própria sobrevivência. Uma grande ironia.

Estromatólitos recentes
Richard Fortey acabou de lançar um livro que discorre exatamente sobre essa temática, chamado ‘Survivors’. Está atualmente disponível somente em inglês e dificilmente será traduzido tão cedo para o português. Richard Fortey ficou famoso no Brasil pelo seu livro “Vida, uma biografia não autorizada”. Seu jeito leve e descontraído de escrever conquistou dezenas de milhares de leitores pelo mundo. Sua literatura é acessível tanto para profissionais das ciências geológicas e biológicas, como os não formalmente introduzidos na área. Vale a pena conferir, já está disponível pela Amazon.com.

Xixi de Dinossauro? – O Paleo-deserto Botucatu Parte IV

Dando continuidade a série de posts sobre os icnofósseis da Formação Botucatu (Veja as outras publicações AQUI), hoje vamos apresentar a última parte da história: A verdade sobre o URÓLITO, o vulgo “xixi fóssil”.

 
Figura 1. Laje de arenito com preservação de extrusão líquida: Urólito. Foto por Marcelo Adorna Fernandes.
 
A descoberta foi feita em Araraquara, interior de São Paulo. Trata-se da primeira evidência de que os dinossauros pudessem urinar.
 
Marcelo Adorna Fernandes (paleontólogo e professor do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da UFSCar) e sua esposa, Dra. Luciana Bueno dos Reis Fernandes, descobriram no ano de 2001, em uma pedreira local de Araraquara, nos arenitos da Formação Botucatu, uma marca fossilizada supostamente deixada pela urina de um dinossauro. Essa estrutura preservada, com cerca de 140 milhões de anos (Período Jurássico), foi analisada pelo paleontólogo especialista em Coprólitos (fezes fossilizadas), Dr. Paulo Roberto de Figueiredo Souto, da UFRJ, Rio de Janeiro, que confirmou a identificação inusitada.
A descoberta de Marcelo e Luciana foi apresentada pelos pesquisadores à comunidade científica em congressos nacionais e internacionais, até que em 2004, eles e o Dr. Paulo Souto finalmente publicaram o achado na Revista Brasileira de Paleontologia (acesse o artigo AQUI).
 
Até então a única evidência da ocorrência urina associada a dinossauros havia sido apresentada à comunidade científica no ano de 2002, durante o 62o Congresso da Sociedade Norte Americana de Paleontologia de Vertebrados em Oklahoma, nos Estados Unidos, por um casal de geólogos, McCarville & Bishop. Nenhum trabalho científico foi publicado desde então e nem tão pouco sugerida uma terminologia específica para classificar essa estrutura de escavação produzida por fluxo de líquido dessa natureza.
 
Figura 2. Imagem retirada do site “Ciência Hoje”.
 
O termo urólito, composto por duas palavras de origem grega, “uro” que significa urina e “lithos” que significa pedra, foi sugerido para nomear a estrutura com 34 cm de comprimento; trata-se de uma pequena cratera elíptica de escavação provocada pelo impacto de líquido em queda, com um escorrimento de sedimento depositado gravitacionalmente em um plano inclinado (Figura 1, 3 e 7).
 
Figura 3. Urólito – Por Marcelo Adorna Fernandes.

 

As pegadas deixadas por dinossauros ornitópodes e terópodes que caminharam através das dunas do paleodeserto são bem diferentes da estrutura correspondente ao urólito. Ao caminhar, os animais compactavam a areia onde pisavam, deixando preservadas, além da depressão da pegada, uma elevação em forma de meia-lua nas bordas de maior esforço.
 
Figura 4. Pegada de dinossauro terópode da Fm. Botucatu. Foto por Marcelo Adorna Fernandes.
 
Simulando-se as condições pretéritas, um simples teste experimental foi realizado, onde certa quantidade de água foi derramada em um plano inclinado, o que produziu uma estrutura de escavação e escorrimento muito semelhante ao urólito (Foto abaixo).
 
Figura 5. Ao derramar-se certa quanti
dade de líquido em um plano inclinado, a estrutura formada é semelhante a do urólito. Foto por Marcelo Adorna Fernandes.
Os estudos referentes a paleofauna da região atestam a presença de pequenos mamíferos e de dinossauros, porém o urólito só poderia ter sido produzido por animal de médio à grande porte, neste caso só poderia ser um dinossauro.
 
