A Linha entre Hipocondria e Autonegligência
O título acima foi retirado de um instigante post do Cretinas.
A medicina grega era uma medicina de equilíbrio. Para os gregos, as doenças eram causadas por desequilíbrios entre os humores internos. O médico deveria tratar seu paciente restaurando esse equilíbrio. Grande parte, se não todo o tratamento, deveria ser executado pelo próprio paciente, até porque não existiam muitas medicações disponíveis na época. O médico indicava o caminho a ser trilhado e – era dada grande importância para isso – convencia o paciente à trilhá-lo. Para tal, o médico deveria contar com a confiança de seu paciente. A responsabilidade do paciente sobre sua própria saúde, o cuidado-de-si, acabou ficando um tanto para trás. (Lia outro dia, um fantástico livro do qual ainda vou falar bastante, onde se discutia o papel do médico na conduta moral de seu paciente: seria o médico um aconselhador crônico do paciente do tipo “não fume”, “não beba”, “faça sexo seguro”; ou o médico seria alguém para nos tirar de enrascadas ético-morais com repercussões orgânicas nas quais nos metemos irremediavelmente pelo puro fato de vivermos?)
Deixando essas divagações para uma outra oportunidade, a questão do Cretinas é: como devo regular meu cuidado-de-si? Se muito sensível, me transformo em hipocondríaco. Se pouco sensível, serei negligente comigo, descuidado, ou no jargão médico “tigrão”!
Hipocondríaco é o indivíduo obsessivo por sua saúde. Isso o faz procurar por possíveis doenças a todo momento. Recentemente, foi criado o termo cibercondria para dar conta dos hipocondríacos obsessivos por procurar informações médicas na internet. Baseado nesse tipo de comportamento de massa, o Google criou um sítio com as tendências das anuais epidemias de gripe ao redor do mundo e obteve resultados impressionantes. Isso indica que, não só no Brasil, mas em todos os países, é um comportamento comum do paciente procurar informações sobre suas enfermidades, não importando se essa enfermidade é uma doença rara ou uma “simples” gripe. Sendo assim, quer os médicos gostem ou não, essa é uma realidade da qual não se pode mais fugir, portanto, é melhor estar preparado.
Para mim, a linha entre a hipocondria e a autonegligência é, na verdade, um espaço. Um espaço no qual o paciente deveria sentir um desconforto, mas não o desconforto patológico do hipocondríaco, nem o falso bem-estar do negligente tampouco. Deveria sentir um desconforto que o faça procurar ajuda, hipótese imediatamente rechaçada pelo Cretinas, a meu ver apropriadamente, em função das condições atuais de funcionamento do SUS e também da Saúde Complementar. Isso me faz cavar mais fundo. E aqui começam os problemas. A série “Sala de Espera” me trouxe um conhecimento que talvez eu tivesse intuitivamente, mas que se confirma no pequeno “n” de leitores que frequenta essa minúscula ilha no oceano virtual. As pessoas têm sim, um médico prototípico. Têm um tipo de atendimento em mente e ao contrário do que pensava (além de corroborar o parágrafo acima) têm cada vez menos preconceito de procurar por médicos na internet, se bem que o velho boca-a-boca ainda é muito importante. Isso de certa forma, demonstra que o cuidado-de-si é, em geral, calibrado por uma consciência sobre nossa própria existência e funcionamento. Exatamente porque essa consciência de si passa pela imagem que cada um tem de si próprio é que temos uma variação enorme de limiares e formas de procurar ajuda. A imagem que cada um tem de si (e a preocupação com ela) define os padrões de saúde que cada um quer ter. Tenho dito que um dos maiores problemas da medicina contemporânea é lidar com essa imagem que os pacientes constroem deles mesmos, pois ela sofreu enormes mudanças no último século. A medicina se atrasa em compreender a dissolução do sujeito processada na pós-modernidade, para usar de um exemplo bem batido; outro exemplo é dado pelas dificuldades enormes em separar tecnologia médica de avanço médico. Medicina e médico falham em preencher o espaço entre a hipocondria e a negligência.
