Os 10 Anos da Lei “Mário Covas”

Deixei passar a data inexplicavelmente. Faço então, um post tardio desse que foi um dos maiores avanços médicos do Brasil e pouca gente tem conhecimento.

File:Mário Covas.jpgEm 6 de março de 2001, Mário Covas falecia em um quarto do Instituto do Coração. Recusara-se a ir para a UTI. Tinha o diagnóstico de adenocarcinoma de bexiga, doença altamente relacionada ao hábito do tabagismo, na forma avançada e considerado fora de possibilidades terapêuticas, optou por ficar com os familiares. Essa decisão não é nada fácil. Mas, apesar de estar em uma condição clínica bastante deteriorada e sob efeitos de medicações para dor (morfina e derivados) que alteram a capacidade de raciocinar, Covas, como grande político que era, havia tomado suas precauções.

Alguns anos antes, mais precisamente em 17 de Março de 1999, já sabedor de seu diagnóstico e também do prognóstico ominoso, Covas sancionou a Lei dos Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde do Estado de São Paulo (n. 10.241/99), conhecida hoje como Lei Mário Covas, que assegura em seu art. 2º: “são direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo: ­ recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”.

Muito se discutiu sobre cuidados paliativos desde então. Termos como distanásia e ortotanásia fazem parte do vocabulário médico e leigo agora. Uma alternativa aos extremos da assistência médica se impôs: nem a obstinação terapêutica, nem a eutanásia. A opção depende da capacidade de abstrair-se de religiosismos mal ajambrados, de transcender legislações empoeiradas e de desafiar tecnologias ultra-hipermodernas, em detrimento à humanidade que, afinal, é ou não é o que nos caracteriza?

Se houve alguém nesse país que legislou em causa própria, esse foi Mário Covas. E ao fazê-lo, pode beneficiar milhares de pessoas tão dignas quanto ele cuja opção de morrer sem um tubo na goela cercado de máquinas frias foi feita (e muitas vezes registrada em cartório!), mas que algum parente fariseu auto-referente solicitou à equipe médica que “fizesse tudo o que fosse preciso” (desde que com o dinheiro do convênio) para mantê-las vivas a todo e qualquer custo, seja lá o que se entenda por “vivo” nesse contexto, não havendo possibilidade de que os últimos desejos de extinguir-se em paz fossem assim, realizados. O Conselho Federal de Medicina aprovou em 2006 a resolução CFM nº 1.805/06 que autorizava a ortotanásia mas que infelizmente foi caçada cassada por liminar federal e, pelo que sei, permanece no limbo jurídico desse país.

São 10 anos de uma lei paulista que vale a dignidade de vidas humanas. Dá para saber de quanto estamos falando?

Discussão - 14 comentários

  1. Aleph disse:

    Caro Karl,
    acho que a melhor coisa que já fizeram nesse país foi cassar a tal resolução do CFM. Bendita liminar federal! A lei é sempre interpretativa . Homens interpretam as leis de acordo com o seu entendimento e, óbvio, de acordo com a sua conveniência. Ortotanásia na mão de um médico criterioso como você, por exemplo, não teria maiores problemas, tenho certeza. "But men are men; sometimes the best forget", já disse Shakespeare pela boca de Iago. "Orto" não seria sempre tão "orto"...

  2. Sibele disse:

    Nesses tempos em que grassam a falta de princípios éticos e onde vemos a precarização cada vez mais grave na formação de médicos, não posso deixar de concordar com o Aleph.
    É um dilema, bem sei. Sob esse argumento, então a Lei Covas e a resolução caSSada do CFM não teriam como ser referendadas, e muito menos projetos de leis como o aborto e outros mais... não haveria como avançar juridicamente, então?

  3. maria disse:

    fiquei aqui pensando no que mentes tortas poderiam fazer com a ortotanásia. algo como negar socorro médico em casos tratáveis?
    enquanto tempo, quem tem dinheiro e lucidez vai morrer na suíça, como tenho visto no jornal.