Comparando e analisando o comportamento de aves ratitas atuais, como o Struthio camelus (avetruz), foi possível verificar um forte fluxo de extrusão líquida (urina) produzida por estes animais antes da excreção da parte sólida. Nos avestruzes, antes da eliminação, a urina fica armazenada no urodeum, que tem uma função semelhante à bexiga urinária dos mamíferos. A parte sólida fica armazenada no coprodeum e são eliminadas posteriormente à eliminação da urina. Assumindo que certos grupos de dinossauros tivessem uma fisiologia parecida a do avestruz, eles poderiam provocar uma erosão na superfície do sedimento inconsolidado quando eliminassem certas quantidades de líquido na forma de urina.
 
Figura 6. Extrusão líquida em avestruzes. Foto por Marcelo Adorna Fernandes.
Uma bexiga urinária nos tetrápodes é muito importante na conservação de água sendo que em alguns grupos de animas como sapos, rãs, pererecas, jabutis e em alguns lagartos, admite-se que a reabsorção de água pela bexiga seja essencial para impedir a dessecação quando em ambiente terrestre de pouca umidade. A eliminação de urina da bexiga desses animais ocorre através de um orifício cloacal comum.
O fato desse urólito estar associado à fauna dinossauriana da Formação Botucatu, que corresponde a um antigo ambiente desértico, sugere que a presença de uma estrutura responsável pelo armazenamento e reabsorção de água seja aceitável e possível, corroborando com a idéia de que haveriam grupos de dinossauros que pudessem urinar.
 
Este urólito é o primeiro registro deste tipo de vestígio fóssil no Brasil, sendo também uma das primeiras evidências do modo de extrusão líquida atribuída a dinossauros no mundo.
– Para a Formação Botucatu são conhecidas pelo menos duas ocorrências de urólitos.
Figura 7. Detalhe do Urólito (Esquerda)
 
Entre em contato com o Paleontólogo Dr. Marcelo Adorna Fernandes:
Laboratório de Paleoecologia e Paleoicnologia – Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva – Universidade Federal de São Carlos, UFSCar
Contatos pelo telefone: +55 (16) 3351-8322
E-mail: mafernandes@ufscar.br
 

O Ser Paleontólogo…

“A caça aos fósseis é de longe o mais fascinante de todos os esportes. Nele, a gente acha incerteza, excitação e todo o arrepio do jogo de azar, sem nenhum dos aspectos negativos dele. (…) No próximo morro pode estar enterrada a grande descoberta. (…) Além do mais, o caçador de fósseis não mata, ele ressuscita.”

George Gaylord Simpson, paleontólogo norte-americano, em seu relatório de expedições pela Patagônia Argentina.
 
Paleontólogo é o cientista que procura entender a vida e investigar o passado geológico da Terra através dos fósseis. O estudo destes últimos pode revelar diversas questões, como a datação de estratos rochosos, a biologia e ecologia de organismos extintos, detalhes sobre ecossistemas pretéritos, padrões de distribuição biológica, a evolução dos seres vivos, a origem das espécies, as suas respostas a grandes eventos de extinção, além de questões mais práticas, como por exemplo, no que diz respeito à prospecção de reservas minerais (como o petróleo, o gás e o carvão mineral).
 
O paleontólogo, sobretudo é um apaixonado pelo que faz. É necessário muito estudo e anos de esforço para assumir a profissão. Ela é maravilhosa, mas complexa em muitos aspectos, e geralmente não é a melhor opção para quem quer ganhar muito dinheiro.
 
Em geral o paleontólogo deve ter formação superior em Biologia ou Geologia e prosseguir seus estudos no mestrado e doutorado. Os postos de trabalho não são tão variados e geralmente restringem-se a vida acadêmica como professor universitário e/ou pesquisador, consultor e curador de coleções museológicas. É comum também a contratação por empresas da área do petróleo – desde que especialização do profissional seja a Micropaleontologia – e por alguns órgãos do governo, como o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral). Muitos paleontólogos trabalham ainda com a divulgação científica e alguns em parques naturais ou áreas protegidas para valorização da Geodiversidade.
 
