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Com um frango no quintal

Talvez uma das facetas mais importantes que um pesquisador pode desempenhar é a de divulgar a ciência, tanto o conhecimento por ele produzido quanto por seus pares. A divulgação cientifica possibilita a aproximação de duas esferas tidas como tradicionalmente distantes que é o conhecimento popular e o conhecimento cientifico, Por meio da divulgação os pesquisadores nutrem a esperança de que pelo menos partes do conhecimento cientifico comece a integrar o conhecimento popular (e.g., teoria da gravidade, relatividade, alguns fatos sobre dinosauros, etc). A divulgação cientifica feita pelos próprios cientistas é relativamente rara e no mínimo controversa, visto que pesquisadores divulgadores são vistos como “estranhos no ninho” por seus pares (ver postagem). No entanto, cada vez mais os orgãos de fomento brasileiros estão reconhecendo a importância de divulgar os resultados das pesquisas por eles financiadas. Portanto, vem  se tornando cada vez mais comum a necessidade de direcionar parte do recurso solicitado, via projeto a um destes orgãos, a divulgação direta de seus resultados.
Com o intuito de ilustrar a importância da divulgação da ciência para a comunidade não-cientifica trago os relatos de dois pesquisadores que estiveram envolvidos no projeto de divulgação do Tapuiasaurus realizado em sua “cidade natal”, Coração de Jesus.
Esta primeira postagem foi feita pela doutoranda Mariana Galera Soler e a segunda postagem será uma contribuição do doutorando Natan Santos Brilhante.
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A divulgação da ciência não é uma novidade da nossa sociedade. Desde o século XVIII há extensos registros de ações de profissionais e amadores da ciência buscando apresentar os seus resultados para plateias, muitas vezes selecionadas. Longe de ser uma ação altruísta, o processo de comunicação dos resultados de uma pesquisa é fundamental para a validação desta pesquisa pelo público que, em última instância, atende funções econômicas (financiamento público e privado) e profissionais (formação de novos profissionais e apoio social à pesquisa).
Já na contemporaneidade, a partir da década de 1970 houve um forte movimento intitulado public undestanding of science, que tem resultado nas ações de divulgação que conhecemos atualmente, como centros de ciência mega-interativos, clubes de ciências, jogos, livros, filmes etc. Neste período a divulgação científica passou a ter um caráter de essencialmente educativo. Fala-se no meio acadêmico em letramento científico ou alfabetização científica, ou seja, informar as pessoas de modo que elas possam tomar suas decisões de acordo com os conceitos científicos vigentes. Em uma sociedade imersa em ciência e tecnologia, como vivemos atualmente, parece um discurso coerente.
No entanto, ao mesmo tempo que falamos em sociedade do conhecimento, hiperconectividade, redes sociais, ao abrirmos os jornais nos deparamos com uma chamada “crise dos direitos humanos”, novos muros estabelecendo fronteiras físicas, além dos “fatos alternativos” e da pseudociência. Conhecemos o corpo humano e o universo em um nível de detalhamento que era impensável no século XIX, mas questionamos a ciência que nos deu acesso a estas informações de uma forma que jamais pensávamos no pós-guerra.

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“Vivemos em uma sociedade extremamente dependente de ciência e tecnologia, em que quase ninguém sabe nada de ciência e tecnologia” – Carl Sagan. Fonte da imagem: http://bigthink.com/words-of-wisdom/carl-sagan-on-science-and-technology

 
Então, põe-se em questão: como falar de ciência para públicos que interessados em likes no Instagram?
Atualmente falar de ciência parece cool, então vou focar em exemplos da Paleontologia. Desenhos de dinossauros estampam camisetas e geralmente grandes bilheterias no cinema. Mas, o que é mesmo um fóssil? Um dinossauro é tão antigo quando meu tataravô? Eu posso ter um fóssil em casa? Quando Pedro Alvares Cabral chegou no Brasil ainda existiam preguiças gigantes?
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“Em minhas veias corre o sangue dos Dinossauros. Dos dinossauros eu te digo!”. Um dos meus memes favoritos sobre dinossauros! Por que divulgação científica também pode ser feita com likes e curtidas. Fonte: http://www.ifunny.com/pictures/veins-flows-blood-dinosaurs/

Estas questões podem parecer bobas para quem é da área, mas não são triviais para a maioria das pessoas. No contexto mais óbvio, o escolar, embora sejam assuntos apontados nos parâmetros curriculares de todos os níveis da Educação Básica brasileira, são temas pouco explorados pelos livros didáticos e na formação dos profissionais da Educação, de forma que a informação sobre paleontologia não está evidente e os conteúdos paleontológicos aparecem dispersos nos currículos escolares, quando aparecem.
Espaços para aprender sobre Paleontologia no Brasil também são escassos. Por exemplo, em todo o estado de São Paulo há menos de uma dezena de museus que possuem fósseis em exposição. Há também alguns centros de ciência, como o Catavento Cultural (em São Paulo/SP), Sabina – Parque Escola do Conhecimento (Santo André/SP) ou o Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS (Rio Grande do Sul / RS), mas dada as dimensões brasileiras ainda são ações esparsas. O Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ) é uma instituição diferenciada neste aspecto, dado ao espaço oferecido a uma exposição permanente sobre as diferentes faunas paleontológicas brasileiras, como também por ações educativas desenvolvidas pela equipe e alunos do museu.
Estas são ações pontuais e, geralmente, circunscritas a capitais e regiões de grande circulação de pessoas. No entanto, quem usa t-shirt com a estampa do “T-rex”, em geral, tem acesso a um museu ou a internet e pode descobrir mais facilmente que aquele personagem tão bravo do “Jurassic Park” não passa de um frangão desengonçado e carniceiro. Voltando a sociedade hiperconectada, a informação paleontológica nas redes sociais está disponível, e é possível dar likes no Instagram de diversos museus, seguir canais no Youtube de divulgadores científicos. O desafio é descobrir onde está a informação qualificada sobre a Paleontologia. E, neste sentido, as instituições e os termos “estudos comprovam” apresentam um peso de qualificadores.
No entanto, esta é uma questão já bem explorada por outros textos. Gostaria aqui de discutir uma outra situação: como nos comunicar com quem encontra fósseis nos seus quintais? Com quem está a margem destas grandes instituições, cuja ciência se aprende tanto na prática cotidiana quanto na escola. Como falar em tempo geológico, para aqueles que contam os períodos do ano entre as épocas de chuva e seca?
Para esta questão, trago um outro referencial que ainda é pouco explorado na Paleontologia brasileira, que é o conceito do fóssil como um patrimônio. Embora legalmente reconhecido como tal desde a década de 1940, e esta ser uma legislação bastante conhecida pelos paleontólogos, a dimensão cultural dos fósseis ainda é pouco explorada nas ações educativas.
Entender o fóssil como um patrimônio natural, implica em contextualizar estes materiais por meio de uma linguagem clara e objetiva, buscando estabelecer relações entre as populações locais onde os fósseis foram encontrados e as equipes que pesquisam. Para além questões biológicas e geológicas diretamente relacionas aos fósseis, a utilização do referencial da educação patrimonial em Paleontologia fornece subsídios para que esses materiais façam parte da identidade local e sejam entendidos como um patrimônio natural a ser preservado. Para que sejam efetivas estas práticas, ou seja, para que a população local seja agente na conservação de sítios paleontológicos e também possam compartilhar seu conhecimento, até mesmo indicando novos afloramentos, abrindo suas casas e propriedades ou históricos da região, é fundamental que as ações atendam as demandas específicas dos grupos locais.
Não há apostilas ou fórmulas. Há estudos de caso que demonstram que a parceria entre populações locais e paleontólogos podem ser frutíferas para ambos. Um exemplo ocorreu no ano de 2012, no município de Coração de Jesus (MG). Nesta localidade foram encontrados fósseis de dinossauros terópodes e saurópodes da Bacia São-franciscana que datam do Período Cretáceo Inferior, com idades em torno de 120 milhões de anos. Esta região tem sido objeto de estudo da equipe de paleontologia do Museu de Zoologia da USP (SP), desde 2005.
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Em destaque, município de Coração de Jesus, no norte do estado de Minas Gerais. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cora%C3%A7%C3%A3o_de_Jesus_(Minas_Gerais)

