Sobre Elefantes, Cegos, Paralelas e Pacientes
Conta a lenda que um grupo de cegos ouviu, certa vez, um grande alvoroço. Ao perguntar o porquê da balbúrdia, um passante explicou que um circo chegara à cidade trazendo um elefante. Como nunca tinham tido contato com tal animal resolveram conhecê-lo. Ao chegar ao local onde estava o bicho, começaram a apalpá-lo. Um disse “Puxa, o elefante é fino e comprido, parece uma cobra!” ao apalpar o rabo. Outro, ao examinar a pata, disse “Não, o elefante parece uma árvore de tronco calibroso!”. Um terceiro, ao examinar a orelha, exclama “Vocês estão loucos! O elefante é plano e chato como uma arraia!”. O último disse “Vocês estão cegos? Ele é uma enorme pedra que se mexe!”. Cada um analisando uma parte do pobre elefante e tirando suas conclusões baseadas em dados incompletos porém, reais. Qualquer cego que fosse “repetir o experimento de seu colega” o faria exatamente como o primeiro e chegaria às mesmas conclusões. Não há erro individual. Há perda da noção do todo.
Uma vez li num livro de física, uma explicação sobre a gravidade que serve como complemento à parábola do elefante. Imagine que somos seres bidimensionais (eu sei, é coisa de físico mesmo!) Isso significa que percebemos apenas duas dimensões, por exemplo latitude e longitude em um plano. Bem, se traçarmos linhas paralelas nesse plano, elas nunca se encontrariam, como é próprio das paralelas. Mas, se o plano for uma esfera, os seres bidimensionais nada perceberiam devido a sua limitação espacial e continuariam a acreditar viverem em um plano. Linhas paralelas traçadas perpendicularmente ao equador dessa esfera teriam, ao caminhar para latitudes mais altas, uma “estranha tendência” de aproximarem-se. Um físico bidimensional diria que as linhas se “atraem” nos pólos e descreveria uma “lei” com coeficientes de “atração” proporcionais à latitude, de modo a podermos prever o comportamento de corpos que caminham em direção aos pólos.
É possível errar brilhantemente. Nas duas estórias, erramos com muita propriedade, diria até que errou-se cientificamente. Há quem discuta se isso é realmente um erro. Tudo isso é aberto à discussão. O problema é quando tenho que tratar de um paciente que tem uma doença-elefante baseado na melhor evidência possível, sendo cego e bidimensional, como sou…
Discussão - 12 comentários
"Errar brilhantemente" é um conceito fabuloso. É a versão otimista do "Not even wrong"!
Explique, por favor, Mori-san
Como os cegos, nós cientistas fazemos o que podemos no momento. Se descobrimos novas evidências, mudamos nossas conclusões.
O curioso é que o físico da esfera não estará "errado": previsões feitas com base em sua teoria darão conta dos fatos, afinal. Se ele fosse um médico, talvez conseguisse curar seus pacientes.
Aqui, um link que me parece especialmente interessante, dentro do tema:
http://en.wikipedia.org/wiki/The_Relativity_of_Wrong
Aí é que está. Fazer previsões dentro de uma incompletude é um chute chique que médicos não podem se dar ao luxo de arriscar. Por isso, um médico, diferentemente de um físico, acreditaria desacreditando e, na dúvida, atiraria para todos os lados que seu julgamento clínico (um tipo de instinto temperado com experiência e inteligência prática) indicasse.
É por essa razão também, que não acredito na falácia de que os médicos cientistas são melhores que os médicos praticantes, mas essa é outra história.
O físico 2D me lembrou o livro Planolândia.
O personagem vive em um mundo 2D, eventualmente viajando por mundos de 1D e 3D. Leitura divertida, embora não seja exatamente sobre o assunto abordado no texto.
Caro Karl,
post brilhante. O problema é a premissa, já disseram os mais rudimentares conceitos de lógica clássica.
Abraço!
Adorei o post, show de bola!
Isso dá argumento pra galera new age no sentido de "existencia de um plano q nao podemos enxergar" (mesmo que não tenha nada a ver com o tema do post, eu sei). O engraçado é q eles criticam a ciÊncia e tentam justamente ENXERGAR o outro plano também!
