Ácidos, Bases e a UTI II

Esse é o segundo post da série. O primeiro pode ser visto aqui. Nesse mostraremos como a teoria de dissociação eletrolítica levou ao entendimento sobre ácidos e bases.

A APLICAÇÃO DA LEI DE AÇÃO DAS MASSAS À DISSOCIAÇÃO ELETROLÍTICA – O PRODUTO IÔNICO DA ÁGUA

A Lei de Ação das Massas havia sido enunciada em 1864 por dois cientistas noruegueses Cato GULDBERG e Peter WAAGE (Forhandlinger: Videnskabs-Selskabet i Christiana 1864, 35) baseada principalmente em estudos com enzimas, açúcares e no trabalho de BERTHELOT, com ésteres, sabidamente substâncias que não ionizam. Essa lei preconiza que, em uma reação química genérica A + B → C + D, a velocidade da reação (v) é diretamente proporcional à concentração ([ ]) dos compostos reagentes, onde v = k[A][B], e k é a constante de velocidade característica da reação. Entretanto, muitas reações em biologia podem ocorrer tanto no sentido normal quanto no inverso e são representadas assim:A + B ⇄ C + D. São chamadas de reações reversíveis. Nelas existe uma tendência a se atingir o equilíbrio químico. Por definição, no equilíbrio químico a velocidade da volta deve ser igual a da reação de ida e podemos escrever v(volta) = k(volta)[C][D] = v(ida) = k(ida)[A][B]. Podemos rearranjá-la da seguinte forma: k(ida)/k(volta) = [C][D]/[A][B]. Ora, uma constante (k[ida]) dividida por outra constante (k[volta]) só pode resultar em uma outra constante, que chamaremos K, onde K será, à depender da temperatura, a constante de equilíbrio da reação considerada.

A aplicação do conceito de dissociação eletrolítica aumentou consideravelmente quando Arrhenius foi trabalhar com Wilhelm OSTWALD (1853-1923) no primeiro laboratório de Físico-Química da História. Ostwald nasceu na Estônia e em 1887 estabeleceu seu famoso laboratório em Leipzig, atraindo centenas de estudantes de todo o mundo, inclusive o próprio Arrhenius. Trabalhando juntos, mostraram em 1888 que se podia aplicar a lei de ação das massas às reações eletrolíticas exatamente como se aplicava às reações com moléculas não dissociadas. A constante K agora seria a constante de dissociação do ácido ou da base. Quando Ostwald recebeu um exemplar do trabalho de Arrhenius, imediatamente percebeu que suas complicadas medidas da concentração do íon hidrogênio, seriam mais simples e mais acuradas se para tal fosse utilizada a condutividade eletrolítica. Isso seria útil para avaliar a “força” de ácidos e bases. A “força” entendida como capacidade de “gerar” prótons ou “consumí-los”. Para ácidos e bases fracas, essa abordagem se mostrou especialmente precisa. (No caso das substâncias fortes, o K não permanecia constante e dificultava os cálculos). Entre as tantas aplicações que a teoria da dissociação eletrolítica associada a lei de ação das massas propiciou (particularmente em Química Analítica), nos interessa principalmente a dissociação eletrolítica da água.

Para Arrhenius, ácido é toda substância que, em solução, libera um H+. As bases, por sua vez, são substâncias que liberam o OH-. A água é, do ponto de vista da definição ácido-base de Arrhenius, uma substância anfótera pois sua dissociação fornece tanto H+ como OH-. A dissociação é, entretanto, extremamente baixa. Se aplicarmos a lei de ação das massas a essa reação, como vimos acima, teremos:

 
H2O = H+ + OH e k = [H+][OH] / [H2O]

mas, dado que a constante de dissociação é muito pequena e que a [H2O] é praticamente inalterada com esse processo, podemos considerar a [H2O] como constante também, incorporando-a do lado esquerdo da equação (k/[H2O]) que ficaria

k/[H2O] = Kw = [H+][OH]


onde Kw é conhecido como Produto Iônico da Água. Medindo a condutividade da mais pura água que conseguiram preparar, Kohlrausch e Heydweiller chegaram em 1894 à conclusão que [H+] = [OH] = 0,78.10-7 ion-g/L e portanto, que KW = 0,61. 10-14 a 18oC, valor utilizado até hoje e muito próximo do que Ostwald calculara. Esse é o conceito fundamental para o entendimento dos distúrbios ácido-básicos em qualquer solução, inclusive no sangue. Por esses estudos, Ostwald foi o terceiro deste grupo de amigos íntimos a ganhar o seu prêmio Nobel em 1909. De interesse histórico é o fato de Ostwald e van’t Hoff terem fundado a famosa e primeira revista de físico-química Zeitschrift für physiklische Chemie em 1887. No seu primeiro número foram publicados o trabalho mais importante de van’t Hoff e a Teoria da Dissociação Eletrolítica em sua forma completa no mesmo número, ambos recebendo o Nobel por suas idéias expostas nesses dois artigos. Do laboratório de Ostwald em Leipzig, viria ainda um quarto Nobel em 1920.

NERNST E A TEORIA DO ELETRODO SIMPLES

Walther Hermann NERNST (1864
-1941) nasceu em Briesen na Prússia. Fez doutorado em 1887 e depois foi trabalhar com Ostwald. Apesar de ter ganho o Nobel em 1920 pelo desenvolvimento da Terceira Lei da Termodinâmica – o teorema do calor – foram seus estudos com potenciais de eletrodo simples que conduziram aos nossos modernos métodos de análise e que ele considerava de maior importância. Nernst trabalhou com as relações matemáticas da analogia entre gases e soluções de van’t Hoff e a teoria iônica de Arrhenius chegando, em 1889, à teoria das células galvânicas, assumindo uma pressão eletrolítica de dissolução, que forçava os íons do eletrodo para a solução e que era oposta à pressão osmótica dos íons dissolvidos. Essa investigação conduziu Nernst à equação que tem seu nome. Para isso, necessitou usar conceitos de Boyle, Charles, Gay-Lussac, Kelvin e a constante de Faraday, desenvolvidos ao longo de quase 80 anos de pesquisa. A equação está na base dos três eletrodos da dosagem moderna dos gases sanguíneos e do pH.

Assim foi a história de 4 amigos íntimos que, com pesquisas interdependentes e complementares, ganharam cada um deles, um prêmio Nobel de Química, van’t Hoff o primeiro de todos, em 1901, Arrhenius em 1903, Ostwald em 1909 e Nernst em 1920, entrando para História da Ciência.

Bibliografia

1. Waage, P.; Guldberg, C. M. Forhandlinger: Videnskabs-Selskabet i Christiana 1864, 35. Em inglês aqui.
2. Apud Jörgensen. Raoult, F. M. (1882). Comptes Rendus 95: 1030-1033.
3.
Jörgensen, H. (1950). Theorie, mesure et applications du pH. Paris, Dunod. Na biblioteca do IQ da USP Identificador:  5416 Classificação:  541.3728 J82T.
4. Nernst, W. H. (2000). “Biografia.” http://www.nobel.se/chemistry/laureates/1920/.    

Discussão - 1 comentário

  1. Rudolf disse:

    Novamente ótimo! Parabéns!

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