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A rainha das “cobras-cegas”

Pesquisadores brasileiros em parceria com colegas australianos descreveram recentemente, o fóssil de uma espécie de “cobra-cega”, que viveu no Sudeste do Brasil há mais de 85 milhões de anos. Além de o fóssil ser muito importante para o entendimento da evolução do grupo, a espécie é a maior já encontrada entre as cobras-cegas vivas ou extintas. Boipeba tayasuensis, como foi batizada, tinha cerca de 1 metro de comprimento, e sua descoberta preenche uma grande lacuna na história evolutiva das serpentes Scolecophidia.

Boipeba tayasuensis, uma grande cobra-cega do Cretáceo do Brasil. Arte de Jorge Blanco.

O fóssil de Boipeba foi encontrado no município de Taiaçu no Oeste do Estado de São Paulo, próximo à Monte Alto, localidade já conhecida pela ampla ocorrência de fósseis do Período Cretáceo. O principal responsável pelo estudo foi Thiago S. Fachini, estudante de doutorado, orientado pela Professora Annie S. Hsiou, ambos da USP de Ribeirão Preto. O estudo ainda contou com a participação de outros dois colegas brasileiros, Silvio Onary e Mário Bronzati, e dois pesquisadores australianos.

O trabalho foi publicado dia 19 de novembro na revista iScience e baseia-se na descrição de uma vértebra bem distinta, grande, para uma “cobra-cega”, e com um formato notavelmente achatado. Daí o nome Boipeba, que significa “cobra-achatada” em Tupi-Guarani. O epíteto específico, “tayasuensis”, faz referência ao município de Taiaçu, assim, a combinação do nome da nova espécie fóssil significa “cobra-achatada de Taiaçu”.

A distinta vértebra de Boipeba tayasuensis (Fachini et al. 2020).

Boipeba tayasuensis era uma serpente de médio porte, com comprimento estimado em 1 metro, tamanho bastante semelhante ao de outras cobras fósseis do mesmo período. O interessante, todavia, é o fato de Boipeba ser uma serpente Scolecophidia, ou seja, um tipo de “cobra-cega”. Atualmente, as cobras-cegas são pequenas serpentes escavadoras, de hábitos essencialmente subterrâneos, que tem os seus olhos bastante reduzidos. As espécies atuais de Scolecophidia não ultrapassam 30 cm de comprimento, o que torna Boipeba uma gigante das cobras-cegas. Mesmo as outras formas fósseis conhecidas não têm tamanho comparável ao da “cobra-achatada de Taiaçu”. O fato de ela ser tão grande dá uma pista aos pesquisadores sobre as tendências evolutivas do grupo. A “miniaturização” em Scolecophidia pode ter sido uma tendência mais recente, acompanhando fatores ambientais e ecológicos.

Mas não é só o tamanho que torna Boipeba importante. Fósseis de serpentes são muito raros no Cretáceo, ainda mais na Bacia Bauru, unidade geológica na qual ela foi encontrada. Outros fósseis associados à serpentes já haviam sido descobertos, mas este é o primeiro descrito formalmente como espécie. Boipeba, portanto, amplia o nosso conhecimento sobre a diversidade de organismos do Cretáceo da Bacia Bauru e torna a rede ecológica deste antigo paleoambiente mais complexa.

No Cretáceo brasileiro, o único outro registro inequívoco de uma espécie de serpente é de Seismophis septentrionalis, do Cenomaniano do Maranhão (Bacia de São Luís-Grajaú). Tetrapodophis amplectus, comumente referida como a “cobra com patas” do Aptiano-Albiano da Bacia do Araripe, é questionada por muitos autores e tem uma história bastante complexa (leia mais sobre isso aqui).

Outro aspecto que destaca a descoberta de Boipeba para a Ciência é a idade do seu fóssil. Ela é a espécie mais antiga de cobra-cega já descoberta. Os registros mais antigos de Scolecophidia até então encontrados, eram datados do final do Paleoceno e início do Eoceno da Europa e África (cerca de 56 milhões de anos atrás). Contudo, análises moleculares estimavam o surgimento do grupo para o Cretáceo. Boipeba confirma essa hipótese. A diversificação inicial das cobras-cegas pode ter acontecido na América do Sul e o Brasil pode ter sido um dos palcos principais deste evento evolutivo.

