Perguntona Não-Governamental

Acho que a política indigenista de algumas Organizações Não-Governamentais sofre uma crise de filosofia de trabalho, ou eu não consigo entender bulhufas. Fico ouvindo entrevistas e percebo que são utilizadas formas diferentes de considerar o índio, de acordo com a conveniência do discurso. Por favor, se alguém conseguir resolver essa aporia, me explique. Se não, vejamos:

Muitas das políticas que buscam ajudar populações indígenas à beira da extinção baseiam-se no fato de que tais populações devem ser vistas de forma diferenciada. Por terem outra matriz cultural – que, por si, já é (ou deveria ser) considerada um patrimônio -, outra forma de se relacionar com o meio ambiente, outra religião, etc, têm, portanto, que ser consideradas de forma diferente. Isso, ao fim e ao cabo, embasa as políticas que consideram o índio inimputável perante a lei (“dos brancos”), e também, fortalece a ideia de que o índio é um cidadão brasileiro menor.

Por outro lado, a despreconceitualização do índio passa pelo fato de reconhecê-lo como um par, um “do mesmo nível”, nas palavras de um indigenista, “mais um diferente dentro de um grupo de iguais”. É isso que as ONGs chamam de valorização da diversidade. Mas, “quando vemos um índio de shorts ou usando um telefone celular, torcemos o nariz e dizemos, olha aí, ‘isso’ não é mais índio!” – como disse um repórter referindo-se à forma como o homem comum se refere a grupos indígenas.

Mas, a pergunta então é como posso considerar alguém igual e diferente ao mesmo tempo? Se as ONGs trabalham com as duas matrizes conceituais concomitantemente, seu discurso soará tão verdadeiro como uma nota de 3 reais; como algo que contém uma pegadinha oculta e não sensibilizará os que estão, por exemplo, brigando por terras. Discursos antropológicos como o de que “culturas milenares desaparecerão” ou “línguas raras serão varridas do mapa” têm colocado o índio em rota de colisão com o desenvolvimento do Brasil, com todas as consequências que isso possa ocasionar.

“Aculturar ou conservar como é?” Essa é a pergunta que tem como base conceitual o fato de considerarmos o índio um igual ou diferente, respectivamente, em relação a nós. Eu não sei responder. Você sabe? Desculpa o pitaco onde não fui chamado.

Discussão - 13 comentários

  1. Não somos nós quem devemos responder, são as próprios tribos.
    Quem quer ter sua cultura preservada merece ajuda para tanto. Quem quer se integrar e se aculturar deve ser recebido de braços abertos.
    E quem quer soluções intermediárias - digamos, como os descendentes de alemães imigrantes que mantém parte de sua cultura, mas se integram à vida do país - também assim devem ser aceitos.
    []s,
    Roberto Takata

  2. Karl disse:

    Takata,
    Será que as tribos têm todas as variáveis para tomar essa decisão? Em outros termos, como poderemos informar as tribos das consequências da decisão que tomarão dentro desse modelo que você propõe?

  3. Rudolf disse:

    E quem tem domínio sobre todas as variáveis para tomar suas próprias decisões?
    Eu desconheço as leis a respeito disso, só o que sei são expressões das informações que tive contato. Com base nessa meu total amadorismo, acredito que a lei deveria dar uma terra para o indio ficar para viver como indio, sem intervenção nenhuma da nossa cultura. Se a tribo deixar de viver exclusivamente de extrativismo e pequenas lavouras, para passar a fazer comércio com outra comunidades, aprender ler e escrever, ter acesso a nossa tecnologia, essa proteção deveria deixar de valer. Eles teriam que ter RG, ir a escola, receber assistencia médica do governo, servir o exército e votar, como qualquer outro cidadão brasileiro. Neste caso, a terra da tribo seria loteada entre eles.
    Meios-termos não são justos e só causam confusão. Ou índio é museu ou índio é cidadão. Quando um imigrante chega num país, ele também se adapta a cultura e adiciona novos temperos ao caldo cultural do local. Seguindo as leis do país, todos podem viver como quiser.