Desculpe fugir do tema. Ótimo post.
A parábola é de origem indiana, e foi traduzida em versos pelo escritor John Godfrey Saxe (1816-1887):
The Blind Men and the Elephant
It was six men of Indostan
To learning much inclined,
Who went to see the Elephant
(Though all of them were blind),
That each by observation
Might satisfy his mind.
The First approach’d the Elephant,
And happening to fall
Against his broad and sturdy side,
At once began to bawl:
“God bless me! but the Elephant
Is very like a wall!”
The Second, feeling of the tusk,
Cried, -”Ho! what have we here
So very round and smooth and sharp?
To me ‘tis mighty clear
This wonder of an Elephant
Is very like a spear!”
The Third approached the animal,
And happening to take
The squirming trunk within his hands,
Thus boldly up and spake:
“I see,” quoth he, “the Elephant
Is very like a snake!”
The Fourth reached out his eager hand,
And felt about the knee.
“What most this wondrous beast is like
Is mighty plain,” quoth he,
“Tis clear enough the Elephant
Is very like a tree!”
The Fifth, who chanced to touch the ear,
Said: “E’en the blindest man
Can tell what this resembles most;
Deny the fact who can,
This marvel of an Elephant
Is very like a fan!”
The Sixth no sooner had begun
About the beast to grope,
Then, seizing on the swinging tail
That fell within his scope,
“I see,” quoth he, “the Elephant
Is very like a rope!”
And so these men of Indostan
Disputed loud and long,
Each in his own opinion
Exceeding stiff and strong,
Though each was partly in the right,
And all were in the wrong!
So oft in theologic wars,
The disputants, I ween,
Rail on in utter ignorance
Of what each other mean,
And prate about an Elephant
Not one of them has seen
Tradução
Os cegos e o elefante
Eram seis homens do Industão
Que gostavam muito de aprender
E que foram um elefante ver
(Apesar de serem todos cegos)
Cada um fez sua observação
Na tentativa de se satisfazer
O primeiro se aproximou do elefante
E quase a cair
Contra o lado firme do gigante
Logo começou a bramir
“Deus me ajude, mas o elefante
É muito parecido com uma parede!”
O segundo, sentindo a presa,
Gritou, “Oh, o que temos aqui
Tão redondo liso e afiado?
Para mim está claro
Que a maravilha do elefante
Se parece com uma lança!”
O terceiro se aproximou do animal,
E aconteceu de tocar
Na tromba com as suas mãos,
E assim sem medo falou
“Agora eu vejo”, ele disse, “o elefante
Se parece com uma serpente!”
O quarto alcançou uma pata
E a sentiu próximo do joelho,
“Que maravilhosa besta é esta
É bem evidente” ele disse;
“Está claro que o elefante
Se parece muito com uma árvore!”
O quinto, que tocou a orelha
Disse “Até o mais cego
Pode dizer que ele se parece mais,
Negue quem puder,
O maravilhoso elefante
É muito parecido com um abanador!”
O sexto logo começou
A tentar agarrar a fera,
quando o rabo se movimentou
E o sentimento que ele sentiu:
“Eu vejo”, ele disse, “o elefante
Se parece com uma corda!”
E estes homens do Industão,
Discutiram alto e por muito tempo,
Cada um a sua própria opinião
Mantendo uma firme posição,
E apesar de cada um estar certo em parte
Todos estavam errados!
Muitas vezes em guerras teológicas,
Os que as disputam, penso eu,
Criticam a ignorância
que dos outros ouviu
e afirmou sobre um elefante
Que nenhum deles jamais viu
In: The poems of John Godfrey Saxe: Complete in one volume. Boston: Ticknor & Fields, 1868. p. 259-260.
A íntegra, disponível no Google Books: http://migre.me/aSbwT
Bom dia Doutor!
Detalhe, no caso que te contei, não se tratava de SUS não!
Os 10 profissionais procurados eram particulares, estando, pelo menos a metade, entre os mais renomados da capital.
O problema realmente foi olharem a questão em partes e não conseguiem visualizar o todo.
Boa sorte com as doenças-elefante! ; )
C.
Hehe. Obrigado.