Boipeba estende o registro de Scolecophidia para o Cretáceo Superior do Brasil, preenchendo uma lacuna no espaço e no tempo para a compreensão evolutiva do grupo. As previsões moleculares agora ganharam sustento de evidências paleontológicas.

Boipeba é mais uma descoberta recente que demonstra como o território brasileiro é importante para a Paleontologia mundial. As contribuições que o artigo de Boipeba traz são fundamentais para os estudiosos de evolução de serpentes e, com certeza, atrairão a atenção de paleontólogos do mundo para os estratos rochosos do interior de São Paulo.

NOTA: o grupo mais popularmente conhecido como “cobra-cega” são as cecílias, ou gimnofionas, que são um tipo de anfíbio. As Scolecophidia, um grupo de serpente, todavia, também podem ser chamadas de “cobras-cegas” por conta de seus olhos reduzidos.

Referência:

Fachini, T. S., Onary, S., Palci, A., Lee, M. S. Y., Bronzati, M., Hsiou, A. S. CRETACEOUS BLINDSNAKE FROM BRAZIL FILLS MAJOR GAP IN SNAKE EVOLUTION. iScience, 1-40. doi: https://doi.org/10.101 /j.isci.2020.101834

Melanina é encontrada em fóssil de pterossauro brasileiro

Molécula biológica responsável pela pigmentação de seres vivos foi encontrada preservada em um fóssil brasileiro de cerca de 110 milhões de anos, da região do Ceará! O fóssil em questão é de um pterossauro, um tipo de réptil voador da “Era dos Dinossauros”.

Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.
Reconstituição em vida de Tupandactylus, arte de Márcio Castro.

O estudo foi publicado hoje em uma das revistas científicas do prestigioso grupo Nature, a Scientific Reports, e inclui pesquisadores diversos países, liderados pelos paleontólogos brasileiros Felipe Pinheiro, da Universidade Federal do Pampa (Unipampa, Rio Grande do Sul) e o doutorando Gustavo Prado, da Universidade de São Paulo (USP, São Paulo).

“Isso ainda é muito distante Jurassic Park”, lembram os pesquisadores, mas o fato de encontrar uma molécula biológica tão bem preservada já é uma grande descoberta, que nos possibilita entender melhor como eram esses organismos do passado.

O fóssil de réptil voador analisado pertence a um Tupandactylus, um pterossauro de tamanho médio, com cerca de 3 metros de envergadura e que tinha uma crista bem alta na cabeça. Ele viveu no sul do Ceará, na região do Araripe, quando toda essa área era coberta por uma extensa laguna, durante a primeira metade do Período Cretáceo, há cerca de 110 milhões de anos.

O estudo também contou com a participação de pesquisadores do Japão e dos Estados Unidos. Trata-se da mais completa caracterização química de uma biomolécula fossilizada em um réptil.

“Embora sempre soubéssemos que os fósseis encontrados na região da Chapada do Araripe eram especiais em termos de preservação, foi uma surpresa quando as análises químicas mostraram que a melanina do bicho ainda estava lá. Parece que o pterossauro morreu ontem”, relata Felipe Pinheiro, paleontólogo da Unipampa.

Vários fósseis de Tupandactylus já foram descobertos na Chapada do Araripe. Porém, este preservou muito bem a crista do animal, o que levou os pesquisadores a quererem analisá-la mais de perto. A crista enorme, em forma de vela, provavelmente era utilizada, entre outras coisas, para atrair parceiros. Foi dela que os cientistas extraíram o pigmento.

Imagem do artigo monstrando os pontos amostrados no fóssil.

“A melanina é uma das moléculas mais resistentes aos processos de fossilização. Enquanto os outros compostos são degradados com o passar do tempo, esse pigmento resiste de forma mais ou menos intacta”, explica Gustavo Prado, que é especialista em pigmentos fossilizados.

Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.
Imagem do artigo, mostrando os corpúsculos esféricos presentes no fóssil, que conteriam a melanina.

Agora, a pergunta que não quer calar: Com essa molécula preservada, foi possível identificar a cor do animal?