 
A vantagem de ser um paleontólogo é ter uma profissão diferente, imaginativa e absolutamente estimulante. A área abre oportunidades para estudar temas fascinantes e fazer descobertas. O profissional trabalha em contato com a natureza e pode viajar para locais exóticos – desde desertos a florestas tropicais do mundo todo – em busca de fósseis para estudo.
 
 
 
Todavia, a vida de um paleontólogo não é somente uma grande aventura. Depois do trabalho de campo, onde – deve-se dizer – eles trabalham arduamente para localizar e escavar os fósseis, eles vão para o laboratório, onde ficam um longo período envolvidos com a preparação, a montagem e estudo de tudo o que foi encontrado. Tudo isso para produzir um documento conclusivo, em forma de relatório ou artigo científico, que deverá ser publicado e divulgado ao público especializado e leigo.
 
A metodologia de trabalho do paleontólogo varia de acordo com os tipos de fósseis que ele pretende estudar. Sejam somatofósseis ou icnofósseis, fósseis de plantas ou animais, vertebrados ou invertebrados, e estes últimos, microscópicos ou não. De qualquer forma, sempre é um trabalho meticuloso, pautado por critérios científicos rigorosos e bem definidos, cujo objetivo final é recuperar o máximo de informação possível.
 
 
É importante lembrar que um paleontólogo não é um arqueólogo. O arqueólogo estuda especificamente evidências culturais do passado dos seres humanos, já o paleontólogo tem uma visão mais ampla, ele estuda toda a vida extinta, incluindo fósseis de humanos, porém de um ponto de vista paleobiológico.
 
Outro mito que se deve desfazer é: Não é todo o paleontólogo que estuda dinossauros. Apenas uma fração o faz. E os dinossauros, apesar de grandes, não fornecem tantas respostas quanto, por exemplo, organismos microscópicos fossilizados.
 
Pegadas de dinossauros em Sousa, PB, Brasil.
 
No campo, o paleontólogo pode passar dias sob um Sol escaldante, portanto deve estar bem preparado: acompanhado do seu fiel chapéu, protetor solar, roupas e calçados confortáveis (nada de shorts! Ele precisa se proteger de insetos e cobras!), além de muita água. Situações de acampamento são comuns e muitas vezes o banho pode ser um luxo. Os equipamentos básicos incluem uma caderneta de campo, bússola ou GPS, lupas, pincel, algum tipo de martelo geológico, além de outras ferramentas de extração (ponteiras e cinzéis) e proteção (óculos, luvas, etc.). Este material, todavia, varia com a natureza do fóssil buscado. Alguns são pequenos e delicados e outros tão grandes que precisam ser retirados na base de picaretas ou mesmo britadeiras.
 
 
Paleontólogos não saem por aí procurando fósseis em qualquer lugar. Estão munidos de mapas geológicos, que os auxiliam a guiar seus esforços de coleta, e muitas vezes contam até com estudos prévios de localidades fossilíferas, portanto já vão preparados para o tipo de fóssil que querem encontrar.
 
Os fósseis necessariamente devem ser abrigados em um museu ou instituição de pesquisa e só podem ser extraídos com autorização. Eles são propriedades da União. Não se tratam de um bem negociável. Todos os que fazem a retirada ou os que adquirem, transportam e comercializam incorrem em crime. Qualquer fóssil enviado ao exterior pela compra ilegal está em desacordo com a lei. Cabe ao DNPM a proteção e fiscalização do patrimônio fossilífero brasileiro e, sem licença expressa deste departamento, o particular que estiver explorando depósitos de fósseis estará sujeito à prisão, como espoliador do patrimônio científico nacional.
 
 
Ufa! Acredito que algumas dúvidas tenham sido retiradas com este post. A paleontologia é uma ciência e uma profissão encantadora. Se você nos acompanha é porque deve achar também! Não deixe então de seguir as nossas aventuras pela ‘Caderneta de Campo’, onde poderá conhecer de perto a emoção de ser paleontólogo. Até lá!!