De forma que, passados sete anos em que a população local convivia com a chegada de uma pick-up branca com emblema de uma universidade de outro estado, pessoas estranhas saiam cedo, iam para a área rural do município e voltavam sujos de terra e com o carro cheios de rochas cobertas por gesso, muitas histórias foram criadas e situações com a equipe. Dizia-se de tudo um pouco: havia um tal dinossauro na cidade, que foi vendido para os EUA há centenas de milhares de reais, os donos das terras onde os fósseis foram encontrados ganharam dinheiro e as equipes de paleontólogos eram apelidados de “osseiros”.  Depois de tanto tempo sem entender bem o que estava acontecendo, as relações entre a população e a equipe começaram a se tornar mais difíceis, ao ponto do prefeito da época ligar para o Museu de Zoologia e pedir explicações.
Bem, tais explicações vieram na forma de um projeto educativo e uma exposição itinerante. Como não era possível levar e fazer uma montagem do fóssil original, foi montada a exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, ao redor da réplica completa do dinossauro Tapuiassaurus macedoi. As ações educativas seguiram quatro linhas: (i) Curso de Formação Continuada de Professores, em que os conhecimentos gerados a partir dos estudos na região foram compartilhados com professores; também foram abordadas ferramentas da Educação Patrimonial, para que os professores e alunos pudessem explorar a exposição e o patrimônio fossilífero regional. Participaram 118 professores e funcionários das escolas públicas estaduais e municipais, urbanas e rurais. (ii) Oficinas nas escolas, que discutiram o trabalho do paleontólogo, por meio de desenhos, dobraduras, interação com réplicas e fósseis e roda de conversa entre alunos e profissionais, intitulada “Converse com um Paleontólogo”. Em maio de 2012, foram realizadas oficinas para 10 escolas públicas (urbanas e rurais), envolvendo mais de 600 alunos. (iii) Formação de Monitores, como parte da parceria com as escolas, em que foram escolhidos 20 alunos do Ensino Médio os quais atuaram como mediadores na exposição entre os meses de maio e julho de 2012. Estes alunos realizaram um curso de formação (duração de 24 horas), em que se discutiram conceitos relacionados à Paleontologia, museus e patrimônio geopaleontológico. E, (iv) Curso de Extensão Universitária, abordando aspectos gerais da Paleontologia e ratificando a importância científica das descobertas regionais. Participaram do curso 16 estudantes, em agosto de 2012.
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Exposição “Cabeça Dinossauro: o novo titã brasileiro”, em sua primeira montagem itinerante, em Coração de Jesus (MG), maio de 2012. Na foto, um grupo de estudantes da cidade é atendido na exposição por dois monitores (também estudantes da cidade que participaram do projeto educativo). Foto: Mariana Galera Soler

 
Durante todo este projeto, que durou cerca de 6 meses, os “osseiros” acabaram sendo pessoas conhecidas na cidade. Quando saíamos nas ruas (e aqui me incluo, pois fui coordenadora deste projeto e também uma das “osseiras” que estava na coleta dos fósseis) éramos convidados para entrar nas casas, conversar com as pessoas sobre o tal dinossauro. De elementos estranhos, passamos a fazer parte da história daquele local, materializado na forma do “tal dinossauro” entrar nas propostas de letra para um novo hino da cidade ou da “explicação” de uma lenda local***.
De porteiras fechadas nas regiões dos afloramentos, fomos recebidos com café e biscoito de toalha e conhecemos uma Coração de Jesus absolutamente nova para nós. Os resultados não foram “apenas” a divulgação dos resultados da pesquisa paleontológica, as pessoas de Coração de Jesus sabiam nossos nomes e se interessavam pelo nosso trabalho, já não éramos mais os “osseiros”. E de muitas histórias que podem ser contadas, uma frase de um professor no último dia do curso registrou fundamentalmente esta parceria: “Obrigado por ter nos ajudado a descobrir que a nossa cidade é mais importante do que parece”.
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Nas visitas as escolas realizávamos diferentes oficinas, entre elas a construção de dinossauros de origamis. Na imagem, um dos alunos das escolas rurais de Coração de Jesus (MG) com seus dinossauros. Foto: Mariana Galera Soler