Os cientistas que assinam o estudo são bastante céticos: “É complicado”, diz Pinheiro. “São muitos fatores envolvidos na coloração de um animal, e a melanina é só um deles”. Estudos anteriores reconstruíram a cor de aves e dinossauros com base na forma dos melanossomos, organelas responsáveis por armazenar melanina. A ideia é que o formato dos melanossomos poderia indicar a coloração. A caracterização química da melanina do Tupandactylus mostrou que não é bem assim. “Não encontramos correlação entre o formato dos melanossomos e o tipo de melanina identificada no pterossauro”, diz Gustavo Prado.

O novo estudo, portanto, desafia as inferências de coloração realizadas para organismos fósseis até então. Será necessário rever essa possibilidade e, à luz das novas descobertas, aperfeiçoá-la.

O grupo de pesquisadores continua investigando a preservação excepcional de fósseis da Chapada do Araripe, e afirmam que várias novidades ainda estão por vir. “Aos poucos ficamos cada vez mais próximos desses animais incríveis”, diz Pinheiro.

***

O trabalho completo está disponível em www.nature.com/articles/s41598-019-52318-y

O estudo foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Vespersaurus: Um novo dino brasileiro

Estudo publicado nesta quarta-feira (26/06/19) na revista Scientific Reports, do grupo Nature, apresenta uma nova espécie de dinossauro brasileiro, que viveu no Período Cretáceo, há cerca de 90 milhões de anos.

Figura-4
Reconstrução em vida de Vespersaurus paranensis. Crédito da imagem: Rodolfo Nogueira.

O fóssil foi encontrado no município de Cruzeiro do Oeste, PR, e foi estudado por paleontólogos das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Maringá (UEM), além de pesquisadores do Museo Argentino de Ciências Naturales e do Museu de Paleontologia de Cruzeiro do Oeste. A nova espécie foi nomeada Vespersaurus paranaensis.

Vesper (do latim) significa oeste/entardecer, em referência ao nome da cidade onde foi descoberto o fóssil, e paranaensis faz uma homenagem ao Estado do Paraná, já que este é o primeiro dinossauro paranaense descrito.

Os fósseis da nova espécie de dinossauro pertencem a um grupo de dinossauros carnívoros chamados de Noasaurinae. Os Noasaurinae são abelissauros diferentões, de pequeno porte, encontrados desde a Argentina até Madagascar (com possíveis registros na Índia). Estes terópodes viveram em uma época em que os continentes do sul ainda estavam unidos, formando o Gondwana, e transitavam de um lado para o outro, cruzando um imenso deserto que existia entre o Brasil e a África.
Restos de Noasaurinae já eram conhecidos para o Brasil (veja Lindoso et al., 2012 e Brum et al., 2016), mas este é o material mais completo encontrado até o momento. É também o material mais completo de dinossauro terópode descrito para o Brasil até agora, com quase metade do esqueleto encontrado.

Figura-3
Representação tridimensional do esqueleto de Vespersaurus paranensis indicando (em cor sólida) os ossos que foram encontrados. Crédito da imagem: Rodolfo Nogueira.

O novo dinossauro possuía vértebras pneumáticas, que conferiam leveza ao seu esqueleto, como nas aves viventes, e um braço muito reduzido (com menos da metade do comprimento da perna). Porém, a sua característica anatômica mais peculiar eram os pés. Seu peso era praticamente todo suportado por um único dedo central, sendo o animal funcionalmente monodáctilo, como os cavalos. Os dedos que flanqueavam o dígito central, por sua vez, possuíam grandes garras em forma de lâmina, que deveriam servir para cortar e raspar carne.

Figura-1
Pata direita de Vespersaurus paranensis como preservada na rocha, note a garra do quarto dedo em forma de lâmina. Foto de Paulo Manzig.

As rochas do noroeste paranaense, nas quais Vespersaurus foi preservado formaram-se em ambientes desérticos, o que sugere que o animal deveria ser adaptado a esse tipo de clima. Na década de 70, em rochas relacionadas, o paleontólogo Giuseppe Leonardi descobriu uma ampla assembleia de pegadas fósseis. Algumas, feitas por um pequeno dinossauro bípede, carnívoro, aparentemente monodáctilo. À época não se conhecia nenhum animal com tais características ao qual elas pudessem ser atribuídas. Muito tempo depois, o produtor parece ter sido encontrado.

Figura-5
Reconstrução em vida do pé de Vespersaurus paranensis. Crédito da imagem: Rodolfo Nogueira.