Juntando tudo, esse espaço só pode ser preenchido por um médico que tenha a confiança do paciente. Um médico que não conheça tudo, mas saiba como buscar esse conhecimento. Que assuma o paciente como ser sofrente e se empenhe em resolver seus problemas. Muitos dirão “ah, isso é um clínico geral bom e custa muito caro.” Eu concordo (hehe), mas digo que muitos médicos de outras especialidades têm perfil assim. Diria também que alguns convênios, a exemplo do que vem ocorrendo nos EUA, vem estimulando vínculos mais intensos com pacientes problemáticos (telefone, por exemplo) sejam eles hipocondríacos ou não, e conseguindo obter expressivas reduções nos seus custos com isso. É bom para todos. Falta o Estado, do alto de sua insensibilidade histórica, aplicar esse conhecimento em larga escala, pois experiências não faltam, como o Programa de Saúde da Família, programas de atendimento domiciliar a pacientes fora de possibilidades terapêuticas (o NADI no HCFMUSP e no HU-USP), e tantos outros dos quais não consigo lembrar o nome agora (meus leitores me farão justiça). No mais, não posso deixar de concluir que, ao menos ao que parece, estimular vínculos interpessoais e tratamento inter-humano, além de tudo, economiza grana…
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Discussão - 8 comentários
Ótimo texto, principalmente por ele ser uma "resposta" ao post do Ideias Cretinas. Acompanho o blog de vocês através do feed do science blogs e vocês todos são muito bons.
Até mais. 🙂
Eu enfrentei um dilema parecido ontem: do nada comecei a ficar com febre, coriza e dificuldades de respirar. A febre e coriza são normais mas não conseguir puxar ar para os pulmões era inédito!
Fica a dúvida: é grave ou não?
Graças à Paula, que eprcebeu que eu não conseguia conversar sem ficar ofegante, fomos ao PS. Felizmente não havia nada nos pulmões mas fui diagnosticado com sinusite. Talvez uma garganta levemente inflamada para complementar a sensação de falta de ar...
Sinto-me muito em casa quando leio este texto postado pelo Karl...e qual médico consciente não se sentiria? Tanto acolhido pela situação do paciente moderno neoansioso (utente e, como tal, exigente), como atingido por um quê de culpa: o que estamos fazendo com eles? Um membro inferior que pára de funcionar está fatalmente destinado a quantos exames complementares e, ainda, a quantos colegas complementares? E o exame clínico, quanto pode fazer pela saúde e pelo bolso do paciente? Então, buscar um bom clínico geral é caro ou tem uma boa relação custo-benefício? Estamos vivendo o auge de uma era em que a história da medicina nunca foi tão distinta: pacientes-clientes, saúde-produto, médicos superespecializados e tão "baratos/brancos/comuns como o sal". E a relação médico-paciente negligenciada, a visão humana e holística terceirizada (com sorte) e o exame clínico, nosso alicerce técnico e moral, esquecido. É de admirar que nos falte confiança? A informação está aqui, a nossa frente, na internet, tão qualificada quanto a nossa sorte e critérios estabelecerem - assim é a nova forma, googleliana, de buscar um médico. Quase tão bom quanto comprar pela internet. Livra-se quase completamente do fator "falha humana", o que é bom para os que preferem o HAL-9000 ao homem, o conceito de automação da Airbus ao da Boieng, o exame de imagem ("complementar") ao exame clínico cuidadoso. Os gregos, Karl, talvez não tivessem tão poucos medicamentos assim, mas com certeza tinham bem menos indústrias farmacológicas despreocupadas com a importância do nosso ato de pensar. E acho que, ainda, nossa medicina busca o equilíbrio - não entre os "humores", mas entre as ferramentas que a tecnologia nos oferece e a arte que devemos nos ocupar em lapidar. Também penso que essa ocupação é tamanha e somente ela, gradualmente e com muita paciência, pode restaurar o cuidar-de-si, somente possível quando espelhada no bom exemplo.