  4. Fabiana disse:

    Na minha opinião, a resposta é: são iguais.
    Pela via de um silogismo muito simples: se somos todos diferentes, então somos iguais. Não que devamos desconsiderar as diferenças, longe disso. O que temos é que *aparelhar* para o *exercício* *relacional* da diferença.
    Não segregar, muito menos proteger. Senão, corremos o risco de criar "rapazes na bolha de plástico" (lembram do filme do John Travolta? Que velhinha...). Opa: índios na bolha de plástico. Opa: de plátanos? (plástico é muito politicamente incorreto para índio, oh céus!!... E plátanos... bem... estamos no Brasil!)
    Então, mas o que eu queria dizer é: todo protecionismo, todo paternalismo é uma forma de discriminação. De modo positivo - e decrescente, espera-se - em casa, com os filhos: *discrimino* que meu filho é uma criança, então me dou o direito de decidir por ele, por achar que estou mais aparelhada do que ele para certas decisões: o que comer, o que vestir, que escola frequentar, etc., etc. De modo negativo, como preconceito e desvalorização do outro para a valorização do eu mesmo: sei mais (mas do quê?), então decido eu.
    Com adultos? Com culturas?
    Tenho a impressão de que, apesar das - algumas - boas intenções, a grande maioria das ONG's peca por não perceber o paternalismo, o protecionismo (e, por que não dizer, o preconceito e o panfletarismo político) ontológicos de sua prática.
    Vou cair no clichê, mas alguns são necessários, fazer o quê? Pra se tornarem indivíduos - e cidadãos -, os índios não precisam de ONG's (e me perdoem aquelas que o fazem): precisam de escolas. Das boas.
    Me alonguei, né? Desculpem...

  5. André Souza disse:

    UUma pergunta q não quer calar...se as sociedades evoluem com o tempo, no esforço de "preservar a cultura" não estaríamos tentando impedir um evento q ocorre naturalmente, que é a evolução e assimilação de culturas/tecnologias, sejam estrangeiras ou criações locais (tal como ocorre com a língua)?

  6. Maximus Gambiarra disse:

    Concordo com o que o Rudolf escreveu acima: Os meios termos são um problema. Há tribos aculturadas que progrediram economicamente e os índios andam de picape importada (eles pagam IPVA?). Outras reservas são verdadeiras favelas, onde os índios vivem fazendo artesanato de palha tingida com matriz de mimeógrafo para vender aos brancos. Se o índio ainda viver das formas tradicionais, deve ser tratado como o "diferente", se ele estiver interagindo com os não índios, deve ser um "igual" com direitos e os mesmos deveres, e não oscilar entre benesses e mendicância.

  7. @Karl,
    Nem nós temos informações a respeito das coisas que adotamos - seja do estrangeiro, seja desenvolvida por aqui.
    Desenvolvemos e usamos tecnologias e depois vamos verificar os efeitos de médio e longo prazo - em termos econômicos, de saúde, ambientais...
    []s,
    Roberto Takata

  8. Vou dar meu pitaco.
    O problema com as definições identitárias é que elas se dão, neste caso específico, apenas numa direção: brancos --> índios. E isto se dá porque somos nós que colocamos as condições para que o processo de aculturação ocorra. Supor que os índios tenham alguma autonomia para decidir só seria válido se eles conhecessem os meandros da nossa burocracia estatal tão bem quanto nós, o que não ocorre. É mais ou menos como o tal "consentimento informado" na medicina. Ao fim e ao cabo tanto os índios como os pacientes precisam confiar nos indivíduos que representam o outro lado.
    Ademais, essa questão, assim como o Karl a colocou, é uma questão para os brancos, que precisam encontrar um modo de lidar com a alteridade sem reduzi-la a um estereótipo. Os índios sabem quem são. A questão é se eles entendem o que seria tornar-se um de nós. E, infelizmente, não há meios de deixar que eles escolham, porque não é assim que a nossa civilização funciona.
    Neste particular sou pessimista. As culturas indígenas vão acabar desaparecendo. A questão é como esse processo se dará este processo. A tendência é que ele seja mais institucional e humano do que já foi.

  9. Meios-termos não são problemas. Fazemos isso o tempo todo.
    16 anos pode votar; 18 anos é maioridade penal; 35 anos pode se candidatar a presidente e a senador; 65 tem direito a aposentadoria.
    No CBT, infrações leves, graves e gravíssimas. No CP, as infrações também se gradam com penas progressivamente mais severas.
    IPTU é progressivo; as taxas de luz têm faixas de preço.
    Eu tenho problemas são com maniqueísmos: ou é xis ou é ípsolon. Ou é homem ou é mulher, não pode ser transex, guei, lésbica, bissexual, assexual, panssexual...
    []s,
    Roberto Takata

  10. NightHiker disse:

    Já o meu problema é com rótulos. Por que precisamos sequer dessa dicotomia "brancos" e "índios"? Há seres humanos dos dois lados, e nossa preocupação deveria acabar aí. Por que seria necessário, ou mesmo recomendável, "preservar" a cultura indígena além do museu? Por acaso vemos necessidade de preservar a cultura medieval, ou a cultura escravagista? Ou por acaso alguém acha que a cultura baseada na Sharia, com a subjugação da mulher, deve ser preservada, e não erradicada o mais rápido possível? Chega de relativismo cultural e do politicamente correto.
    Se pensarmos no bem-estar do indivíduo como conceito-chave, em vez de algum ideal bucólico misturado ao bom-selvagem do Russeau, ficará difícil negar que certos benefícios da "nossa" cultura, como saneamento básico, medicina e educação, por exemplo, deveriam ser estendidos a todos, sejam índios ou brancos. Ao mesmo tempo, valores amplamente aceitos e estabelecidos, como aqueles relacionados aos direitos humanos e principalmente da criança, assim como os crimes relacionados a eles, deveriam também se estender a todos, sejam índios ou brancos. Chega de infanticídio justificado por questões culturais, por exemplo.
    Claro que a assimilação deve se dar de forma natural, gradual, de uma forma que demanda uma discussão bem mais minuciosa do que comentários em blogs permitem, e, em alguns pormenores, poderia depender da anuência das comunidades indígenas. Mas tão ruim quanto uma assimilação forçada, ou mesmo pior, é a manutenção artificial de uma cultura que iria naturalmente se extinguir sem essa interferência ou preocupação por parte dos "brancos".