Vespersaurus paranaensis não é primeira espécie cretácica a ser encontrada no noroeste do Paraná. No mesmo sítio fossilífero em Cruzeiro do Oeste foram descobertos também o lagarto Gueragama sulamericana e inúmeros indivíduos do pterossauro Caiuajara dobruskii. A descoberta de mais uma espécie fóssil em Cruzeiro do Oeste deve impulsionar as pesquisas paleontológicas na região.

Veja o artigo:

Langer et al., 2019. A new desert-dwelling dinosaur (Theropoda, Noasaurinae) from the Cretaceous of south Brazil. Scientific Reports https://www.nature.com/articles/s41598-019-45306-9

Demais referências:

Brum, A.S., Machado, E.B., de Almeida Campos, D. and Kellner, A.W.A., 2016. Morphology and internal structure of two new abelisaurid remains (Theropoda, Dinosauria) from the Adamantina Formation (Turonian–Maastrichtian), Bauru Group, Paraná Basin, Brazil. Cretaceous Research60, pp.287-296.

Lindoso, R.M., Medeiros, M.A., de Souza Carvalho, I. and da Silva Marinho, T., 2012. Masiakasaurus-like theropod teeth from the Alcântara Formation, São Luís Basin (Cenomanian), northeastern Brazil. Cretaceous Research36, pp.119-124.

Finalmente, o mamífero do Cretáceo do Brasil!

Brasilestes stardusti é o seu nome, em alusão ao Brasil e a Ziggy Stardust, um personagem criado pelo músico britânico David Bowie, falecido em 2016, ano em que o fóssil foi descoberto.

Brasilestes

O fóssil em questão tem apenas 3,5mm e trata-se de um único dente pré-molar. Pode não parecer grande coisa, mas é uma descoberta há muito tempo esperada. Tanto que, apesar de não escrever há muito tempo no blog, achei que isto, particularmente, merecia uma comemoração!

A publicação do material foi feita hoje, na revista científica Royal Society Open Science e conta com a participação de pesquisadores brasileiros da UFG, USP e Unicamp, além de paleontólogos argentinos e estadunidenses. O estudo foi liderado pela Dra. Mariela Castro (UFG), especialista em mamíferos fósseis e, com certeza, uma grande fã de Bowie.

O pequeno dente, tão importante, foi encontrado nas rochas ricas em fósseis do interior do estado de São Paulo, mais especificamente, no município de General Salgado, oeste paulista. Estas rochas datam do final Período Cretáceo, entre 80 e 75 milhões de anos, época em que os dinossauros ainda reinavam soberanos nos ecossistemas terrestres. Isso torna Brasilestes o mais antigo mamífero conhecido para o Brasil.

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Com um tamanho reconstituído aproximado do de um gambá atual (cerca de 50cm de comprimento), Brasilestes certamente se esquivou das passadas de gigantes pescoçudos herbívoros e fugiu das ferozes mandíbulas de uma miríade de crocodilos terrestres, uma pequena amostra da paleofauna que habitava o interior de São Paulo no final do Cretáceo.

Até a presente data, nenhum vestígio corporal de mamífero fóssil havia sido apropriadamente descrito para as rochas cretácicas do Brasil. Na verdade, para todas as rochas da Era Mesozoica brasileira. O fóssil “do tal mamífero”, sempre havia sido o “Santo Graal” da paleontologia brasileira, buscado incansavelmente por vários grupos de pesquisadores. Por isso, é uma alegria ele ter sido finalmente encontrado.

Para não dizer que este é realmente o primeiro registro corporal de mamífero cretácico do Brasil, o fóssil de um pequeno pedaço de mandíbula com um único dente inserido havia sido encontrado em rochas do mesmo contexto geológico na década 1990. Apesar de publicado há tempos, o material não foi descrito apropriadamente na época, e encontra-se, até hoje, inacessível para a grande maioria dos paleontólogos brasileiros.

O outro registro fossilífero atribuído a mamíferos mesozoicos do Brasil ou, pelo menos, de organismos “mamaliformes”, são as pegadas fósseis da chamada Formação Botucatu, uma unidade geológica que representa um antigo deserto que existiu no interior de São Paulo há  pelo menos 130 milhões de anos. Estas pegadas (assista um vídeo nosso falando sobre isto aqui) são mais antigas do que Brasilestes, mas, infelizmente, nunca puderam ser atribuídas com certeza a um mamífero verdadeiro.