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Exposição de trabalhos dos alunos em escola rural do município de Coração de Jesus. A atividade de “criar fósseis” com a impressão de folhas em argila foi uma das oficinas propostas para os professores durante o curso. Ao fundo, algumas reconstituições dos animais extintos encontrados na região, também feitas em argila por alunos. Foto: Mariana Galera Soler

Este é apenas um caso, mas existem outros. Embora escassos, projetos focados em populações locais e tratando os fósseis como um patrimônio e em parceria com as pessoas são um caminho possível para além da divulgação da ciência mais óbvia, cheia de fórmulas prontas e high tech de comunicar uma ciência neutra e fechada em si, tratando os fósseis como todos sendo um dinossauro sem penas que corre como um guepardo. Projetos locais e contextualizados são um caminho para a preservação do património fossilífero in situ e para que a ciência não seja apenas um conjunto de resultados empilhados, assépticos e descontextualizados, e produzida por homens brancos, de meia idade e jaleco branco (eventualmente, com a língua de fora).
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Não basta ser monitor tem que participar! Alunos do Ensino Médio foram indicados por seus professores para atuar como monitores na exposição. Para tanto participaram de um curso sobre Paleontologia e também de diversas atividades práticas, entre elas ajudar na montagem da própria exposição. Foto: Marcia Fernades Lourenço

 
*** Coração de Jesus teve nos anos 1960 – 70 certa notoriedade na região e grandes investimentos públicos que geraram, por exemplo, a construção de um espaço esportivo e complexo de piscinas bem estruturados. Contudo, esse projeto foi abandonado e o município voltou a ser apenas mais um dos pequenos lugares na borda do Vale do Jequitinhonha. Para explicar esta “perda de status”, os mais velhos costumavam dizer que no passado alguém havia enterrado a cabeça de um burro na cidade e por isso ela não “ia para frente”. Com a descoberta do crânio (“cabeça”) de um dinossauro (bicho antigo que viveu há muito tempo), diversas pessoas relacionaram o fóssil a “cabeça do burro” e viram nesta descoberta a chance da cidade voltar a progredir.


Mariana Galera Soler

Formação: Bió18109741_1315265438526683_809310084_nloga pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP/RP) e Mestre em Museologia pela USP/SP. Estudante de doutorado em História e Filosofia da Ciência, com especialização em Museologia pela Universidade de Évora / Portugal.
Área de estudo: comunicação e divulgação científica; museus de história natural; exposições e coleções científicas.
 Mas onde entra Paleontologia em tudo isso? Desde a graduação trabalhei o Laboratório de Paleontologia da USP Ribeirão Preto. Depois fui ao Museu de Zoologia da USP / São Paulo, onde trabalhei na curadoria da coleção paleontológica, além de participar de outras atividades do Laboratório de Paleontologia.
Bem tudo isso já faz algum tempo! Também já fui professora de biologia e ciências e, nos últimos seis anos, atuei na coordenação do setor educativo do Museu Biológico do Instituto Butantan. O que não quer dizer que eu deixei a Paleontologia de lado. Continuo trabalhando no gerenciamento da base de dados paleontológicos brasileira LUND (www.lund.fc.unesp.br/lund) e atuei em alguns trabalhos de divulgação e exposições paleontológicas, em que uma das histórias conto aqui nesse texto.
 

Tetrapodophis amplectus e a história sem fim da “cobra” de quatro patas: uma perspectiva interna.

Em 2015, um fóssil proveniente do Brasil veio à tona com uma publicação feita por Martill e colaboradores. A repercussão dessa publicação foi imensa por vários motivos, como por exemplo, o fato de se tratar de um espécime muito bem preservado de uma suposta cobra de quatro patas. No entanto, nem tudo foram flores, críticas acerca da procedência duvidosa do material e até mesmo da sua designação como uma serpente foram levantadas. Para sabermos um pouco mais sobre o assunto e a importância das discussões levantadas convidamos o Doutorando Tiago Rodrigues Simões, especialista no estudo da origem e evolução de Squamata (lagartos e cobras), para escrever o esclarecedor texto abaixo.

Obs: Agradeço ao colega João Francisco Botelho pela sugestão do tema, que me motivou a convidar o Tiago para redigir tal texto.

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 (TEXTO POR TIAGO SIMÕES)   

Tetrapodophis amplectus e a história sem fim da “cobra” de quatro patas: uma perspectiva interna

Fósseis espetaculares costumam chamar a atenção da comunidade científica e da mídia ao redor do mundo. Em parte pelo fascínio que a paleontologia como um todo (especialmente através dos dinossauros) causa em muitos, em parte pelas novas perspectivas que certos fósseis fornecem acerca da evolução dos seres vivos. Dentro desse último aspecto encontra-se um réptil fóssil denominado Tetrapodophis amplectus (Figura 1), da Formação Crato da Bacia do Araripe, que viveu a cerca de 115 milhões de anos atrás. A espécie, originalmente publicada como uma cobra de quatro patas (Martill, Tischlinger & Longrich, 2015) criou grande comoção na comunidade científica internacional no ano de 2015. Contudo, logo após a sua publicação, o estudo foi alvo de uma série de controversas envolvendo tanto a procedência do material, quanto a ciência por trás da descoberta. No relato abaixo, eu forneço um relato e as minhas perspectivas sobre o assunto do ponto de vista de um brasileiro, especialista em lagartos fósseis e diretamente envolvido na nova pesquisa sobre a Tetrapodophis.

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Figura 1: Espécime (holótipo) de Tetrapodophis amplectus. Créditos: Michael W. Caldwell

Problemas na caracterização anatômica e classificação

A posição ocupada pela Tetrapodophis na evolução do grupo que compreende as cobras e lagartos (Squamata, ou escamados) é sem dúvida o aspecto mais problemático na interpretação científica do fóssil. No último encontro da Society of Vertebrate Paleontology (SVP) em Salt Lake City, nos EUA, um time de colaboradores liderados por Michael Caldwell (University of Alberta, Canadá), e que também inclui Robert Reisz (University of Toronto, Canadá), Randall Nydam (Midwestern University, EUA), Alessandro Palci (Flinders University, Austrália), além de mim (afiliação abaixo), apresentou uma série de dados novos sobre a Tetrapodophis. Em resumo, aspectos da morfologia dentária (Figura 2), craniana e das vértebras indicam que o indivíduo se parece mais com um grupo extinto de lagartos aquáticos denominados dolicossaurídeos (proximamente relacionados aos mosassauros) do que com qualquer cobra vivente ou fóssil conhecida. Um dos aspectos mais relevantes dos novos dados obtidos é que a informação anatômica presente na descrição original do espécime ou está errada, ou é impossível de ser visualizada. Além disso, partes do material preservam impressões da morfologia do crânio (Figura 3) que foram simplesmente ignoradas no estudo original. É de se espantar que tal informação não tenha sido incluída no estudo original, já que tais impressões em baixo relevo do crânio fornecem informações valiosas sobre alguns ossos que são importantes para a classificação dessa espécie dentre os escamados (Squamata).

