Sobre Fatos

@millorfernandes [no Twitter]
Achei esse texto apropriado às discussões recentes, a saber, o de entender algumas diferenças entre a interpretação dos fatos quando dentro de um contexto que tem o homem como objeto. É um pequeno excerto de um livro bastante interessante chamado “Trem Noturno para Lisboa” de Pascal Mercier [Record, 2009. Tradução de Kristina Michahelles]. Ainda comentarei mais sobre esse livro.
As Sombras da Alma
As histórias que os outros contam sobre nós e as histórias que nós mesmos contamos – quais delas se aproximam mais da verdade? É tão certo que sejam as próprias histórias? Somos autoridades para nós mesmos? Mas não é essa a questão que me preocupa. A verdadeira questão é: existe, nessas histórias, alguma diferença entre certo e errado? Nas histórias sobre coisas exteriores, sim. Mas quando tentamos compreender alguém em seu interior? Esta viagem algum dia chega a um fim? Será a alma um lugar de fatos? Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?
“Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?” é de uma crueza nietzscheana. O pequeno parágrafo junta teorias psicanalíticas, a formação do “eu” e a fundamentação da moral no sujeito. Qualquer consulta médica que se preze começa com o que se convencionou chamar anamnese (literalmente, não não-lembrar). Um paciente produz uma história sobre seu sofrimento, mas o médico deve estimulá-lo a produzir uma narrativa sobre si. Seu sofrimento não faz sentido se não for assim. Mas, seres humanos são bons para falar de coisas, não deles mesmos. A descrição formal das “coisas” permitiu o aparecimento da ciência. As descrições de si, são “loucuras” psicanalíticas, metade pseudociência, metade religião, com linguagem rebuscada e imprecisa, que frequentemente não chegam a lugar algum. É mais fácil falar dos outros.
O escândalo da vida é um fato. O aparecimento da consciência, uma fatalidade. Millôr sabe das coisas.
Foto: L’ombra burlona de ita145117

Discussão - 6 comentários
Um foto sobretudo magistral. E uma análise concisa, precisa. Radical (porque vai à raiz). Mais nada a dizer.
Karl, esse formalismo com que a ciência conformou a narrativa que o paciente faz de seu sofrimento, dirigindo firmemente a entrevista inicial – a anamnese, a fim de obter-se as pretendidas eficiência e eficácia no diagnóstico médico, em termos de tempo, precisão e correção, é realmente seguido ao pé da letra?
Todo o roteiro de uma anamnese completa é seguido naquele exíguo período de tempo que normalmente dura uma consulta médica? (em instituição pública, bem entendido).
E quando vi “Ou seriam os supostos fatos apenas uma sombra fictícia das nossas histórias?”, lembrei-me de um artigo do Ruy Castro na Folha (12/dez/09), com o sugestivo título “Publique-se a lenda“. Algumas passagens:
Tudo isso para questionar sua afirmação de que “é mais fácil falar dos outros”. Será? Nessa época hipermidiática em que vivemos, onde qualquer um pode superexpor-se em redes sociais, escancarando suas vidas através de perfis, fotos e até “enquetes”, como o recente FormSpring.me, parece-me que o critério de privacidade foi meio que esquecido… Ou então, surgem perfis fakes, esses que pretende-se que sejam as “lendas” pessoais – as que serão conhecidas, publicadas e lembradas. A versão, o fictício, esses sim dados ao escândalo. Enquanto que o fato, a verdade… continua um mistério, talvez até não consciente.
Caríssima Sibele, “é (mesmo) mais fácil falar dos outros” e principalmente, quando “os outros” somos “nós mesmos”. Parabéns pela reflexão. Agradeço também ao Fernando pelos comentários.
Caríssimo Karl :), muito obrigada!
outro dia vi na televisão um trecho de um documentário sobre o openheimer, aparece ele dando depoimento (tem imagem aqui – http://www.youtube.com/watch?v=AhDnI–6mks). peguei o programa no meio mas era óbvio que era um ator, e não o depoimento em si – ele falava de si próprio com demasiada fluidez.
lembrei deste texto certeiro do karl.
“Um paciente produz uma história sobre seu sofrimento, mas o médico deve estimulá-lo a produzir uma narrativa sobre si.”
16 de dez de 2009.
Hm.