  11. Karl disse:

    Quando falei de variáveis para tomar decisões, tomei o tema como o Daniel. Como ele e o NightHiker, também sou pessimista em relação ao futuro da cultura indígena. Não se trata de preservar aspectos arcaicos e que colocam o ser humano em risco ou sob condição de opressão a qualquer custo. Lembro Levy-Strauss que mostrou que a cosmologia indígena faz tanto sentido quanto qualquer outra e nos pode ser útil em determinados momentos de ausência de conteúdo, cada vez mais frequentes. Sem falar no conhecimento de ervas, nomes de coisas, e da mata em si,etc. Não é pouco pra se atirar pela janela.
    Trata-se, como a Fabiana, o Daniel e o Takata dizem, de permitir que o processo seja feito ao contrário índio --> branco. Pra isso, precisa MUITA escola. Coisa que nem brancos, negros, japas, turcos, italianos, ainda têm nesse país. Ao inverter a abordagem, de preferência em igualdade de condições, os meio-termos passam a ser secundários, não? (Maximus e Rudolf).
    Obrigado pelo altíssimo nível da discussão!

  12. NightHiker disse:

    "Lembro Levy-Strauss que mostrou que a cosmologia indígena faz tanto sentido quanto qualquer outra e nos pode ser útil em determinados momentos de ausência de conteúdo, cada vez mais frequentes. Sem falar no conhecimento de ervas, nomes de coisas, e da mata em si,etc. Não é pouco pra se atirar pela janela."
    Sem dúvida que não. No entanto, não precisamos que esses indivíduos continuem vivendo em condições que são sub-ótimas do ponto de vista de saúde, educação, ou mesmo bem-estar em geral (excetuando-se aqueles que se aproveitam desse status para viverem luxuosamente, é claro) - basta que coletemos o conhecimento que adquiriram nesse interim, e foi nesse sentido que afirmei que a cultura não precisa ser preservada fora do "museu". Nesse caso, museu foi uma palavra chave para designar academia, como reservatório de conhecimento acumulado, seja útil ou não.
    Veja que a imensa maioria da população, que não é indígena, ainda assim não possui os meios para decidir, de maneira informada, realmente o que seria melhor para ela. Isso não nos impede de "forçar-lhes guela abaixo", por assim dizer, as coisas que mencionei acima. Ninguém pergunta a uma comunidade "branca" pobre se ela gostaria de ter saneamento básico e educação à sua disposição - simplesmente presume-se que sim, o que é acertado. Por que com índios deveria ser diferente? Alguém pode dizer que os índios não escolheram fazer parte dessa nação, o que seria um non-sequitur - oras, na realidade eu também não escolhi fazer parte dessa nação, mas nem por isso me é dada a opção de decidir por não exercer o "direito" de votar, sob pena de perder o meu direito (esse sim) de liberdade de ir e vir (perder meu passaporte), por exemplo.
    Podemos muito bem preservar a cultura indígena como conceito, como idéia, sem condenar boa parte dos índios a continuar vivendo na Idade da Pedra por conta de algum ideal completamente desconectado da realidade, ou mesmo da ética vigente.

  13. Nikolas Ariyoshi disse:

    Não cheguei a ler todos os comentários... mas vou deixar minha contribuição, quer ela venha a ser realmente útil ou não.
    Me parece que mais um povo passou por esse exato mesmo processo. Os japoneses. Após a bomba nuclear, os japoneses viram-se derrotados e submetidos a uma cultura e um pensamento exterior.
    Apesar de assimilarem grande parte dos conhecimentos e pensamentos dos americanos, eles mantiveram boa parte de suas tradições e isso é possível notar pelas cidades.
    Então... minha resposta seria:
    Substitua qualquer pensamento ou crença que venha a contribuir mais para a sua sociedade. Se você ver que determinado modo de pensar seja mais eficiente e útil para os objetivos da sociedade, mude, caso não o seja, mantenha suas tradições. Afinal, qualquer civilização que tenha sobrevivido até os dias de hoje deve ter alguma a nos ensinar.

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