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Figura 2: Imagem dos dentes presentes no holótipo de Tetrapodophis amplectus . a) material original; b) representação esquemática, enumerando os dentes. Créditos: Michael W. Caldwell

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Figura 3: Imagens do crânio de Tetrapodophis amplectus . Principais ossos preservados, bem como as impressões de ossos completa ou parcialmente destruidos. Créditos: Michael W. Caldwell

O leitor pode se perguntar como que erros em tamanho volume podem ter sido cometidos em um estudo publicado num periódico de tamanho escalão como a Science? Pois bem, você não é o único. Diversos outros especialistas em escamados presentes na reunião anual da SVP ficaram igualmente espantados sobre a falta de cuidado na correta interpretação anatômica da Tetrapodophis. Alguns já desconfiavam de diversos erros ao comparar as fotos publicadas com a descrição escrita do material no artigo original, mas somente agora com os novos dados fornecidos pelo nosso time de colaboradores puderam confirmar tais suspeitas (veja relato do Dr. Jason Head, Cambridge University: http://news.nationalgeographic.com/2016/11/snakes-tetrapodophis-fossils-ethics-science/).

Uma outra pergunta que aqueles que não são especialistas em cobras e lagartos podem fazer (e extremamente relevante nessa discussão) é: como um animal alongado e de patas curtas não é uma cobra? O que ocorre é que diversas linhagens de lagartos adquiriram um corpo alongado seguido de redução dos membros durante a sua história evolutiva, incluindo as cobras, dolicossaurídeos, anfisbênias, dibamídeos, pigopodídeos, diversas grupos de anguídeos, scincídeos, entre outros. Dessa forma, a redução de membros e presença de um corpo alongado estão longe de ser um aspecto exclusivamente observado nas cobras. Para se reconhecer uma cobra como tal, deve-se analisar a morfologia das vértebras e, em especial, do crânio. Sendo assim, a combinação de dados que foram mal-interpretados ou ignorados certamente influenciou os resultados apresentados por Martill e co-autores, inclusive a análise filogenética realizada pelos mesmos.

Problemas na interpretação do hábito de vida

A interpretação inicial do fóssil como um animal fossorial foi um dos pontos que mais me chamou a atenção na descrição por parte de Martill e colaboradores. O indivíduo possui os ossos do pulso e do tornozelo pouco ou não ossificados. Apesar de essa característica poder ser indicativa de um estágio juvenil em répteis, especialmente no estágio embrionário ou recém-nascido, nenhum outro aspecto da morfologia do animal indica um estágio de desenvolvimento tão jovem. Uma outra hipótese, no entanto, explica de forma mais parcimoniosa esse baixo grau de ossificação: um hábito de vida aquático, conforme observado em inúmeras linhagens de répteis que adquiriram um hábito aquático em sua história evolutiva (ex: mosassauros, plesiossauros, talatossauros, entre outros). Além disso, a baixa ossificação dos ossos do pulso e tornozelo tornariam as patas da Tetrapodophis pouco úteis para atividades como escavar ou escalar. Outros argumentos também foram utilizados em um estudo mais recente para demonstrar empiricamente que a Tetrapodophis não possui o leque de adaptações que normalmente se observa em lagartos ou cobras fossoriais (Lee et al., 2016).

Problemas legais e éticos

O outro aspecto controverso sobre a Tetrapodophis, e que concerne de forma mais direta a paleontologia brasileira, é como esse material foi parar em uma coleção particular na Alemanha. A legislação brasileira proíbe, desde 1942, a venda de fósseis ou a sua retirada do país sem permissão legal. No entanto, toneladas de fósseis deixam o Brasil ilegalmente para serem vendidos no exterior, especialmente aqueles da bacia do Araripe (região de procedência da Tetrapodophis)—para mais detalhes sobre a legislação brasileira sobre os fósseis e o problema do contrabando de fósseis, veja Simões and Caldwell (2015). Os autores do trabalho relataram não saber sobre a exata época em que o fóssil saiu do Brasil (http://www.sciencemag.org/news/2015/07/four-legged-snake-fossil-stuns-scientists-and-ignites-controversy). Na realidade, depoimentos por parte do autor principal (Martill) sobre a saída do material do Brasil demonstram o quão preocupado com as normas éticas e legais o autor parecia estar no momento de sua publicação “pessoalmente, eu não dou a mínima para como e quando o fóssil saiu do Brasil” [tradução livre] (veja o relato de Martill no link anterior). Contudo, o fato do fóssil pertencer a uma coleção particular e devido ao longo histórico de tráfico de fósseis da região do Araripe criam uma situação muito suspeita acerca da procedência do material e as circunstâncias da sua saída do país. Isso levou a abertura de um processo criminal para se investigar a saída desse fóssil do Brasil (http://www.nature.com/news/four-legged-snake-fossil-sparks-legal-investigation-1.18116).

Um dos grandes problemas envolvendo coleções particulares e venda de fósseis é a perda de conhecimento sobre a biodiversidade pretérita devido a exemplares que terminam em gavetas de indivíduos particulares, ao invés de serem estudados por especialistas em museus e universidades. No caso da Tetrapodophis, o exemplar havia sido depositado em um museu na região de Solnhofen à época da publicação. Contudo, o material pertence a um colecionador particular e o dono detém os direitos de retirar o espécime do museu quando bem entender. Em algum momento entre o fim de 2015 e início de 2016, soubemos da notícia que o dono do material havia retirado o espécime do museu em Solnhofen e que, portanto, o holótipo e único espécime conhecido de Tetrapodophis não estava mais disponível para estudo. As observações do espécime feitas por Martill e co-autores, seguidas das realizadas por Caldwell e Reisz em uma visita ao museu logo após a publicação da espécie, poderão permanecer como as únicas existentes acerca desse material, talvez por muitos anos a frente. Nesse contexto, e ao meu entendimento, fica clara a resposta a pergunta: quem ganha com materiais científicos depositados em coleções particulares? Certamente, não é a ciência.

