Judicialização do Direito à Saúde no Brasil

O Brasil é um dos 115 países do mundo no qual o direito à saúde está garantido pela Carta Magna. Isso é bom. Já não tenho tanta certeza quanto à validade das interpretações que estão sendo dadas sobre esse direito constitucional. Foi publicado no Lancet, um comentário de um grupo gaúcho sobre os problemas que o estado vem enfrentando em relação ao número crescente de processos com objetivo de custeio de tratamento pelo erário público estadual.

Se considerarmos que uma parte da saúde, talvez não a mais importante, observariam uns, seja a administração de medicamentos e que há, entre o arsenal terapêutico disponível, alguns medicamentos de alto custo e ainda o fato de que o governo garante o acesso à saúde na constituição, não é muito difícil pensar em contratar um advogado para redigir um recurso e que um juiz sensibilizado dê parecer favorável a que o Estado custeie a medicação ao paciente que dela necessite. Dentro de um estado democrático de direito (como insistem em afirmar velhas vozes ditatoriais!) esse é um procedimento regimental e aceitável. É Direito. Entretanto, os autores do artigo entrevistaram alguns personagens dessa história:

“Our recent interviews indicate conflicting views. Many judges and public defenders working on right-to-health cases feel they are responding to state failures to provide needed drugs, and some judges admit a lack of expertise to make informed decisions consistently. Administrators contend that the judiciary is overstepping its role, although some acknowledge that, because of these legal cases, distribution of several drugs has risen. Patients’ associations have a highly contested role. Officials claim that at least some organisations are funded by drug companies eager to sell to the government high-cost drugs.”

Como é complicado o mundo do Direito! O artigo tem como referência uma exposição de um dos autores, Paulo Dornelles Picon da Comissão de Assistência Farmacêutica do Ministério da Saúde, disponível na rede. Os números são impressionantes. O número de ações judiciais por medicamentos parece seguir uma exponencial nos últimos anos. O pior é que alguns desses medicamentos conseguidos por meios judiciais não têm sequer registro na ANVISA, enquanto outros têm sua efdicácia e/ou segurança ainda não justificados por ensaios clínicos bem conduzidos ou reproduzidos em outros contextos.

Um exemplo frequentemente citado é o dos inibidores da COX2. Essa classe de medicamentos foi envolvida em polêmica desde o primeiro estudo que permitiu seu uso clínico. Em um determinado momento em 2002, segundo Picon, havia nos tribunais gaúchos mais de 28 kg da mesma carta solicitando o rofecoxibe para tratamento (sintomático) da artrite reumatóide. No mesmo ano, o PDCT – Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, documento do Ministério da Saúde que regulamenta o uso de medicamentos excepcionais apontava na página 87 que o uso continuado desses medicamentos tinha uma associação ainda não bem elucidada com o infarto do miocárdio, um dos motivos de sua retirada do mercado anos mais tarde.

O artigo conclui que a judicialização do direito a saúde é uma etapa na história do acesso à saúde no Brasil. Isso envolve direitos humanos, políticas de saúde e práticas de mercado, por isso é necessário aumentar a transparência dos processos que envolvem a liberação de medicações de alto custo, porque de fato, existem pessoas que se beneficiam dessa política. Porém, em decorrência do montante de gastos, tais políticas podem prejudicar a aplicação de recursos em medicina preventiva bem como sua racionalização, caso sejam mal empregados.

Tenho pacientes com processos para receber medicações de alto custo. Alguns necessitam verdadeiramente das drogas, outros nem tanto. Há um caso em que um quimioterápico de última geração e de prescrição off-label, baseada em um relato de uma série pequena de pacientes, foi estocado para uso eventual, caso o oncologista resolvesse prescrever. Não posso julgar os direitos de cada cidadão, minha função não é essa. Por trabalhar em um serviço estadual e também na iniciativa privada, reconheço as falhas e os excessos na estrutura de ambos os lados. A questão é: a corda sempre rompe do lado mais fraco, se é que me faço entender.

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