  4. Karl disse:

    Talvez não me tenha feito entender. Pergunta simples: se uma pessoa com uma doença incurável recusa-se a ir para UTI na plenitude de suas "faculdades mentais", quando ela complicar, esse desejo deve ser respeitado ou não?

  5. maria disse:

    imagino um cenário de terror total. uma pessoa perde a capacidade de se comunicar e de repente o que ela determinou sobre a própria vida passa a ser ignorado. ela passa a ser tratada como um boneco de vudu, prisioneira daqueles que têm medo de perdê-la - por amor ou por orgulho profissional.
    eu posso fazer alguma coisa para evitar ser mantida infinitamente em vida artificial caso perca faculdades cerebrais importantes?

  6. Sibele disse:

    Realmente, vc não se fez entender, Karl.
    Então, resposta simples - sem tergiversações rocambolescas do tipo duplo twist carpado: - Claro que este desejo deve ser respeitado!

  7. Karl disse:

    Putz! Vou tentar melhorar. ; )
    A questão é: Como fazer para ter esse desejo respeitado? Em primeiro lugar é preciso uma família esclarecida e orientada. Em segundo, quase empatados, um médico esclarecido e orientado. Sem a intermediação de um médico que conheça a família e os anseios do paciente ficará muito difícil manter o desejo de não ir para uma unidade de terapia intensiva desmanchar-se em drogas, diálises, tubos e picadas sem-fim. Distanásia. Ortotanásia é o inverso.

  8. Sibele disse:

    Realmente, é uma questão e tanto!
    Mário Covas, que foi Mário Covas, fez-se respeitar em seu desejo final. E nós, pobres diabos no mais das vezes identificados pelo número do leito, à mercê de um aparato hospitalocêntrico onde não há consonância entre esclarecimento e orientação nas relações múltiplas que ali acontecem? Ou exagero?

  9. Aleph disse:

    Caro Karl,
    nem só "la donna è mobile". Homens são corajosos longe da morte e pusilânimes a sua frente. Mudam de idéia, deixam de ter aquela tão forte convicção. Camões já disse que
    "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
    muda-se o ser, muda-se a confiança;
    todo o Mundo é composto de mudança,
    tomando sempre novas qualidades."
    Já vi pessoas recuaram à vontade prévia expresa de não ir para a UTI porque descobriram que o neto começou a falar...
    Não se resolve a questão por lei. Pelo contrário: agrava-se o entendimento porque ela vende a falsa idéia de "objetividade racional". Bendita liminar!!!

  10. Karl disse:

    A questão não se resolve com uma lei; se inicia. A lei não define nada; permite a possibilidade de escolha e discussão. Só o fato, caríssimo Aleph, de haver 2 comentários seus aqui, já explica o que quero dizer. Obrigado.

  11. Sibele disse:

    Considerei que essa notícia merecia registro nesse post:
    "Câmara dos deputados aprova proposta que regulamenta ortotanásia": http://bit.ly/gB8SEG

  12. Sibele disse:

    Vale o registro:

    30/08/2012: Médicos deverão seguir desejo de pacientes terminais contrários a tratamento 'fútil'

    http://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/1145793-medicos-deverao-seguir-desejo-de-pacientes-terminais-contrarios-a-tratamento-futil.shtml

  13. [...] Os Dez Anos da Lei Mário Covas. Disponível em: <http://scienceblogs.com.br/eccemedicus/2009/07/os_10_anos_da_lei_mario_covas/> Acesso em [...]

  14. Maria Solange Oliveira Casanova disse:

    Me entristece, saber que existe esta lei estadual e poucos a colocam em prática, quantas medicações erradas, quem nos garante dentro dos hospitais, é aterrorizante só sabe quem usa o SUS, claro, mas fiquei feliz desde que soube desta lei e o Grande e saudoso Mario Covas obrigada onde você estiver!

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