Um estranho nas dunas – O Paleo-deserto Botucatu, Parte III

Texto original de Marcelo Adorna Fernandes, adaptado por Aline Ghilardi

 
Durante o XX Congresso Brasileiro de Paleontologia (XX CBP), realizado em 2007 na cidade de Búzios, Rio de Janeiro, foi anunciada pela primeira vez a descoberta dos vestígios do maior dinossauro herbívoro bípede do Estado de São Paulo. Um dinossauro do deserto que habitou o Brasil há mais de 140 milhões de anos. O Paleo-deserto Botucatu, veja as outras partes desta história nestes posts AQUI e AQUI.

Reconstituição do ‘ornitópode gigante’ do antigo deserto Botucatu. Por Marcelo Adorna Fernandes.

 

Os vestígios descritos deste animal são compostos por um conjunto de lajes de arenito contendo seis pegadas. As características das mesmas – com três dedos (tridáctilas) curtos e arredondados (sem evidências de garras, mas ‘cascos’) – indicam que o produtor se tratava de um dinossauro do grupo dos Ornithopoda.

Os Ornithopoda ou ornitópodes consituem uma subordem dos dinossauros Ornitísquios, ou ‘dinos com pelves de ave’, que incluem também os Ceratopsia, os Thyreophora e os Pachycephalosauria. Os dinos ornitópodes englobam animais hebívoros de portes diversificados, todos dotados de um aparelho mastigatório sofisticado, que favoreceu seu sucesso durante o período Cretáceo. Eles apresentavam desde porturas bípedes à quadrúpedes, uma cauda rígida e um bico córneo. O ápice de sua evolução se deu no final do Cretáceo com a expansão dos ‘dinos bico-de-pato’ ou hadrossauros.

O Paleontólogo Marcelo Adorna Fernandes e o conjunto de pegadas do grande ornitópode.

Cinco das pegadas encontradas são pertencentes a uma pista contínua com aproximadamente 3,60 metros de comprimento de uma ponta a outra (veja figura acima), cujos contra-moldes também estão preservados. A sexta pegada trata-se de um registro isolado (Veja figuras abaixo).


Cada pegada possui em média 35 cm de comprimento e 30 cm de largura; um fato bastante exótico quando se considera as proporções das demais ocorrências de pegadas da Formação Botucatu.

Pegada isolada (Esquerda) e contramolde (direita).

 

Existem muitas crenulações (deformações no substrato) ao redor das pegadas e as cristas de arenito em forma de meia-lua são bem evidentes na margem posterior (parte de trás) de cada pegada. Estas meias-luas, quase sempre na direção do mergulho dos estratos sedimentares, são o resultado do deslocamento de areia pelos pés do animal, quando este estava em progressão através das paleodunas (o esforço que ele fazia ao caminhar deslocava a areia para trás). O esforço observado nas pegadas encontradas indica que o dinossauro estivesse subindo a duna do paleodeserto.

Algumas pegadas da pista apresentam-se pouco definidas, devido à areia inconsolidada e seca da superfície ser facilmente deformável (bastante plástica). Animais de grande porte, portanto mais pesados, imprimiriam suas pegadas diretamente abaixo da camada mais seca de areia que sofreria total deformação, sem que houvesse preservação da morfologia dos pés nas camadas superficiais.

Devido ao excesso de peso no substrato arenoso, o animal produtor das pegadas coletadas provocou uma deformação das camadas inferiores de sedimento, transmitindo a impressão em subsuperfície e gerando o que chamamos de undertrack (‘sub-pegada’). O contato do pé do animal com a subsuperfície, possivelmente mais úmida, produziu as crenulações, podendo ter alterado o comprimento real do eixo maior da pegada ao levantar o pé para mudar o passo, revolvendo a areia seca em superfície. — Experimente isso ao caminhar na praia!

Ao todo, quase uma tonelada de rocha contendo os icnofósseis foram coletadas no dia 08 de julho de 2004 na pedreira São Bento, localizada no município de Araraquara no Estado de São Paulo, nas coordenadas de 21o49’03.4”S e 48o04’22.9”W. Estre estas, os registros do dinossauro aqui descrito. Esta pedreira apresenta a secção de uma grande duna fóssil com 20 m de altura e 100 m de comprimento, com mergulho de 29° aproximadamente em direção S-SW. As lajes coletadas estão depositadas na coleção de paleontologia do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Federal de São Carlos (DEBE/UFSCar).

