Aliquid Hominis – A Solução

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Aliquid hominis quer dizer “algo do homem que o próprio espírito do homem que nele está, não sabe”. A perguntas feitas no post de mesmo nome, apesar de antiquíssimas e, aparentemente, sem um propósito prático imediato, estão no cerne da controvérsia entre ciência e religião (que por vezes esquenta os bastidores desse portal!), como mostra o raciocínio de Hannah Arendt em seu livro “A Condição Humana“.
Agostinho foi o primeiro a estabelecer uma diferença entre as perguntas “Quem sou?” e “O que sou?”: a primeira é feita pelo homem a si próprio; a segunda só pode ser dirigida a uma divindade, pois equivale a perguntar “Qual a minha natureza/essência/propósito?” que é semelhante a “Por que fui criado?” Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um “quem” como se fosse um “quê”.
“O problema é que as formas de cognição humana aplicáveis às coisas dotadas de qualidades naturais – inclusive nós mesmos, na medida limitada em que somos exemplares da espécie de vida orgânica mais altamente desenvolvida – de nada nos valem quando levantamos a pergunta: e quem somos nós?”
E, arremata:
“É por isso que as tentativas de definir a natureza humana levam quase invariavelmente à construção de alguma deidade, isto é, ao deus dos filósofos que, desde Platão, não passa, em análise mais profunda, de uma espécie de idéia platônica do homem.”
Nosso sistema cognitivo aprendeu a procurar essências em tudo que é natural, em tudo que é passível de ser conhecido. O que Arendt quer dizer, é que esse tipo de pensamento nos ajudou a chegar ao ponto em que estamos hoje, mas tem efeitos colaterais. Pensamos ontologicamente nas doenças (A Diabetes, O Lupus, etc), pensamos ontologicamente nas espécies (o que às vezes, dá a maior confusão), pensamos ontologicamente em partículas subatômicas! Entretanto, quando temos que nos pensar, essa fórmula nos leva invariavelmente a uma divindade. Assim, a questão da natureza do homem é tanto uma questão teológica quanto a questão da natureza de Deus; ambas só podem ser resolvidas dentro da estrutura de uma resposta divinamente revelada.
As condições da vida humana – vida, morte, o planeta –  não são suficientes (apesar de necessárias) para explicar o que somos por não nos condicionar de modo absoluto. As ciências como antropologia, psicologia, biologia não captam a totalidade do humano exatamente por essa razão. Por outro lado, se as tentativas de definir a natureza humana levam facilmente a uma idéia sobre-humana, é de se pensar se o conceito de natureza/essência humana deva ser utilizado. Pode ser um beco sem saída.
É nas raízes do raciocínio “essencialista” que está a causa dos problemas metafísicos encontrados na ciência hoje. Não é possível analisá-los em separado. É preciso reconhecer os limites das formas de pensar e onde eles nos levam. É preciso libertar o pensamento (ou pelo menos tentar). É preciso, portanto e antes de mais nada, matar a Deus.

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Discussão - 7 comentários

  1. flavio disse:

    Para um aprofundamento deste tema acerca do questionamento do termo "natureza", remeto ao trabalho esmiuçado de Clément Rosset em 'A anti-natureza: elementos para uma filosofia trágica', onde o autor analisa certos momentos da história do pensamento ocidental buscando questionar a noção de natureza, privilegiando a idéia de artifício, que por sua vez, afirmaria o acaso. Foi lançado pela editora Espaço & Tempo.

  2. Karl disse:

    Muito bem colocado, Flávio. Obrigado pelo comentário. Seja bem-vindo ao Ecce Medicus.

  3. Agostinho disse:

    A ciência é A forma de aquisição de conhecimento com relação ao mundo natural. Tudo o mais abstraído. Ou, a parte natural abstraída do Todo.
    Se não podemos conhecer a essência, então ela não pode se tornar um objeto da ciência. Aí a conclusão muda de "Temos que matar a Deus," para "Abstraiamos de Deus."
    O que não é feito sem problemas, porque, como você, muitos cientistas lidam com o homem, cuja materialidade dificilmente pode ser abstraída do seu todo.
    É essa cisão que causa a nostalgia do cientista frente à aparente "comodidade", no sentido de tranqüila aceitação, de que se revestem os religiosos "pensados" - não afetos a nenhuma mitologia.
    Ele, o cientista, busca o conhecimento comendo o pão que o diabo amassou, enquanto o outro encontra uma explicação pronta que lhe basta. O objetivo secreto do cientista também é alcançar o todo, é obter todo o conhecimento. Ao perceber que isto é impossível, cada um assume posturas de acordo com a própria personalidade: uns ascendem para a sabedoria, e finalmente compreendem o religioso, outros retornam dramaticamente ao humano e o atacam com despeito.
    Mal sabem eles que esse fenômeno também acomete os que pensam a Essência, que sentem a cisão entre a sua essência humana e a Essência, ou Vida, ou Deus (Isto está na base dos mitos da Queda).
    Não gosto da solução que meu xará deu para a questão.

  4. Rogerio disse:

    Talvez esse dilema seja fruto do modo cartesiano que a ciência encara suas investigações. Imagine que ao invés de matar Deus, sua proposição fosse matar a natureza... Realmente soa muito estranho...
    A ciência tem uma maneira ensimesmada de procurar respostas, dentro de métodos rígidos que buscam essências. Porém, se imaginassemos um mundo, não como o que você descreveu a maneira de Descartes, moldado pelo Positivismo e mais recentemente por Frankfurt, mas como o proposto por Bruno e desenvolvido por Spinoza:
    Não procurar as essências... Apenas enterder as essências da natureza. A ciência faz parte da natureza.
    O que eu quero dizer, simplificando, ao máximo, e correndo o risco de ser simplista demais, é que somos parte da essência e para ter a idéia exata dela precisariamos olha-lá de fora, no entanto somos parte do todo e não podemos sair para ter essa visão... é necessário então abstrair... Porém, segundo Spinoza, não é necessário sair, apenas observar o funcionamento de nós mesmos e de cada peça que nos cerca nos dirá sobre o funcionamento do todo...
    Talvez a abordagem da ciência tenha que ser outra...

  5. Karl disse:

    Obrigado pelos comentários.
    Lembremos, entretanto, que essencialistas fizeram do xará do Agostinho, um santo.
    Rogério: dilema, que dilema?

  6. Rogerio disse:

    Desculpe você não coloca como dilema, mas como uma conclusão peremptória: é preciso matar a Deus, o dilema que eu coloco é como matar a Deus numa concepção panteísta????
    Deste modo precisariamos de outra abordagem científica, concorda??

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