Referências para os artigos citados acima:

Lee MSY, Palci A, Jones MEH, Caldwell MW, Holmes JD, Reisz RR. 2016. Aquatic adaptations in the four limbs of the snake-like reptile Tetrapodophis from the Lower Cretaceous of Brazil. Cretaceous Research 66: 194-199.

Martill DM, Tischlinger H, Longrich NR. 2015. A four-legged snake from the Early Cretaceous of Gondwana. Science 349: 416-419.

Simões TR, Caldwell MW. 2015. Fósseis e legislação: breve comparação entre Brasil e Canadá. Ciência e Cultura 67: 50-53.

Dados sobre o autor:

12645264_10207058817362317_831737693683863186_nTiago Rodrigues Simões possui graduação e mestrado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atualmente está concluindo o doutorado na University of Alberta (Edmonton, Canandá). A sua pesquisa consiste no estudo da origem e evolução de Squamata (lagartos e cobras), utilizando dados de espécies fósseis e viventes (https://www.researchgate.net/profile/Tiago_Simes2).

Análise quantitativa dos fósseis de Dinossauros do Brasil e da Argentina

Esta contribuição foi feita pelo aluno de graduação da Universidade Federal de Uberlândia chamado Rodolfo Otávio dos Santos. Atualmente ele se encontra no 5º periodo do curso de Ciências Biológicas e está estagiando no Laboratório de Paleontologia da UFU (https://www.facebook.com/PaleoUFU). Devido ao seu interesse na área e de auxiliar na divulgação sobre tais assuntos ele seguirá contribuindo com mais postagens sobre os mais variados tópicos (obs: aguardem temas nerds hehe).
Então vamos ao texto!
Entre 225 e 65 milhões de anos, durante a Era Mesozóica, o planeta Terra foi dominado pelos Dinossauros, principalmente pelas linhagens não-avianas. Na região onde hoje é a América do Sul, mais especificamente Brasil e Argentina, numerosas espécies desses animais prosperaram e deixaram muitas evidências deste passado remoto, sob a forma de fósseis. Considerando-se a geografia atual, o Brasil possui uma área de aproximadamente 8,5 milhões de km², enquanto nossos vizinhos têm apenas cerca de 2,8 milhões de km². Numa análise superficial, levando em conta apenas a área total, espera-se que o país com maior território possua uma quantidade superior de espécies preservadas na forma de fósseis. Porém, até o ano de 2010, mais de 110 fósseis de diferentes espécies de dinossauros foram encontrados em terras argentinas, enquanto no território brasileiro, até o mesmo periodo, pouco mais de 20. Este cenário se mantém até os dias atuais em termos de proporção. Este texto busca explicar as razões para tamanha diferença na quantidade de espécies de dinossauros entre os dois países tendo como base as discussões iniciadas por Anelli (2010).
 
Os fósseis de dinossauros são conhecidos pelo homem há milênios: Na China, dois mil anos atrás, em rochas jurássicas, esqueletos fossilizados eram encontrados e atribuídos a dragões. Apenas no séc. XIX o ser humano passou a compreender melhor a origem e preservação dos fósseis, graças a avanços científicos importantes da Biologia e da Geologia. No Brasil, durante os períodos colonial e Imperial, e o início da República, vários relatos atribuem fósseis de vertebrados a dinossauros. Porém, sabe-se que a maioria dessas atribuições na verdade não correspondiam a dinossauros, e sim a outros grupos próximos (Crocodilomorfos, por exemplo). Além disso, muitos materiais foram enviados para fora do país, e acabaram se perdendo, não havendo como confirmar sua afinidade para com os dinossauros. O primeiro paleontólogo a realizar trabalhos mais consistentes no Brasil foi o dinamarquês Peter Wilhelm Lund, que chegou ao país em 1825 e por vinte anos procurou por fósseis no estado de Minas Gerais, sendo então considerado o pai da paleontologia brasileira.
 
Lund, porém, estava interessado em prospectar e estudar vestígios de seres humanos pré-históricos, tendo explorando rochas do período Pleistocênico, muito mais recentes do que aquelas onde se espera encontrar os dinossauros não avianos, há muito já extintos. Foi o gaúcho Llewellyn Ivor Price, durante a década de 30 do século XX que iniciou os estudos de dinossauros de forma mais profunda no Brasil. Price realizou escavações no triângulo mineiro, na região de Peirópolis, e no Rio Grande do Sul, coletando fósseis de crocodilos e dinossauros. No ano de 1970 foi descrito o primeiro dinossauro brasileiro, o Staurikosaurus pricei Colbert, 1970, a partir de fósseis coletados por Price, cujo nome o homenageava. Vale ressaltar que embora esta seja a primeira espécie descrita para o Brasil, seu material encontra-se depositado em coleções estrangeiras. Enquanto isso, na Argentina, os irmãos Florentino e Carlos Ameghino, pioneiros da paleontologia no país, realizaram escavações em rochas da Era Mesozóica, encontrando e descrevendo o primeiro fóssil de dinossauro argentino, o Argyrosaurus superbus Lydekker, 1893, no ano de 1893, 77 anos antes do Staurikosaurus pricei. Na década de 70, quando o Brasil possuía apenas um dinossauro descrito, já eram conhecidas 23 espécies argentinas.
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A esquerda Peter Wilhelm Lund e a direita Llewellyn Ivor Price, grandes paleontologos do cenário brasileiro.
Nos anos 2000, a Paleontologia ganhou destaque na mídia, graças a filmes como “Jurassic Park”, o que influenciou positivamente a quantidade de pesq uisas sobre dinossauros no Brasil. Porém, ainda assim, a proporção de fósseis encontrados na Argentina continuou sendo maior em relação à brasileira. Portanto, há outros fatores, além do tempo de pesquisa, que explicam a diferença dos números.
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A grande e comovente cena final do Jurassic Park (1993) que motivou uma nova geração de paleontólogos (fonte: http://vignette4.wikia.nocookie.net/jurassicpark/images/a/ae/T-rex-jurassic-park-1-.jpg/revision/latest?cb=20120816155226)
 