Pedreira São Bento em Araraquara, SP – Corte de uma Paleo-duna. Pode-se observar as pegadas do grande ornitópode em fase de retirada. Foto por Luciana B. Fernandes.

 

Desde os primeiros estudos sobre pegadas fossilizadas da região de Araraquara, em 1976 pelo paleontólogo e padre italiano Dr. Giuseppe Leonardi, somente pegadas com no máximo 15 cm de comprimento tinham sido registradas.

Nunca havia sido registrada a ocorrência de dinossauros bípedes herbívoros deste porte aqui descrito na região Sudeste. Em 30 anos de pesquisa é primeiro registro de um dinossauro de grandes dimensões para a Formação Botucatu. Fato novo e muito importante para a compreensão da evolução dos dinossauros no Brasil e para o entendimento das mudanças ambientais em nosso País.

O Dinossauro Ornithopoda do interior paulista pesava aproximadamente duas toneladas, com uma altura de quase 4 metros e comprimento de 6 metros. Um gigante em se tratando de uma fauna de deserto.

Reconstituição do grande Ornithopoda da Fm. Botucatu. Por Marcelo Adorna Fernandes.

 

Entre em contato com o Paleontólogo Prof. Dr. Marcelo Adorna Fernandes:
Laboratório de Paleoecologia e Paleoicnologia – Universidade Federal de São Carlos, UFSCar
Contatos pelo telefone: +55 (16) 3351-8322
E-mail: mafernandes@ufscar.br
Fernandes, M.A. & Carvalho, I.S. 2007. Pegadas fósseis da Formação Botucatu (Jurássico Superior – Cretáceo Inferior): O registro de um grande dinossauro Ornithopoda na Bacia do Paraná. In: Carlhalho, I.S. et al (eds.) Paleontologia: Cenários da Vida, vol. 1, Editora Interciência.

A fauna do Paleo-deserto Botucatu – O Paleo-deserto Botucatu, Parte II

“O paleodeserto Botucatu foi um gigantesco deserto de dunas, que existiu durante o final do Período Jurássico (145 milhões de anos atrás) e começo do Período Cretáceo (há 130 Milhões de anos), quando os atuais continentes do hemisfério sul ainda estavam reunidos formando o chamado mega-continente austral Gondwana. Este antigo deserto abrangia algo como 1.500.000 Km² e se estendia desde o Estado de Minas Gerais até o Uruguai – em latitude – e da Bolívia até onde antes estava acomodada a África, na costa leste brasileira… Tratava-se de uma verdadeira imensidão de areia, com um clima seco rigoroso e condições aparentemente pouco propícias à vida…. mas apenas aparentemente… — Veja a primeira parte desta reportagem AQUI.

Em um lugar perdido em um pretérito tão remoto, numa era de animais tão diferentes, a curiosidade nos leva a perguntar: que tipo de criaturas viveram em condições tão adversas? É sobre isso que vamos tratar neste post do Colecionadores de Ossos.
Em um ambiente extremamente árido como foi o deserto do Botucatu, dificilmente são preservados fósseis de restos corporais de animais, tais como, ossos ou conchas…… Quanto a partes moles, então, nem pensar. Desta forma, a única maneira de saber quais animais viviam nesse deserto é por meio dos icnofósseis.
Icnofósseis, de forma geral, são registros de um comportamento de um determinado organismo que acabaram por ser preservados em um substrato que, depois de passar por processos químicos e físicos (Litificação), veio a tornar-se rocha.
Os tipos de icnofósseis mais comuns na Formação Botucatu (conjunto de rochas que representam hoje o antigo deserto Botucatu) são pegadas de vertebrados e invertebrados e evidências de alimentação de invertebrados endoestratais (“de dentro do substrato” ou “escavadores”).

Exemplos de comportamento que produzem icnofósseis: locomoção, alimentação, descanso, reprodução, etc. Exemplos de tipos de icnofósseis deixados por estes comportamentos: pegadas, perfurações, ovos, coprólitos (fezes fósseis), etc.