Post formidável, Karl.
Vc indicou um ponto nevrálgico na relação médico-paciente, que entendo ser a confiança. E as novas experiências que têm surgido são mesmo bem promissoras, em especial o Programa Saúde da Família, cujo princípio operacional estabelece um vínculo das equipes de saúde com o paciente/família, resgatando a confiança na relação, perdida no modelo tradicional de serviços de saúde.
O PSF já está implantado em larga escala (é um programa federal), mas seu usufruto se concentra na população de baixa renda em geral. Já a população de maior renda, ainda inserida no modelo tradicional de serviços de saúde, ainda patina, às voltas com as questões abordadas nessas salas de esperas do Ecce Medicus.
Como tantos outros, eu me enquadro entre aqueles que vão a um médico esperando a remissão dos pecados e não me tornar virtuoso... Mas, por minha experiência quando oficial da ativa na Marinha, posso afirmar que o controle preventivo das condições de saúde (entenda-se: exames periódicos obrigatórios) acaba por se tornar mais econômico do que tratar das pessoas só quando elas ficam doentes.
É algo que exige um investimento inicial muito pesado e, por isso, costuma afastar os políticos – os resultados só apareceriam bem depois de cumpridos os mandatos. Eu só me pergunto se teríamos médicos, bioquímicos, enfermeiros e pessoal técnico para operar em escala nacional um esquema desses.
Quero agradecer as palavras gentis. Ao Renan, companheiro da labuta, obrigado.
Hotta, você sobreviverá.
Sibele, obrigado pelas correções.
João, até os militares descobriram o caminho! : ) A resposta à sua pergunta é um sonoro SIM.
Guido, vamos trocar consultas? Eu te faço um checkup e vc me ensina a mexer nesse troço que uso para escrever o blog?
Karl, talvez seja por este motivo que o velho ditado diz que de médico e de louco todo mundo tem um pouco... o equilíbrio entre a hipocondria e a "tigrice" nem sempre é tão fácil, mesmo entre nós. 🙂
Sinceramente não culpo os pacientes de procurarem informações na internet. Acho que seja mesmo uma coisa normal. Se não fossemos nós os médicos, você não faria o mesmo? Qualquer pessoa com um mínimo de curiosidade e disponibilidade instrumental vai atrás daquilo que lhe interessa. Para mim é sinal de inteligência e comprometimento. Acho sim que falta a famosa empatia, entrar na pele do seu paciente, sentir-se como ele. Falta tempo para conversa, para troca de sinais que criem a tal confiança. Torna-se difícil confiar em um sujeito que mal se apresenta impondo a você algo que diz respeito a sua sobrevida e sua qualidade de vida. Tive uma experiência em família bem recente onde, confesso, me decepcionei muito com o modo de por-se de certos colegas. Como médica entendo todas as dificuldades e limitações da nossa profissão, mas não consigo enxergar uma justificativa plausível para alguns comportamentos. Em especial para a desvalorização da relação médico-paciente-família que deveria ser a base do relacionamento terapêutico.
Talvez seja o reflexo da sociedade como um todo, cada vez mais individualista e egocêntrica, menos interessada no outro, nos seus sentimentos e necessidades,...
Mtoo bom o post...
Como estudante de medicina em formação, acredito firmemente que a relação médico-paciente atual está muito fragmentada, tendo que o paciente buscar conforto nas mínimas palavras ditas por cada um de seus especialistas...
Quando você citou o ESF (antigo PSF)... programa maravilhoso de atendimento humanitário e integral ao indivíduo e família (em teoria ao menos)... me vi na necessidade de fazer um desabafo aqui: Muitos são os acadêmicos de medicina e médicos que se encantam com o ESF, mas que devido a falta de incentivos (plano de carreira, aposentadoria...) desistem e vão buscar na especialidade conforto...
Parabéns pelo Blog!