Os fósseis são encontrados majoritariamente em rochas sedimentares. Comparado à Argentina, o Brasil possui uma área aproximadamente quatro vezes maior onde existem afloramentos de rochas sedimentares da Era Mesozóica. Na mais antiga das subdivisões da Era Mesozóica, o Período Triássico, fósseis de dinossauros são raros, não apenas na América do Sul, e sim em todo mundo. Isso ocorre porque apesar das principais linhagens de dinossauros já terem aparecido neste momento, elas ainda não haviam se diversificado, o que só ocorreu de forma expressiva no período seguinte, o Jurássico. São conhecidos doze fósseis argentinos desse período, e no Brasil, seis. Levando em consideração essa baixa diversificação dos dinossauros triássicos, conclui-se que a pequena diferença nos números de fósseis entre os dois países não é suficiente para explicar a enorme variação dos números totais. Essa variação provavelmente está condicionada a quantidade de rochas aflorantes de tal idade e com registros de dinossauros, sendo no Brasil estas predominantemente limitadas ao sul do pais enquanto que na Argentina há uma maior diversidade de formações geológicas para este periodo.
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Espécime de Sacisaurus “aguardando sua descoberta”. O gênero Sacisaurus é um dos grupos de dinossauros que habitaram o sul do Brasil durante o periodo Triássico. (fonte: http://sites.ffclrp.usp.br/paleo/galeria_final/photos/foto32.jpg)
A grande irradiação dos dinossauros durante o Jurássico refletiu no registro fossilífero, pois os restos desses animais são abundantes em todo planeta em rochas desse período. Entretanto, na América do Sul, fósseis de dinossauros jurássicos não são comuns. Isso ocorre graças à imperfeição do registro fossilífero, que é condicionado pela existência de bacias sedimentares, locais cujo sedimentos se depositam e acumulam dando origem, posteriormente, as rochas sedimentares. No Brasil existem poucos locais com rochas sedimentares jurássicas, e em nenhuma delas dinossauros foram encontrados. As poucas rochas jurássicas sul americanas com chances boas de encontrar fósseis dinossauros estão na região oeste da Argentina, onde sete espécies foram descritas. Essa pequena diferença, no entanto, novamente não explica a enorme desigualdade nos números, restando então analisar as rochas do período seguinte, o Cretáceo.
 
O registro fóssil nos mostra que os dinossauros alcançaram sua máxima diversificação durante o período Cretáceo. De fato, cerca de 80% dos dinossauros conhecidos da América do Sul são cretáceos, e destes, aproximadamente 90% foram encontrados na Argentina. Isso mostra que a grande diferença entre a quantidade de fósseis dos dois países se deve, principalmente, a fatores ligados às rochas do período Cretáceo. O primeiro deles relaciona-se com a quantidade de camadas de rochas (sucessão sedimentar), muito mais espessa na Argentina do que no Brasil. Sendo assim, mesmo havendo maior área de afloramentos em nosso país, na Argentina existem mais camadas onde fósseis foram encontrados. As 24 camadas fossilíferas (28, se os icnofósseis de pegadas e ovos forem contabilizados) abrangem quase todas as idades do período Cretáceo, enquanto no Brasil, até o momento, apenas em cinco camadas foram encontrados dinossauros, sendo representados em cerca de cinco idades do Cretáceo. Com a maior diversidade de idades, há maior chance de se encontrar diferentes espécies.
 
Outro fator determinante para uma grande biodiversidade é o paleoclima. Analisando a biota terrestre atual, pode-se perceber que regiões com clima quente e úmido, como as florestas tropicais, possuem uma maior diversidade de espécies em detrimento àquelas com clima mais seco, como os desertos. Basicamente, a maior disponibilidade de recursos nesses locais (luz solar, água, entre outros) permite o desenvolvimento de um maior número de plantas, que por sua vez sustentam um número maior de animais herbívoros, e estes, de carnívoros. No passado, essa relação entre clima e biodiversidade também existia, e durante as fases do período Cretáceo argentino que ficaram preservadas nas rochas, o clima predominante era o subtropical úmido, com extensas florestas que se desenvolviam no entorno de lagos e de regiões pantanosas. A principal evidência deste cenário vem dos inúmeros fósseis de vegetais encontrados nas rochas cretáceas argentinas, e essa riqueza de recursos certamente atraía os dinossauros, que também deixaram os vestígios de sua presença.
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Reconstituição paleoambiental durante o Cretáceo na região do sudoeste paulista. Elucidando o clima árido da época e seus rios entrelaçados. (Fonte: https://pepiart.files.wordpress.com/2012/07/monte1.jpg)
Já no Brasil, as evidências sugerem que nas bacias sedimentares do Cretáceo onde foram encontrados fósseis de dinossauros (Bauru, Araripe e São Luís-Grajaú) predominava o clima semiárido, ao menos nas regiões até o momento estudadas (o que não significa que durante mais de 80 milhões de anos essas regiões possuíam apenas este tipo climático). Na Bacia Bauru, por exemplo, os fósseis de vegetais são raramente encontrados, um indicativo de que as plantas estavam presentes na região, mas sua preservação não foi favorecida pelo ambiente deposicional. Na Bacia do Araripe os fósseis de dinossauros encontrados foram depositados sobre uma laguna, propiciando um ambiente de deposição de baixa energia, que também possibilitou a preservação de espécies vegetais. Porém, muitas dessas plantas fossilizadas são indicadoras de um clima semiárido, como pro exemplo a araucariácea Brachyphyllum. Por fim, na Bacia de São Luís-Grajaú, as evidências também apontam um clima semiárido, porém a proximidade com o oceano Atlântico permitiu certa retenção de umidade, propiciando a presença de uma maior variedade de espécies vegetais que foram preservadas, como samambaias, coníferas e angiospermas, bem como de dinossauros. De fato, essas rochas contêm o maior número de fósseis de dinossauros do Brasil, porém devido a outros fatores que serão abordados na seqüência, a maioria deles não permite uma identificação precisa.
 