Os icnofósseis na Formação Botucatu são raros em alguns níveis. No entanto, existem estratos onde eles são extremamente abundantes, como por exemplo, aqueles que afloram nas cidades de São Carlos e Araraquara, no interior do Estado de São Paulo. Acredita-se que esta abundância relativa de rastros nas imediações destas cidades seja porque na época em que o antigo Deserto Botucatu existiu, haviam diversos oásis espalhados pela imensidão de areia. Estes abrigavam uma diversificada fauna e atraíam animais a procura de água. A existência destes oásis é corroborada com a própria preservação das pegadas, favorecida somente por causa da umidade.
Mas agora a pergunta que não quer calar: quem eram esses animais?

PERIGO !!!!. Apesar de ser irresistível e tentador atribuir um organismo produtor a icnofósseis… temos que tomar muito cuidado ! Não foram raras as vezes em que a atribuição de produtores a um determinado icnofóssil se mostrou totalmente equivocada, principalmente em se tratando de rastros de invertebrados. Pode-se dizer que, na icnologia de vertebrados isso é mais aceitável, afinal existe uma diferença mais conspícua entre os rastros de um dinossauro e de um mamífero , e dificilmente, eles produziriam um rastro semelhante – ainda assim isso poder acontecer… Entretanto, entre os invertebrados isto é comum, ou seja, grupos de invertebrados pouco aparentados – muito diferentes – podem produzir marcas muito semelhantes e, um mesmo grupo de animais – até mesmo da mesma espécie! – podem produzir rastros muito diferentes. Pense nisto!

Quando não existem fósseis de restos corporais, como é o caso do deserto do Botucatu, os cientistas recorrem, com muita parcimônia e cuidado, aos icnofósseis para saber que animais viviam naquele lugar.
Talvez o mais interessante sobre o Deserto Botucatu seja que, apesar de ser um deserto de mais de 130 milhões de anos, ele se parecia muito com um deserto atual, exceto pelas espécies hoje extintas, claro. Ele abrigava uma fauna adaptada ao ambiente desértico com uma composição semelhante ecológica a que vemos em desertos contemporâneos… vamos ver por quê.
Começando do alto da cadeia alimentar:
Hoje, esta posição é ocupada por mamíferos carnívoros de maior porte, répteis diversos e dinossauros terópodes do grupo dos coelurossauros com penas – as aves! Outrora, no antigo deserto, era ocupada também por dinossauros terópodes, como as aves atuais, mas por representantes de ramos ancestrais hoje extintos. A figura 1 mostra uma pegada de terópode coelurossaurídeo encontrado na Fm. Botucatu. Esta pegada apresenta um comprimento maior do que a sua largura, três dígitos com evidência de garras, sendo o dígito do meio o maior de todos.
Figura 1 – Pegadas de dinossauros atribuídas a Theropoda Coelurosauria encontradas na Formação Botucatu (Fotografias por Marcelo Adorna Fernandes).
Habitando o antigo deserto, ainda, poderia ser encontrado outro grupo de terópode, e sabemos disso por causa da presença de outro tipo de pegada. Estas também com os três dígitos, também com marcas de garras, porém os dedos mais espaçados: características típicas do grupo dos carnossauros (Figura 2). Veja a diferença.
Figura 2 – Pegadas de dinossauros atribuídas a Theropoda Carnossauria encontradas na Formação Botucatu (Fotografia por Marcelo A. Fernandes).
Os carnossauros, e também os coelurossaros, de fato estariam no topo da cadeia alimentar, já que são os maiores organismos carnívoros identificados no registro icnológico.
Existem evidências também de dinossauros herbívoros do grupo dos ornitópodes. Animais bípedes, reconhecidos por pegadas tão compridas quanto largas, com três dedos de extremidades arredondadas (sem marcas de garras), como mostrado na figura 3.
Figura 3 – Pegadas atribuídas a dinossauros ornitópodes encontradas na Formação Botucatu (Fotografia por Marcelo Adorna Fernandes).
E como não poderia deixar de ser dito, destoando da maioria das pegadas de dinossauros geralmente encontradas – todas de porte pouco avantajado – foi encontrada ainda uma trilha muito curiosa pelo tamanho do seu produtor. As pegadas gigantes seriam atribuídas a um grande dinossauro ornitópode, e foram encontradas pelo Prof. Dr. Marcelo Adorna (Figura 4). É muito estranho encontrar pegadas de um animal herbívoro tão grande em um lugar com tão poucos recursos vegetais para sustentá-lo.
Figura 4 – Pegadas atribuídas a um grande dinossauro ornitópode encontradas na Formação Botucatu. Ao fundo o Professor Marcelo Adorna, um grande estudioso dos icnofósseis desta Formação.
Nos desertos atuais existem ainda pequenos mamíferos muito bem adaptados às árduas condições dos ambientes desérticos. No deserto do Botucatu não faltavam estes animais. Eles ocupavam uma posição intermediária na cadeia alimentar, como as várias espécies de roedores atuais. A figura 5 mostra os característicos rastros deixados por eles. A figura 6 mostra uma cena que seria comum quando o deserto do Botucatu existia: uma interação entre dinossauro e um mamífero da época.
Figura 5 – Rastros identificados como Brasilichnium elusivum – atribuídos a mamíferos de pequeno porte – encontrados na Formação Botucatu (Marcelo Adorna Fernandes). Escala = 10cm.
Figura 6 – Uma interação comum entre um representante do grupo dos Dinossauros Theropoda e um mamífero durante o final do Jurássico, começo do Cretáceo, na região que compreendia o deserto do Botucatu.
Figura 7 – Reconstrução do paleoambiente durante o final do Jurássico, começo do Cretáceo, no deserto do Botucatu, com integrantes comuns da sua fauna: escorpiões, insetos e pequenos mamíferos.
Atualmente é muito comum encontrar em desertos diversos grupos de artrópodes adaptados a ambientes áridos, tais como, aranhas, escorpiões e variados insetos….. no Deserto Botucatu não era diferente. Existem icnofósseis atribuídos a esses animais que atestam a existência pretérita de animais muito semelhantes aos atuais no paleo-deserto (Figura 7).

