Acromegalia


Ressonância de paciente com Acromegalia – from Wikipedia under permission

Eu estava no terceiro ano de residência. Um amigo me convidou para trabalhar em um consultório que atendia bons convênios. Fui, meio a contragosto. Não era muito afeito a atender pacientes ambulatoriais. Gostava da emoção dos pronto-socorros e UTIs. Comecei a atender e gostei. Fazia bom vínculo com os pacientes a ponto da gerente da clínica me elogiar: “Você tem jeito para coisa!” Minha clientela foi crescendo.
Um dia, chegou ao consultório um senhor, por volta de 50 anos, de origem nipônica, com queixas bastante vagas. Falava de dores musculares, dores de cabeça, cansaço. Interrompi seu discurso após tê-lo observado por alguns minutos e desferi um diagnóstico: Acromegalia. A acromegalia é uma doença endocrinológica causada por tumores produtores de hormônio do crescimento (GH), obviamente muito além das necessidades do organismo. O que ocorre com o organismo depende da fase na qual a doença se manifesta. Se antes de fechar as epífises de crescimento nos ossos (antes, portanto, da puberdade) o indivíduo cresce muito e temos o quadro de gigantismo, comum em jogadores de basquete. Se depois de fechar as epífises o indivíduo manifesta a doença, já não vai crescer em altura. Suas extremidades é que vão: orelhas, supercílios, queixo, pés e mãos mostram variados graus de hipertrofia. O rosto se modifica muito lentamente e normalmente as pessoas não se dão conta disso. O diagnóstico de acromegalia normalmente leva em média, 10 anos para ser feito. É uma doença rara. A cada ano, surge um caso para cada 1 milhão de pessoas. Na cidade de São Paulo, deveriam ser feitos mais ou menos 5 novos diagnósticos anualmente. Um deles caiu no meu consultório.
Apesar de sutis, as mudanças em meu paciente eram mais ou menos evidentes. Pedi uma foto antiga. Ele me deu sua identidade e eu disse: “Acho que você tem um pequeno tumor na hipófise, glândula localizada na base do cérebro. Precisamos fazer um exame de imagem”. O paciente quase caiu da cadeira. Entre perplexo e desesperado, fez todos os exames que pedi e a cada resultado, o diagnóstico se confirmava. Ele, incrédulo, descobriu que tinha hipertrofia miocárdica, leve diabetes, alterações na tireóide e pólipos intestinais. Todas alterações que eu previra de forma precisa e algo arrogante.
Indiquei uma cirurgia e um neurocirurgião capaz de realizá-la. Ele optou por outro profissional. Acabou tendo várias complicações e me chamou para acompanhá-lo no hospital. Na avaliação, encontrei falhas no procedimento cirúrgico e chamei a atenção para elas em anotações no prontuário. Arrumei uma bela confusão com a equipe cirúrgica, entretanto quando foram investigar minha hipótese: eu estava certo de novo! Corrigiram o erro e o paciente obteve alta bem.
Algum tempo depois, publiquei o caso em uma revista brasileira. Fui elogiado, bajulado. Minha auto-confiança como diagnosticador aumentou e de emergencista, passei também a atuar no consultório.
Esse caso me trouxe muitos ensinamentos médicos mas nenhum ensinamento ético. Anos mais tarde, a acromegalia iria me ensinar uma lição definitiva.

Discussão - 16 comentários

  1. Thiago disse:

    Fiquei intrigado com qual lição a acrmegalia iria te ensinar anos mais tarde.

  2. Aleph disse:

    Karl,
    devo dizer que fiquei bastante curioso. E isso, como você sabe, é o principal ingrediente para o sucesso de um romancista. Aguardo, não sem ansiedade, o próximo capítulo. Quem não demore!

  3. Karl disse:

    Vindo de vocês, sem dúvida é um grande elogio. Keep in touch.

  4. Kim disse:

    Por acaso o tumor na hipófise seria aquela porção mais ou menos circular, no meio da imagem, atrás do nariz?
    E estou ansioso pela continuação também (e parabéns pela capacidade de diagnóstico, mesmo que tenha sido dada de forma pedante).

  5. Carlos Hotta disse:

    Nossa! É quase um episódio de House na vida real 🙂 espero que vc considere um elogio!

  6. Karl disse:

    Certo, Kim. Esse é um macroadenoma. Ver esse link: http://www.pituitarysociety.org/public/specific/acromegaly/images/pituitarysurgery.gif. Meu paciente tinha um micro, não menos secretor de GH. Obrigado pelos comentários.

  7. maria disse:

    house total (aliás, acabo de ficar sabendo que vai começar uma nova temporada, mal posso esperar). e tou curiosa também. esse dom todo de romancista me deixa até desconfiada! tem alguma ficção nessa história?

  8. Excelente texto.
    Adoro quando os casos e os pacientes nos fazem crescer e aprender.
    Uma das primeiras coisas que aprendi é tomar cuidado com a crítica a colegas. Nunca havia visto em nenhuma profissão tal problema..

  9. Luis Brudna disse:

    Parabéns pelo texto.
    Como os outros, eu também estou curioso.

  10. Karl disse:

    Não, não há nada de ficção aqui. Omiti vários detalhes muitíssimo interessantes, mas que não mudariam a conclusão final. Obrigado pelos comentários, a conclusão sairá em breve.

  11. Igor Santos disse:

    Parece algo saído do livro que ganhamos.
    Curiosíssimo para ler o desfecho estou...

  12. Tamy disse:

    Muito bom... Há mais imagens a respeito? De um paciente normal e outras de pacientes com agromegalia?

  13. Karl disse:

    Olá Tamy. Infelizmente não. Não há autorização para divulgá-las. Essas colocadas no post são de domínio público. Bem-vinda ao Ecce Medicus.

  14. Eduardo Callegari disse:

    tenho 33 anos e aos 26 fui diagnosticado com acromegalia,e os 27 fui submetido a cirurgia ,tudo com sucesso,so q nos ultimos exames constaram que o tulmor voltou,o que quero saber e, por que apareceu de novo?

  15. Karl disse:

    Isso é comum, Eduardo. Muitos tumores recidivam e novas cirurgias são necessárias. Converse com seu médico sobre o ocorrido e ele com certeza esclarecerá melhor suas dúvidas. Obrigado.

  16. flavio morais disse:

    A epidemiologia mostra uma incidência de 3 a 4 casos por milhão. O ensino médico nao deve vir de forma romanceada, ja que os médicos nào sao hérois ou deuses...Realmente a moléstia é rara e de curso indolente, mas com um "baita" macroadenoma desse seria de se esperar alterações fenotípicas importantes já mesmo a inspeção. De forma que qualquer médico, em tese, poderia dar o diagnóstico da doença.O grande desafio é o diagnóstico precoce da enfermidade!Isso sim daria uma luz a esses pacientes. Evitaria complicações cardiometabólicas e principalmente diminuiria as altas taxas de mortalidades a que estao submetidos estes pacientes. Na endocrinologia, a partir da suspeita clínica, passamos para o laboratório. Só entao com o diagnostico laboratorial, passamos para imagenologia. Que bom que aprendeu muito com esta enfermidade!Em medicina estamos sempre aprendendo,se interesse estivermos, mas a nossa luta pela ética deve ser diária, embora nem sempre conseguimos!Sucesso

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