Epidemiologia Cognitiva

Um novo ramo da epidemiologia foi criado. É chamado de Epidemiologia Cognitiva. Consiste em considerar a baixa performance em testes cognitivos de qualquer espécie como fator de risco de mortalidade geral ou fator de risco para o aparecimento de determinadas doenças, por exemplo, doença coronariana. Até então, apenas desfechos “duros” (hard endpoints) tinham sido utilizados para demonstrar as associações entre “inteligência”, saúde e doença. Recentemente, outras associações começaram a aparecer devido à irresistível vontade em se correlacionar a inteligência com fatores evolutivos. Esse post recém-publicado se articula com esse conceito. Como bem lembrou Dra. Sandra do Leia o Rótulo, fatores ambientais podem influenciar o aparecimento de duas ou mais características que seriam co-relacionadas pelo meio e não envolvidas numa relação de causa-efeito.
Não por acaso, epidemiologistas convencionais argumentam exatamente a mesma coisa. Por exemplo, citam as condições sócio-econômicas na infância como responsáveis pela associação entre mortalidade e QI. Se as igualarmos para todos indivíduos estudados, as diferenças desaparecem. Os epidemiologistas cognitivos dizem que não. A correção de tais fatores não responde pelo efeito da performance cognitiva sobre a mortalidade. O assunto é complexo. Se a infância não responde por tudo, existe o argumento de que as condições econômicas dos adultos possa influenciar a mortalidade. Pessoas mais inteligentes trabalham em ambientes mais seguros e mais saudáveis; ou que pessoas mais inteligentes ouvem mais os conselhos médicos e terminam por fumar menos, fazer mais exercícios e assim por diante (coisa que, na minha experiência, está longe de ser verdade!). Além disso, existe um efeito chamado causalidade reversa: algumas doenças somáticas como diabetes e hipertensão, muito comuns em adultos, podem diminuir a função cognitiva e também aumentar a mortalidade.
O fato é que se as relações entre QI e mortalidade são complexas, imagine então a relação entre QI e qualidade do sêmen, preferências eleitorais (também aqui) ou sobrevivência na guerra. Vejo isso mais como um sintoma da epidemiologia do risco. No Risco, como já se disse, a especulação causal é a razão de ser da investigação biomédica e sugere vínculos causais para que as ciências biomédicas experimentais explorem “adequadamente” tais associações. Mas acho também que todo esse assunto merece ainda ser explorado e amadurecido para que possamos entender a relação entre inteligência, seja lá o que isso quer de fato dizer, e sofrimento humano. Esse último, todos sabemos bem o que é.

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Discussão - 5 comentários

  1. Rogerio disse:

    Muito interessante, mas, se me permite uma abordagem mais ampla e muito provavelmente fora do contexto, analisando friamente a medicina baseada em evidências da qual a epidemiologia tem grande peso vai passar por uma profunda crise (se é que já não está passando). Onde quero chegar? Quando analisamos populações chegamos à associações do tipo QI e qualidade do sêmen, inteligência e mortalidade, albumina hiperoncótica e insuficiência renal... Quando analisamos o indivíduo, a pessoa que está sendo assistida, identificamos fatores que foram diluídos nesses estudos populacionais e...
    E claramente identificamos que as conclusões e as evidências de determinado trabalho se aplicam à população, mas não ao indivíduo que temos que tratar... Talvez, a epidemiologia cognitiva se aplique para a população, mas quando individualizamos, conseguimos calaramente perceber que o nosso paciente tem um menor desempenho cognitivo fruto de uma deteriorização neurológica decorrentes de microsinfartos cerebrais ocorridos ao longo de anos causados por condições extremamente comuns na população como tabagismo, dislipidemias, hipertensão, diabete e outros tantos fatores.
    Analisando por esse espectro voltamos ao princípio da medicina... é preciso conhecer o indivíduo, é preciso conhecer o paciente, ter uma anamnese adequada,um exame físico pormenorizado e então tentar enquadrar um estudo no paciente...
    Hoje tentamos enquadrar o paciente em um estudo e disso saem aberrações, quam sabe aumentando o sofrimento humano.
    Perdoe-me o devaneio e muito provavelmente a fuga da idéa do Post.
    Abraço
    Rogério

  2. João Carlos disse:

    No quesito "QI", eu acompanho a dúvida de Isaac Asimov: os parâmetros para aferição de QI são mesmo válidos, ou são "Ídolos de Bacon"?
    E existe todo um curto-circuito por trás dos "Quocientes de Informação": pessoas mais pobres têm menos acesso à informação; pessoas menos informadas têm menor probabilidade de ascensão social; da capo...
    Mas é possível igualmente argumentar que as pessoas mais pobres têm um acesso menor ao aconselhamento médico preventivo...

  3. Karl disse:

    Caríssimos, obrigado pelos comentários. Ninguém deve pedir desculpas por comentar posts nesse blog, Rogério. Eu é que tenho que agradecer a ressonância de minhas idéias. E se por ventura, elas despertarem outras idéias dormentes na cabeça das pessoas, então, esse blog cumpriu a função que designei a ele.
    As críticas a esse tipo de "conhecimento" que vem sendo gerado por correntes da Psicologia, com todos os defeitos que uma definição de inteligência possa ter, são bastante fortes, mas por mais incrível que possa parecer, isso é levado em consideração em dinâmicas de grupo e entrevistas para se conseguir um emprego na iniciativa privada.

  4. João Carlos disse:

    Me permita mais uma consideração sobre o assunto, Karl.
    As pesquisas que originaram este conceito de "Epidemiologia Cognitiva" provavelmente (uma ova!... com certeza!) se originaram nos EUA. Existe todo um arcabouço social por trás dos problemas e atribuir unicamente ao QI ("dando de barato" que a metodologia seja aceitável — mal ou bem, como você observa, ela já é empregada e com algum sucesso) o "fator de risco" é confundir os sintomas com a causa da doença.
    No caso específico das doenças coronarianas (e, por falar nisso, de diabete e obesidade "precoce"), há uma enorme "culpa" das fast-foods às quais as classes mais baixas recorrem freqüentemente como fonte quase exclusiva de nutrição.
    O "baixo QI" — nesse caso — é mais um sintoma do mal: "marginalidade social". Por isso eu aceito os resultados das pesquisas cum grano salis.

  5. Karl disse:

    Na verdade, João, mais que um arcabouço social, existe uma base filosófica pragmática fortíssima por trás de toda ciência produzida nos EUA, em especial das chamadas ciências humanas ou do espírito. É um tipo de abordagem que já foi bastante imitada por todos anteriormente e que, em tempos de antiamericanismo, tem sido bastante criticada (será que a obamamania vai reverter isso?). Em que pese o péssimo gosto alimentar dos americanos (e de seus correspondentes no velho continente), tens razão quanto à interferência das condições socioeconômicas em todo processo. Mesma alegação da Dra. Sandra acima.

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