Brasilestes é muito importante, porque fornece a primeira identificação mais precisa sobre um mamífero do Cretáceo do Brasil. A morfologia do dente encontrado indica que o mesmo pertencia a um mamífero Tribosphenida, ou seja, um mamífero do grupo que reúne os placentários e marsupiais.

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Os mamíferos tribosfênidos contam com diversos registros no Cretáceo do hemisfério norte. Porém, no hemisfério sul, apenas haviam sido encontrados na Índia, em Madagascar e no norte da América do Sul. A descrição de Brasilestes stardusti veio preencher uma lacuna importante no registro de mamíferos mesozoicos, ressaltando a importância do Brasil para a compreensão da história evolutiva do grupo.

Por mais absurdo que possa parecer descrever uma nova espécie com base em um único dente, essa é uma situação muito comum para mamíferos fósseis. O registro fossilífero desse grupo é relativamente raro e, majoritariamente baseado na ocorrência de dentes isolados, lembrando que dentes são elementos muito resistentes e preservam-se com maior facilidade do que ossos. Por esta razão, para mamíferos fósseis, características da dentição são muito utilizadas como caracteres diagnósticos de espécies

A equipe envolvida no trabalho também realizou outras análises no fóssil para ajudar em sua identificação, como a avaliação da microestrutura do esmalte dentário.

A cobertura de esmalte encontrada, com cerca de 20 mícrons, é bem mais fina do que a dos dentes de outros mamíferos mesozoicos (entre 100 e 300 mícrons). Além disso, poucas espécies de mamíferos atuais têm característica semelhante, entre eles, alguns Xenarthra (ordem que inclui os tatus, tamanduás e preguiças). Esta observação suscita uma possível relação entre Brasilestes e este grupo de mamíferos. A divergência (ou origem) dos xenartros, calculada por meio da técnica chamada de “relógio molecular”, teria se de dado exatamente nessa época, há pelo menos 85 milhões de anos.

Os mamíferos eram elementos relativamente raros em ecossistemas da Era Mesozoica. Ocupavam nichos secundários, eram, via de regra, pequenos e predominantemente generalistas. A maioria, talvez tivesse hábitos noturnos e fosse arborícola ou fossorial. Essas são algumas razões para os fósseis de Brasilestes serem tão raros. Provavelmente estes organismos eram entidades pouco abundantes em seu paleoecossistema e/ou tinham tamanhos muito pequenos para que seus elementos ósseos delicados fossem preservados e/ou vivessem longe da área favorável para preservação de fósseis.

Tenho certeza de que esta publicação traz novas esperanças aos paleontólogos brasileiros. Que mais fósseis sejam encontrados em breve e ajudem a responder as questões que Brasilestes trouxe à tona (veja mais aqui). Para fechar, vale sempre a pena lembrar, que os mortos têm muita história para contar. Este, especificamente, marcou seu nome na “calçada da fama” da paleontologia nacional, tal qual o grande artista David Bowie deixou sua marca no famoso passadiço hollywoodiano.

Referência:

Castro MC, Goin FJ, Ortiz-Jaureguizar E, Vieytes EC, Tsukui K, Ramezani J, Batezelli A, Marsola JCA, Langer MC. 2018 A late Cretaceous mammal from Brazil and the first radioisotopic age for the Bauru Group. R. Soc. open sci. 5: 180482.  http://dx.doi.org/10.1098/rsos.180482

Município de Coração de Jesus, uma experiência além do tempo

Olá a todos! Seguindo a vertente de postagens relacionadas à divulgação científica e sua importância, temos aqui outra narrativa acerca da divulgação da descoberta do Tapuiasaurus macedoi em sua cidade natal, o município de Coração de Jesus! Este texto, redigido pelo Me. Natan Santos Brilhante, traz uma perspectiva complementar à postagem prévia sobre o assunto (veja aqui). Espero que gostem!


Sob a mira de olhares curiosos e intrigados, forasteiros em um veículo branco com logotipo (representado pela silhueta de um Tamanduá-bandeira) de uma instituição pública conduziram diversas expedições de coleta de fósseis no norte do estado de Minas Gerais. Os trabalhos na região duraram vários anos, mais precisamente de 2005 até 2012. Entretanto, na perspectiva dos habitantes, quais seriam os motivos que trariam por tanto tempo pesquisadores do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP)1 para uma cidade modesta e longínqua?

