Sobre Metástases

A última edição do New England Journal of Medicine tem um artigo sobre as bases moleculares das metástases. Há tempos queria ter escrito sobre elas. Sempre achei algo de bastante mórbido na disseminação do câncer. Sim, o leitor vai dizer, mas em qual doença não há? Eu concordo, mas insisto que nas metástases, mais que em outras doenças, há alguns requintes de crueldade contra a humanidade, com paralelo apenas em filmes ou romances de ficção. Filmes como Alien ou Resident Evil, têm seus conceitos de terror tirados de sistemas vivos como hospedeiros de outros sistemas vivos. Em determinado momento, o sistema vivo que está hospedado toma conta de tudo e passa a dominar o processo, o que invariavelmente costuma levar o hospedeiro à morte. Com o câncer metastático, parece ocorrer algo parecido. Um mérito desses filmes está em expor o sentimento aterrorizante de passar por uma experiência como essa. De fato, apesar de seguir alguns padrões de disseminação (ver figura abaixo), uma célula cancerosa pode colonizar virtualmente qualquer outra do organismo.

Um professor de patologia ao analisar um pulmão com metástases de um câncer de tecido muscular disse, certa vez, que o pulmão resolveu adotar um novo projeto: queria se transformar em um músculo! Mesmo dita em tom jocoso, essa frase ficou na minha cabeça. Trouxe para mim a idéia de que as células de um organismo obedecem de fato a algum comando central, um governo, que as mantem trabalhando em prol de um bem comum que é o organismo completo. Quando alguma célula resolve, egoisticamente, trabalhar independentemente isso é um câncer. Uma vez instalado, sempre há a possibilidade de que ele se dissemine, “colonizando” outros orgãos. É esse o termo utilizado. O câncer, a exemplo dos portugueses no séc. XV, partem para outras paragens distantes a fim de dominar e impor sua maneira de “ver o mundo”. Mesmo sob controle com quimioterapias, radioterapias e cirurgias, o paciente portador de um câncer deve saber que abriga células revolucionárias em seu organismo. Essas células, em situações de guerra, podem adotar táticas de guerrilha, se escondendo e fugindo para outros locais, para manifestar-se tempos mais tarde. É estranho pensar que um organismo possa ser portador de células que não partilham de seu projeto. Mas se pensarmos bem, a pergunta seria por que as outras obedecem sem reclamar? Qual o poder que as mantém unidas? Esse poder emana do conjunto que é o organismo?

Mas, por que o organismo? Sempre acabo voltando a essa pergunta. As respostas alternativas poderiam ser a espécie ou o gene. Essa é a velha discussão sobre a hierarquia da seleção natural. Onde a seleção natural se dá de fato. No nível da espécie (Gould), no organismo (Darwin) ou no gene (Dawkins). Esse presumível “comando” seria para preservar genes, o organismo ou a espécie?

E sempre que penso nisso, cada vez mais me convenço de que a doença faz parte da vida. Só pode ter câncer quem é multicelular. Dentre esses, só quem tem disponível um sistema de regeneração celular e cicatrização altamente desenvolvido. Sim, genes cancerígenos teriam a função de estimular o crescimento de células rapidamente – e nesse caso quanto mais rápido, melhor – com intuito de reparar um dano. Essa “arma” quando utilizada com outros objetivos, pode levar o organismo à própria morte. Não pudéssemos nós usufruirmos do fato de sermos um amontoado altamente organizado de células capazes de amar, sentir prazer, compreender nosso entorno e ousar sonhar, não teríamos cânceres de nenhuma espécie. Somos beneficiários e vítimas de uma complexidade. Cada um deve saber, portanto, da “dor e da delícia de ser o que é”.

Discussão - 1 comentário

  1. Karl disse:

    De um homem com câncer de esôfago. Do Histórias da Medicina:
    "Cancer cells are those which have forgotten how to die" - nurse, Royal Marsden hospital
    They have forgotten how to die
    And so extend their killing life.
    I and my tumour dearly fight.
    Let's hope a double death is out.
    I need to see my tumour dead
    A tumour which forgets to die
    But plans to murder me instead.
    But I remember how to die
    Though all my witnesses are dead.
    But I remember what they said
    Of tumours which would render them
    As blind and dumb as they had been
    Before the birth of that disease
    Which brought the tumour into play.
    The black cells will dry up and die
    Or sing with joy and have their way.
    They breed so quietly night and day,
    You never know, they never say.
    © Harold Pinter

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