Entre os invertebrados, além dos que deixam marcas na superfície (epiestratais), existem também registros de Taenidium isp, que consistem em escavações sinuosas e meniscadas (em forma de menisco) atribuídas a anelídeos ou insetos coleópteros (Figura 8).

Figura 8 – Rastros identificados como Taenidium isp. Atribuídos a invertebrados (anelídeos ou insetos). Esta laje em especial antes de ser tombada no Museu de Hist;oria Natural Prof. Dr. Mário Tolentino, na UFSCar, era usada como pavimentação de uma calçada na cidade de Araraquara, SP.
Esses invertebrados poderiam ter servido de alimento para os mamíferos, já que estes animais conviveram juntos.
Os rastros fósseis do Botucatu são um testemunho muito interessante sobre um ambiente bastante particular do passado: um colossal deserto com dunas esparsamente pontuadas de oásis. Conhecer a diversidade biológica deste lugar é um desafio por causa da escassez de restos corporais preservados de animais e plantas. Até agora, apenas troncos fóssilizados foram encontrados, todos retirados da região de Minas Gerais.
Estes indicam a presença de gimnospermas, plantas do grupo dos pinheiros e araucárias. Já quanto a fauna, representativos e bem preservados icnofósseis nos permitem obter uma sólida idéia de como seria o cenário Juro-cretácico. Eles fornecem uma verdadeira e fantástica janela para que possamos vislumbrar a vida e as interações dos habitantes daquele ambiente passado.
Referências Bibliográficas
FERNANDES, M. A. Paleoicnologia em ambientes desérticos: análise da icnocenose de vertebrados da pedreira São Bento (Formação Botucatu, Jurássico Superior – Cretáceo Inferior, Bacia do Paraná), Araraquara, SP. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza. Instituto de Geociências. Rio de Janeiro, 2005.


FERNANDES, M. A.; CARVALHO, I. DE S. Revisão diagnóstica para a icnoespécie de tetrápode Mesozóico Brasilichnium elusivum ( Leonardi , 1981 ) ( Mammalia ) da Formação Botucatu , Bacia do Paraná , Brasil. Ameghiniana, v. 45, n. 1, p. 167-173, 2008.


FERNANDES, A. C. S.; CARVALHO I DE S.; NETTO, R. G. Ichnofósseis de invertebrados da Formação Botucatu, São Paulo (Brasil). Anais da Academia Brasileira de Ciências, v 62, n. 1, p. 45 – 49, 1990

A seguir, continuando a série de artigos sobre a Icnologia da Formação Botucatu: Um estranho gigante nas dunas e Xixi de dinossauro.