01 - Natan
Veículo oficial do MZUSP no afloramento. Fonte: Natan Santos Brilhante

Logo MZUSP Atualizado
Logo em evidência, o mesmo visto na porta dianteira do veículo oficial do MZUSP. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Talvez o município de Coração de Jesus seja considerado simples em comparação com as grandes metrópoles brasileiras. Contudo, é uma cidade extremamente rica em cultura, hospitalidade e vivacidade. Em meio a toda a sua diversidade, nunca faltaram pessoas com disposição e prontidão em ajudar, seja para desatolar o veículo quando este enfrentou chuvas torrenciais nas estradas de barro do município, ou para servir com capricho uma boa refeição para toda a equipe depois de um dia exaustivo de trabalho.
 
Outras situações inusitadas fazem parte das boas lembranças, e ocupam as páginas do diário de campo, como o deslocamento de um bloco de grandes dimensões e peso, localizado em área de difícil acesso. Esse material só pôde ser transportado para o alto do barranco graças ao auxílio de um “carro de boi” , gentilmente disponibilizado por José Adão Pereira de Souza, o “Zezinho”, responsável pela descoberta dos primeiros ossos fossilizados expostos na região por ação do intemperismo*.
03 - Natan
“Carro de boi”, comumente usado para auxiliar em atividades de zonas rurais. Fonte: Natan Santos Brilhante

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Moradores do município de Coração de Jesus ajudando a equipe de pesquisa do MZUSP a transportar os materiais. Fonte: Natan Santos Brilhante

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Fragmentos de ossos fossilizados (esbranquiçados) aflorando em meio aos sedimentos por ação do intemperismo. Fonte: Natan Santos Brilhante

E o que falar da amizade do Sr. Israel Cruz e da Sra. Marylene Ferreira que abriram as porteiras da Fazenda Santa Tereza para os pesquisadores trabalharem e que, no entardecer, os acolhia com tanto carinho em sua casa para oferecer um bolo caseiro acompanhado de suco de coquinho azedo***. Vale lembrar ainda do Sr. Amilcar, que nos recebeu em sua residência semelhante a uma “casa de taipa”, a alguns quilômetros dos afloramentos. Sua atitude cordial possibilitou o abastecimento de água para as etapas de coleta, resguardando o uso de recurso potável destinado ao nosso consumo e, consequentemente, evitando a nossa desidratação diante do sol forte e de temperaturas com médias diárias acima dos 40 graus (na sombra). Curiosamente, ele sempre lembrava com precisão o nome de integrantes da equipe que por lá passaram há anos (memória invejável para qualquer taxonomista, não?!).
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Um dos pontos de coleta de fósseis nos domínios da Fazenda Santa Tereza. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Estes foram apenas alguns dos eventos e personagens que fizeram parte das muitas histórias de bastidores que ocorreram durante os trabalhos de campo.
Tal empenho e esforço renderam frutos, ou melhor… fósseis, de dinossauros saurópodes e terópodes, que foram (e continuam sendo) dedicadamente estudados por pesquisadores nacionais e internacionais. Entre as descobertas mais emblemáticas está a espécie Tapuiasaurus macedoi, a partir de um exemplar que detém o mais bem preservado crânio de titanossauro da América do Sul. Essa descoberta recebeu destaque na comunidade científica e na mídia por meio da publicação de um artigo na PLoS ONE4 em 2011 e, mais recentemente, na Zoological Journal of the Linnean Society5 em 2016.
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Coleta de fósseis de dinossauros nos arredores do município de Coração de Jesus. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Equipe de pesquisa do MZUSP protegendo e preparando a retirada dos fósseis no afloramento para serem transportados. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