Outro fator crucial para a preservação de fósseis é o grau de transporte aos quais os restos são submetidos. Eventos de transporte acabam por retrabalhar o fóssil, ocasionando desarticulação e fragmentação do esqueleto, e consequentemente, perda de informações valiosas para a identificação de tais restos. Na Bacia Bauru, como comentado anteriormente, o clima era semiárido. Sendo assim, as chuvas eram concentradas em poucas estações do ano, sendo torrenciais, num tipo de regime hídrico que favorece o aparecimento de rios entrelaçados, Neste tipo de rio, a quantidade de sedimentos presente é muito maior do que aquela que o rio consegue transportar, Os sedimentos então ficam depositados no próprio canal, e a água precisa abrir novos espaços para fluir, criando uma feição entrelaçada. Nos anos seguintes, novas chuvas fazem com que o processo se repita, e a água acaba atravessando os canais em que os sedimentos com esqueletos estavam acabando por desarticulá-los de acordo com a sua densidade, fazendo com que boa parte dos ossos ficasse exposta ao intemperismo, desaparecendo gradualmente. Muitos dentes e pequenos fragmentos fossilizados são encontrados na região, pois estes são mais resistentes aos processos de transporte e diagênesis, porém essas partes muitas vezes não são suficientes para identificação de uma espécie.
 
Já na Bacia de São Luis-Grajaú, os esqueletos sofreram com um tipo de retrabalhamento diferente, ocasionado pelas forças da maré, pois no passado o local era um grande estuário, uma região onde a força das marés adentrava pelo rio, que era circundado por uma vegetação densa, capaz de prover recursos para muitas espécies de dinossauros. Porém, o efeito do vaivém das marés era grande, e os esqueletos ali depositados eram retrabalhados, sendo constantemente fragmentados, transportados e destruídos. Assim como na Bacia Bauru, apenas partes mais densas, como vértebras e dentes conseguiam suportar estes eventos sem se fragmentar, e são hoje encontradas nas rochas da região. Por fim, como foi visto, a laguna que serviu como ambiente deposicional da Bacia do Araripe propiciou um bom ambiente de deposição de sedimentos, com pouca energia de transporte. De fato, muitos fósseis de peixes e outros organismos aquáticos são encontrados em excelente estado de conservação. Os fósseis de dinossauros, porém, são raros, pois o modo de vida desses animais não estava tão diretamente relacionado com a água. Portanto, além do clima semiárido, o tipo de ambiente deposicional foi um fator crucial para que o Brasil tivesse uma menor quantidade de fósseis diagnósticos de dinossauros.
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Exemplo de dinossauro (Oxalaia quilombensis) encontrado nos depósitos da Bacia de São Luis-Grajaú mostrando o alto grau de retrabalhamento e fragmentação dos materiais da região. (Fonte: http://4.bp.blogspot.com/-5ImRSMo_z6A/Tme-JCGjQ6I/AAAAAAAAAnw/9_6B4LNW6kc/s320/Oxalaia+%25282%2529.jpg)
 
Finalmente, o último e mais importante fator determinante na diferença dos números de espécies de dinossauros entre os dois países está relacionado com o clima atual de Brasil e Argentina. Em nosso país, as bacias sedimentares onde os fósseis são encontrados estão localizadas em regiões com alta taxa de insolação e/ou elevados índices pluviométricos, além de em sua maioria as bacias hidrográficas se sobreporem quase que por completo as bacias sedimentares (por exemplo a Bacia do rio Paraná que se sobrepõem à Bacia Sedimentar do Paraná). Tal situação favorece a ação do intemperismo, tanto o físico, responsável pela dilatação e contração térmica, quanto o químico, onde a água proveniente das chuvas reage com os elementos químicos que compõe a rocha e altera sua composição, transformando-a em solo, juntamente com os fósseis nela preservados. Devido a isso, a maior parte das camadas de rochas sedimentares brasileiras está coberta por estratos de solo de grande espessura, o que impede que os paleontólogos tenham acesso aos fósseis nela contidos. Apenas em regiões onde a rocha foi cortada no intuito de abrir espaço para a construção de rodovias e ferrovias, ou então em margens de rios expostas à erosão por eles causada, é possível observar o afloramento das rochas sedimentares e dos fósseis, porém essas áreas representam somente uma pequena parcela do total de rochas com potencial fossilífero.
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Ilustrando o alto indice pluviométrico no Brasil, inclusive havendo regiões com tempestades tropicais. (Fonte: https://eco4u.files.wordpress.com/2011/06/tempestade.jpg)
 
Já na Argentina, o cenário é completamente oposto, pois diversos fatores, como a Corrente fria de Humboldt, a presença da Cordilheira dos Andes, entre outros, tornam o clima mais seco nas áreas em que são encontradas rochas sedimentares, diminuindo os efeitos do intemperismo, fazendo com que a camada de solo seja muito fina, impossibilitando o estabelecimento de uma cobertura vegetal e expondo a maioria das rochas e, consequentemente, dos fósseis, assim como acontece em outras regiões do planeta com condições semelhantes, como, por exemplo, o deserto de Gobi, na Mongólia e o meio oeste americano, notáveis pela imensa quantidade dos mais variados fósseis.
 
Em suma, os dois últimos fatores abordados – o grau de retrabalhamento dos fósseis brasileiros, e a pequena disponibilidade de rochas sedimentares expostas – são apontados como fatores responsáveis pela grande discrepância dos números de fósseis de dinossauros entre Brasil e Argentina. Entretanto, locais ainda pouco explorados em nosso país, principalmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste, podem futuramente mostrar um cenário diferente, onde as condições necessárias para a formação e preservação dos fósseis sejam melhores, tornando possível diminuir essa diferença no número de espécies encontradas. Além disso, evidências provenientes da paleoicnologia apontam uma diversidade muito maior de dinossauros para o território brasileiro, como as ocorrências de pegadas de Ornithischia enquanto ainda não registro de materiais fósseis corporais destes animais.
Referências bibliográficas:
ANELLI, L. E. O guia completo dos Dinossauros do Brasil. 1 ed. São Paulo: Peirópolis, 2010. 222 p.

Um bicho tinhoso!! Conheça o mais novo predador do Cretáceo do Brasil

Durante do Cretáceo Superior, há cerca de 80 milhões de anos atrás, a região hoje correspondente ao noroeste do estado de São Paulo e Triângulo Mineiro em Minas Gerais, abrigava uma rica e diversificada fauna de crocodiliformes terrestres  (parentes distantes dos crocodilos e jacarés atuais), que prosperava em meio aos gigantes dinossauros.

