Ácidos, Bases e UTI IV

Chegamos ao quarto post da série que se iniciou aqui. Estamos no início do século XX. Muitos autores marcam esse período como sendo o início da medicina moderna, tanto pela mudança da racionalidade médica como pela influência crescente da tecnologia na profissão. Aqui veremos o trabalho dois autores de Boston e Copenhagen e o consequente surgimento da equação de Henderson-Hasselbalch, base para o entendimento dos distúrbios ácido-base. Esse casamento iria terminar na lua-de-mel, mas essa é outra história…

A PRIMEIRA APLICAÇÃO DIRETA DA FÍSICO-QUÍMICA EM MEDICINA – O TRABALHO DE L. J. HENDERSON

Lawrence Joseph HENDERSON (1878-1942) terminou a faculdade de Medicina de Harvard já sem a intenção de se tornar médico. Pelo contrário, tinha interesse em variados ramos da Ciência e conhecimentos suficientes para aplicá-los a sua área de atuação profissional, o que hoje conhecemos como Bioquímica. Foi professor de Química Biológica na Harvard por muitos anos, mas também integrou outras universidades como professor convidado em Paris, Yale, Berlin e na Califórnia. A partir de 1906, Henderson começa a publicar seus estudos. O ano de 1908 foi especialmente importante em função de duas de suas publicações:”The Relation between the Strengths of Acids and their Capacity to Preserve Neutrality” e “The Theory of Neutrality Regulation in the Animal Organism” ambas no American Journal of Physiology. Seu principal objeto de estudo eram os tampões, especialmente o tampão bicarbonato/ácido carbônico. A ebulição dos conceitos darwinianos e sua fascinação pelo funcionamento do tampão bicarbonato, cuja existência ele chegou a atribuir a um possível “dom” do mundo inorgânico para a vida, o levaram a publicar em 1912, um livro polêmico intitulado “The Fitness of Environment” cujo esclarecedor subtítulo era “Um questionamento sobre a significância biológica das propriedades de matéria” em uma tentativa de atrelar tendências vitalistas às idéias de Darwin. A idéia principal do livro é a de que, se por um lado, os seres vivos eram “forçados” a se adaptarem ao meio ambiente, este último também se mostrava “propenso” a evoluir os seres vivos, usando como argumento uma série formidável do que chamou de “coincidências”. Henderson publicou esse livro quando tinha 34 anos e é nítido o incômodo que a Teoria da Evolução lhe causou. Sua inquietação entretanto, se traduz em um profundo conhecimento de Química, Biologia, Geologia e Filosofia da Ciência, além de uma argumentação belíssima, conduzida de forma cadenciada, quase morosa, como dificilmente se vê nos livros atuais. Publicou sua principal obra, entretanto, saiu em 1928 intitulada The Blood – A Study in General Physiology. Esse livro de 397 páginas, é a primeira tentativa cientificamente séria de aproximar os conceitos da Físico-Química de van’t Hoff à fisiologia dos seres vivos de Claude BERNARD. A compreensão que Henderson adquiriu instituindo uma visão físico-química dos fenômenos fisiológicos do sangue foi tão ampla que ele mesmo percebeu as limitações de suas aproximações. Para ampliar seu entendimento, ao menos teórico, do problema, Henderson talvez tenha sido o primeiro autor biomédico a propor uma modelagem matemática da fisiologia do sangue através de um modelo de múltiplas variáveis descrito pelo sócio-economista PARETO com propósitos totalmente diversos (Traté de Sociologie Générale – Lausanne et Paris, 1919), algo bastante avançado e inédito em 1928. Abaixo transcrevo, em tradução livre, a opinião de Henderson a respeito do que hoje podemos chamar de Fisiopatologia, área do conhecimento médico que sem dúvida, ele ajudou a fundar: “Segundo as idéias de PASTEUR, um vírus específico deveria ser relacionado como a causa de toda infecção e este ponto de vista estrito permaneceu durante todo o período de ativas descobertas de microorganismos novos. Esta maneira de entender parece ser a correta, mas sua generalização faz perder de vista a característica orgânica da doença e sua interdependência de todas as variáveis que entram em jogo em um estado patológico. Esta concepção toca em um dos principais pontos de desacordo entre os homens de laboratório e os clínicos (…)”. Henderson se refere aqui às diferentes teorias patológicas, muito debatidas à época: a visão “ontológica” e a “fisiopatológica” da doença. Principalmente depois de Pasteur, a ideia de que a doença é algo (ontos) que “incorpora-se” ao paciente ficou bastante popular. Os “fisiopatologistas”, capitaneados pelo alemão Rudolf Virchow, pensavam a doença como um desvio da fisiologia normal e Henderson se inclui entre eles, como podemos ver na continuação do fragmento: “Podemos acreditar que logo a fisiologia patológica, considerada como o estudo da interdependência dessas numerosas variáveis, se apresentará sob a forma que corresponde, desde há muito tempo, às necessidades dos clínicos. É pouco provável que tais estudos sejam rigorosamente exatos, porque eles implicarão necessariamente em um certo número de aproximações, por isso a intuição será a base (para sua aplicação) na Medicina, como já tem sido desde o tempo de Hipócrates. Mas a Ciência e a intuição aproximar-se-ão, pouco a pouco…” Reconhecendo as imperfeições e limitações desse tipo de abordagem, Henderson trabalhou duro para minimizá-las. Sob essa atmosfera, desenvolve a ideia de que o sangue é um sistema físico-químico na mais pura acepção do recém-introduzido conceito de Físico-Química e, mais diretamente ligado ao nosso interesse, estabelece os princípios do Equilíbrio Ácido-Base. Ao publicar em alemão, uma síntese de seus artigos de 1908 (ver acima), Henderson usou a expressão gleichgewicht, que pode ser traduzida como equilíbrio: (Das Gleichgewicht zwischen Säuren und Basen im tierischen Organismus – Ergebn. Physiol. 8: 254-325, 1909). Por isso, atribui-se a ele a criação da expressão Equilíbrio Ácido-Base em 1909. Como vimos, o ácido carbônico foi o principal objeto de estudo de Henderson e ele foi, sem dúvida, influenciado por autores do século anterior. De fato, em 1831 O’SHAUGHNESSY identificou a perda de “carbonato de soda” do sangue como o distúrbio fundamental em pacientes que morreram de cólera, mas essa observação não foi notada a não ser 50 anos depois. A ênfase de Henderson sobre o ácido carbônico foi reforçada também pelo fato de que na época dele (e de fato, até 1950, como veremos), este era o único componente do equilíbrio ácido-base que podia ser dosado rotineiramente nos fluidos corporais. A contribuição decisiva de Henderson foi a aplicação da Lei de Ação das Massas de Guldberg e Waage ao equílibrio do ácido carbônico:

Se H2CO3 ⇄ H++ HCO3, temos que: [H+] = k [H2CO3] / [HCO3].

Já que [H2CO3] não pode ser medida, foi astutamente substituída pela concentração de CO2 molecular dissolvido ([CO2]dis) que guarda uma relação direta com a [H2CO3]. O CO2 pode se dissolver em uma solução aquosa conforme mostra o equilíbrio abaixo:
CO2 (gas) ⇄ CO2 (dis)

A reação de “ida” depende
da pressão parcial de CO2 (pCO2) e a reação de “volta” depende da concentração de CO2 dissolvido. Podemos então, escrever o seguinte equilíbrio:

pCO2 ⇄ K.[CO2(dis)]

Podemos chamar de solubilidade do CO2 (SCO2), o termo 1/K e escrever:

[CO2(dis)] = SCO2.pCO2

Esta é a lei de Henry, bem conhecida na época. Agora o equilíbrio do bicarbonato pode ser escrito de modo a identificar os fatores que influenciam a concentração hidrogeniônica [H+] em uma solução orgânica:

[H+] = K.[CO2(dis)] / [HCO3]

que é conhecida como Equação de Henderson. Como a pCO2 era fixa em seus estudos in vitro e a [CO2(dis)] era determinada pela lei de Henry, Henderson pôde estudar as variações do equilíbrio ácido-base do sangue estabelecendo os conceitos que são utilizados até os dias de hoje. A equação de Henderson é a base fundamental para entendermos os distúrbios ácido-base em organismos vivos.

O TRABALHO DE HASSELBALCH – O CASAMENTO BOSTON vs. COPENHAGEN

Karl Albert HASSELBALCH (1874-1962) era dinamarquês e fez Medicina na Universidade de Copenhagen. É co-autor do trabalho em que Christian BOHR descreve o “efeito Bohr” do CO2 na curva de dissociação da hemoglobina, tendo portanto, treinamento científico graduado. A partir de 1906, as variações do [HCO3] passaram a ser medidas através do acúmulo de ácidos fixos. Com a introdução da escala do pH pelo seu conterrâneo Sörensen (ver acima) e métodos para a medida do pH no sangue e no plasma desenvolvidos por ele mesmo (HASSELBALCH E LUNDSGAARD, 1912), Hasselbalch pôde concluir que o controle respiratório do CO2 no sangue arterial influenciava a acidez do plasma, reconhecendo pela primeira vez os distúrbios respiratórios do equilíbrio ácido-base. Em 1916, Hasselbalch introduziu explicitamente a pCO2 na equação de Henderson e a colocou na forma logarítmica, privilegiando o cálculo do recém-inventado pH:

pH = pK + log [HCO3] / (SCO2 x pCO2)

Esta é a equação de Henderson-Hasselbalch que pretendia, pela primeira vez, separar os distúrbios do equilíbrio ácido-base pela sua origem em respiratórios e não-respiratórios (metabólicos). É proveniente de duas cidades (Boston e Copenhagen) que teriam um papel importante na discussão do equilíbrio ácido-base nos anos seguintes, e rivalizariam em sua interpretação. A equação de Henderson-Hasselbalch dominou o panorama da fisiologia ácido-base durante todo o início do século XX, mas não pôde ser utilizada na prática clínica devido a impossibilidade em se dosar suas variáveis. Foi com a comoção de uma catástrofe que o desenvolvimento da ciência do equilíbrio ácido-base pôde se concretizar.

Bibliografia

1. Henderson, LJ. Le sang. Système Physico-Chimique, 1931.
2. Henderson, Lawrence J. Fitness of the environment;Boston;Beacon;1958 [FFLCH] 957 H496f;BIOLOGIA.
3. Severinghaus JW, Astrup PB. History of blood gas analysis. Int Anesthesiol Clin 25:1-224, 1987.
4. Alguns links interessantes: Wikipedia, Tutorial Ácido-base,
5. De Levie, R. The Henderson Aproximation and the Mass Action Law of Guldberg and Waage. DOI 10.1007/s00897020562a

Discussão - 4 comentários

  1. Aleph disse:

    Karl,
    post um pouco ácido para mim.
    Alguma dica para neutralizar o ocorrido?

  2. Karl disse:

    Caríssimo Aleph,
    Queres dizer que não fui claro? Por favor, deixe-me saber para que possa desfazer o mal-feito.

  3. Curiox: se não me engano, Christian Bohr é pai de Niels Bohr.
    []s,
    Roberto Takata

  4. Aleph disse:

    Caro Karl,
    de maneira nehuma! Assim com Drão, você não tem culpa nenhuma, os pecados são todos meus.
    Abs!

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