09 - MZUSP
Crânio do espécime MZSP-PV 807 (Tapuiasaurus macedoi). A barra de escala representa 10 cm. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Infelizmente, nem sempre cabem agradecimentos em uma revista científica a cada pessoa que, direta ou indiretamente, colaborou com o desenvolvimento da pesquisa. Eventualmente, estas serão retratadas em outros meios de comunicação, como internet, jornais e rádio. Outra questão recorrente é a falta de acesso e de linguagem adequada a este tipo de conteúdo por público o qual a vida acadêmica não faz parte da sua realidade.
Então, como retribuir o apoio tão caloroso? Como mostrar à população a importância e a seriedade do que está sendo realizado nos arredores da sua cidade? Ou o porquê de estar sendo realizado. Como resposta, cito a seguir alguns dos trabalhos promovidos por alunos, funcionários e professores do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, em parceria com o Museu de Ciências da USP – Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária2 e o Instituto Butantan3.
As atividades contaram também com o apoio da Prefeitura local e ocorreram a partir de duas frentes principais:
(1) Montagem da exposição itinerante “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”
Abordou temáticas como Paleontologia, Evolução e Dinâmica da Terra, e foi uma remontagem (e recontextualização) de uma exposição com o mesmo título, montada para o Museu de Zoologia da USP, em 2011.
A exposição permaneceu aberta de terça-feira a domingo, durante todo o dia, entre os meses de maio e agosto de 2012. Adentro, o público pôde contemplar fósseis originais e réplicas de diferentes regiões e contextos geológicos, assim como dioramas, vídeos informativos e “paleoarte”. Entre os vídeos, destaca-se um feito com os depoimentos de algumas pessoas da cidade, sobre suas impressões ou sua participação na descoberta dos fósseis.
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Vista geral da exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, em sua primeira montagem itinerante. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

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Painel com informes e material a respeito do vasto universo da Paleontologia. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Após poucos dias de abertura, a exposição já havia recebido milhares de visitantes, alcançando não apenas os Corjesuenses, mas também cidadãos de municípios próximos e de outros estados . Para se ter ideia em números, a exposição foi visitada por mais de 9 mil pessoas, em uma cidade de pouco mais de 20 mil habitantes!
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Dia de visita. Interação entre o público e a exposição. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Acreditamos que este tipo de realização estimule uma prática de grande importância para a região: o turismo. Afinal, a rotatividade intensa de pessoas pode ser uma importante fonte para a economia regional, uma vez que a cidade está distante de grandes centros urbanos e o comércio se restringe basicamente aos seus próprios habitantes.
(2) Projeto de extensão “Paleontologia sob a perspectiva da Educação Patrimonial: aproximando os fósseis da população de Coração de Jesus”
Foi de caráter educativo e teve o intuito de permitir o reconhecimento do patrimônio fossilífero da região, assim como apresentar questões científicas relacionadas à Paleontologia, relevância desta ciência para o mundo e valor do Patrimônio Geopaleontológico. Foram efetivadas as seguintes atividades:
I. Curso de Formação Continuada de Professores – visou um melhor entendimento do patrimônio fossilífero regional e do conteúdo da exposição itinerante por parte de professores, de modo que eles pudessem promover visitas direcionadas com seus alunos, utilizando ferramentas da Educação Patrimonial e o conhecimento obtido a partir de estudos regionais. Esse evento ocorreu em março de 2012, teve duração de uma semana (40 horas) e contou com a participação de 118 professores e funcionários de escolas públicas estaduais e municipais, tanto de áreas urbanas quanto rurais, divididos em duas turmas.
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Curso sendo ministrado para a formação continuada de professores. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

II. Oficinas nas escolas – promoveu monitorias e oficinas para desenvolver dobraduras e desenhos relacionados à Paleontologia, assim como o contato com fósseis e réplicas. Essa etapa incluiu também a iniciativa “Converse com um Paleontólogo”, promovendo o diálogo direto entre alunos das escolas e profissionais e estudantes de pós-graduação em Paleontologia para discutir e esclarecer dúvidas a respeito da atuação do paleontólogo e a relevância da sua área de estudo. Participaram mais de 600 alunos de 10 escolas públicas (urbanas e rurais), em maio de 2012.
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Colaboradores do Laboratório de Paleontologia do MZUSP em diálogo aberto com alunos de escolas públicas. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

III. Formação de Monitores – prestou treinamento técnico para o atendimento ao público na exposição citada acima, de maio a julho de 2012. Os mediadores eram alunos do Ensino Médio, selecionados a partir de uma parceira junto às escolas. O curso abordou conceitos relacionados à Museologia, Paleontologia e Patrimônio Geopaleontológico, totalizando 24 horas.
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Monitores atendendo o público na exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