Recentemente uma nova espécie de crocodiliforme desse período foi descoberta em uma cidade do interior de São Paulo. Descrita por pesquisadores brasileiros, o novo animal, com o crânio extraordinariamente bem preservado, ganhou um nome de dar medo: Gondwanasuchus scabrosus. Quer entender o por quê desse estranho nome de batismo? Vamos primeiro conhecer um pouco mais sobre esse animal:

Gondwanasuchus scabrosus_Rodolfo Nogueira
Arte de Rodolfo Nogueira.

– Texto por Thiago Marinho –

O mais novo representante dos crocodiliformes terrestres do Cretáceo do Brasil, Gondwanasuchus scabrosus, é um pequeno predador da Família Baurusuchidae, composta por importantes predadores e carniceiros que poderiam até mesmo competir por presas com pequenos dinossauros. Essa nova espécie foi descrita com base em um crânio parcialmente completo e muito bem preservado, proveniente de rochas da Formação Adamantina do município de General Salgado, noroeste do estado de São Paulo. Gondwanasuchus não passaria de 1,30 m de comprimento, mas o que esses animais não tinham em tamanho, tinham em adaptações que os tornavam eficientes predadores.

O nome do gênero, Gondwanasuchus, faz alusão a distribuição da família dos baurussuquídeos, restrita a regiões do antigo supercontinente Gondwana (que durante o Cretáceo agrupava a América do Sul, África, Madagascar, Índia, Oceania e Antártica) e, suchus, que significa crocodilo. O nome que define a espécie, scabrosus, é uma palavra em Latim que significa “tinhoso”, um apelido dado pelos pesquisadores que descreveram a espécie, devido à aparência “mal-encarada” do animal.

Figure 5 colourO fóssil de Gondwanasuchus scabrosus é representado por um crânio parcialmente completo, que foi encontrado em 2008 em associação a um grande indivíduo de Baurusuchus salgadoensis, um crocodiliforme também da família dos baurussuquídeos. Gondwanasuchus scabrosus convivia não só com outros baurussuquídeos, mas também com crocodiliformes herbívoros da família dos esfagessaurídeos. A presença de esfagessaurídeos e o fato de os depósitos da Formação Adamantina no município de General Salgado serem basicamente compostos por paleossolos (solos que foram preservados no registro geológico), sugerem que pelo menos algumas partes do habitat de Gondwanasuchus eram compostas por áreas com vegetação  arbustiva e arbórea.

Crânio peculiar:

O crânio de Gondwanasuchus  é altamente comprimido lateralmente, como o de muitos dinossauros carnívoros – bastante diferente dos crocodilos atuais! Suas narinas eram posicionadas lateralmente na região anterior do focinho e o animal possuía grandes órbitas oculares voltadas para frente.

Dentes modificados:

Crânio em vista lateral anterior dorsal e ventralOs dentes posteriores de G. scabrosus são altamente comprimidos e com bordas serrilhadas, como os dentes de alguns dinossauros carnívoros. Outra peculiaridade da dentição desses animais é a presença de profundas estrias que percorrem os dentes da base para o topo, possivelmente garantindo uma maior resistência a quebra durante o processo de caça e alimentação.

Visão especializada:

Os olhos de Gondwanasuchus scabrosus eram  destacadamente voltados para frente, diferentemente do observado na maioria dos outros crocodiliformes, que possuem os olhos orientados lateralmente. Essa característica permitia que esses animais tivessem visão binocular, ou seja, eles poderiam enxergar tridimensionalmente, o que seria muito útil para uma melhor avaliação da distância dos objetos observados e melhor precisão de seus ataques.

Quer mais detalhes? Clique no infográfico para ampliar!

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Clique para ampliar

Interessado em mais informações sobre esse animal?? Escreva pra gente (colecionadoresdeossos@gmail.com)!! Thiago da Silva Marinho, o primeiro autor do artigo, é membro aqui do Colecionadores de Ossos!! 

Thiago da Silva Marinho

Biólogo pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Mestre e Doutor em Geologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), hoje é professor efetivo da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
Desenvolve estudos com ênfase em arcossauros mesozóicos, especialmente crocodyliformes e dinossauros.
Clique aqui para ver o Currículo Lattes.
 
 

MARINHO, T. S. et alGondwanasuchus scabrosus gen. et sp. nov., a new terrestrial predatory crocodyliform (Mesoeucrocodylia: Baurusuchidae) from the Late Cretaceous Bauru Basin of Brazil. Cretaceous Research. 2013 (on-line).

Tiranossauro com penas – e não é 1º de Abril.

Um novo tiranossauróide basal com três dedos nas mãos foi descrito por Xu et al. em uma recente publicação da Nature.

Ilustração de reconstrução do Yutyrannus huali

Proveniente dos depósitos do Cretáceo Inferior (aprox. 125 milhões de anos atrás)  da Formação Yixian,  localizado na região de Liaoning Ocidental, China. O que mais chamou atenção desse novo dinossauro de 8m de comprimento Yutyrannus huali foi o fato de haver sido encontrado com “longas penas filamentosas”. E trazendo “evidência concreta da existência de dinossauros gigantescos com penas”. Isso nos ajuda a compreender melhor como foi o início da evolução das penas.


Até então, em dinossauros não avianos* a evidência fóssil de penas era limitada a animais de porte relativamente pequeno. O maior impacto que essa descoberta está no fato conclusivo de que as penas evoluíram ao longo do Período Cretáceo também em terópodes derivados de grande porte.

Quando fizerem o novo Jurassic Park, vão ter que fazer o Tiranossauro com cabelo de Punk Rock!

Como dizia o Dr. Grant: “Você nunca mais vai ver os dinossauros da mesma maneira novamente”.

*Dinossauros não avianos (English: non-avian dinosaurs): termo empregado para dinossauros não contidos na linhagem das Aves.

Leia mais sobre a nova descoberta aqui e aqui.

Bibliografia:

Xu X, Wang K, Zhang K, Ma Q, Xing L, Sullivan C, Hu D, Chenq S, Wang S (2012) A gigantic feathered dinosaur from the Lower Cretaceous of China. Nature 484, 92–95.

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