O Cobre e a Menina

Eu era residente, dentre os leitos dos quais era responsável na enfermaria de Clínica Médica, havia uma vaga. Isso significava encrenca. Ou os médicos do staff vinham solicitar alguma internação vip, ou o pronto-socorro queria subir algum paciente grave, o que, de qualquer forma, era igual a muito trabalho.

Peguei meu interno (estudante do 5o ano da faculdade de medicina) e fomos dar uma olhada no pronto-socorro antes que alguém soubesse da existência da vaga. Lá encontramos uma menina de 14 anos bastante ictérica. Os médicos do PS não tinham ideia do que poderia ser. Sabiam apenas que não era um caso para cirurgia. Fiquei bastante intrigado com o caso e resolvemos interná-la.

Na enfermaria, a história dela era muito peculiar. Veio ao hospital proveniente do interior da Bahia porque estava com medo de acabar como a irmã. “Como assim?” Tinha uma irmã que morreu amarela, urinando escuro e gritando, isso aos 16 anos. Agora que ela tinha ficado amarela, tinha medo de enlouquecer também. Fiquei preocupado. Disparamos a “cavar” os exames de laboratório e imagem dentro de um raciocínio que contemplasse o diagnóstico de insuficiência hepática, que era o cabível pelo seu quadro clínico.

Seu estado piorou rapidamente. Ficou sonolenta no dia seguinte. Hematomas começaram a aparecer nos locais de punção venosa. A icterícia piorou. Sua urina ficou bastante colúrica (cor de coca-cola). No outro dia ela ficou agitada, tendo de ser restrita ao leito. Confusa, não obedecia a qualquer tipo de ordem e começou a gritar… Ficamos 24 horas por dia monitorando tudo e correndo com exames e procedimentos. Morreu dois dias depois sem que pudéssemos fazer absolutamente nada.

Os exames colhidos revelaram uma ceruloplasmina muito baixa e um cobre sérico de 225 mcg/dL (normal < 15). A menina tinha uma forma fulminante da Doença de Wilson de característica hereditária, autossômica recessiva, provavelmente a mesma que levou sua irmã anos antes. A única possibilidade era um transplante hepático que não era realizado de rotina no hospital àquela época.

Só no ano de 2009, até julho mais de 200 transplantes hepáticos foram realizados na cidade de São Paulo. Em especial um, era muito parecido com o da menina.

Discussão - 5 comentários

  1. Sibele disse:

    Imagino seu sentimento de impotência ao perder essa paciente.
    E feliz ao ver a evolução desde então, com número tão significativo de transplantes sendo realizados cotidianamente. A morbimortalidade desses pacientes melhorou, também?

  2. MHL disse:

    Karl
    Não poderia ter usado quelante de Cu como tratamento na menina ?
    Fiz uma vez um estudo de um ligante de cobre com ação antioxidante:
    http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/11855743
    pena que é um composto tóxico..

  3. Karl disse:

    Os quelantes (d-penicilamina) são utilizados sim, mas no caso da menina, já não dava mais tempo.

  4. Rodrigo disse:

    Sei que deve ser irritante argumentar com base em um episódio de House, mas esta não é aquela doença que forma um anel de coloração cúprica ao redor da íris?

  5. Karl disse:

    Sim. São os anéis de Kayser-Fleischer. Mas nessa menina não houve tempo para sua formação. Obrigado pelo comentário.

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