IV. Curso de Extensão Universitária – foi ministrado para 16 graduandos em agosto de 2012. Para transmitir ideias gerais sobre o que é a Paleontologia, a sua importância, e o quão promissoras são as descobertas regionais.
Foram desenvolvidos também diversos materiais didáticos para complementar, ilustrar e relembrar muitas das informações transmitidas em sala de aula pelos colaboradores do projeto educativo, como o livreto “Cabeça DINOSSAURO – o novo titã brasileiro”.
16 - MZUSP
Material educativo. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

Além dessas práticas, foram também doadas réplicas do “tapuiassauro” para o Centro Cultural José Alves Macedo, um núcleo histórico-cultural sediado na praça central da cidade. Essa instituição foi fundada e é administrada por Ubirajara Alves Macedo, personagem folclórico e um tanto excêntrico da região, que foi homenageado pela sua colaboração na descoberta e na divulgação inicial dos fósseis com o sobrenome da sua família posto no epíteto específico da espécie supracitada (Tapuiasaurus macedoi).
17 - Natan
A praça central da cidade pode ser facilmente reconhecida pela presença de uma icônica estátua, Sagrado Coração de Jesus, que remete ao nome herdado pelo município. Fonte: Natan Santos Brilhante

Por meio dessas ações de ensino e divulgação, foi possível mostrar à população da cidade de Coração de Jesus a importância dos trabalhos paleontológicos, conscientizando e educando os moradores em como proceder diante de novas descobertas, valorizando assim os ideais de preservação e valorização do patrimônio geopaleontológico. Esperamos com isso resgatar não somente o patrimônio fossilífero, mas também, com empenho, incentivar as futuras gerações de paleontólogos(as) e demais entusiastas da ciência.
18 - MZUSP
Monitores transmitindo conhecimento aos visitantes da exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

19 - MZUSP
Alunos de escolas públicas do município de Coração de Jesus durante uma visita à exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”. Nota-se a curiosidade e o entusiasmo em suas expressões faciais ao bordarem a temática Paleontologia. Fonte: Arquivo Laboratório de Paleontologia-MZUSP

* A história mais completa sobre a descoberta dos fósseis no município de Coração de Jesus foi relatada em uma matéria do Estadão, um jornal do estado de São Paulo, o qual, na época (2010), dedicou um caderno especial a essa temática. A reportagem contou também com uma série de entrevistas de alguns dos moradores e dos pesquisadores que estiveram à frente das descobertas na região.
*** Coquinho azedo (Butia capitata): planta típica do cerrado rica em vitamina A, C e potássio.
 
Endereço eletrônico de algumas das reportagens sobre o assunto:
I. http://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,um-dinossauro-no-coracao-de-jesus,609332
II. http://topicos.estadao.com.br/tapuiassauro
III. http://tv.estadao.com.br/geral,dinossauros-do-brasil-o-trabalho-dos-paleontologos,242506
IV. http://tv.estadao.com.br/geral,dinossauros-do-brasil-entrevista-com-alberto-carvalho,244709
Endereço eletrônico das instituições mencionadas:
1 – http://www.mz.usp.br
2 – http://biton.uspnet.usp.br/mc/
3 – http://www.butantan.gov.br
Endereço eletrônico dos artigos científicos a respeito do Tapuiasaurus:
4 – http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0016663
5 – http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/zoj.12420/abstract


Natan Santos Brilhante

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Formação acadêmica: Graduado em Ciências Biológicas pela Universidade do Grande ABC, Licenciatura Plena e Bacharelado; Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Zoologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Experiência profissional: elaboração e execução de exposições, treinamento e medeio de monitores, atendimento ao público, expedições de campo (paleontologia e herpetologia) e outros trabalhos técnicos devido a sua colaboração junto ao Laboratório de Paleontologia e à Museologia do Museu de Zoologia da USP, de 2008 a 2013. Após esse período, ingressou no Museu Nacional/UFRJ e, desde então, segue como colaborador no Setor de Paleovertebrados do Departamento de Geologia e Paleontologia.
Área de estudo: Zoologia, com ênfase em Paleontologia de Vertebrados. Atua principalmente nos seguintes temas: Taxonomia de arcossauros fósseis e recentes, curadoria de coleções, coleta e preparação de fósseis de vertebrados.