O Paradoxo da Homofilia

Não errei, não. Não quis me referir à doença hematológica que faz com que seu portador necessite transfusões de hemoderivados hemocomponentes frequentes. Vou, na verdade, falar sobre outra doença, essa talvez mais grave, mais prevalente, mais vil…

Por detrás da manchete, “apenas” mais um caso de agressão a  uma “bichinha”. Chamou minha atenção, o fato de o agredido trabalhar na área da Saúde. Talvez por essa razão, minha máquina de esquecer não tenha funcionado direito e remoí esse fato alguns meses até que uma outra estória me fez lembrar do que não tinha esquecido…

Como é de conhecimento dos poucos, porém altamente seletos leitores e leitoras deste blog, gasto ainda grande parte do meu tempo em unidades de terapia intensiva pelos hospitais da grande São Paulo. Tenho notado que a área da Saúde trata seus não-heterossexuais da mesma forma que outras áreas do mercado de trabalho “teoricamente” menos esclarecidas sobre as nuanças da sexualidade humana, a saber, com preconceito e violência. Tenho convivido com médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiros, fisioterapeutas entre tantos outros profissionais da área da Saúde, aberta ou veladamente homossexuais, e tenho uma estória para o caso específico do homossexual masculino, levemente efeminado, denominado vulgarmente de “bichinha”, por vezes com o escárnio da pronúncia dos “S” entredentes.

Um homem de 54 anos, empresário bastante bem-sucedido, em um passeio motociclístico de sábado de manhã, bastante comum atualmente na cidade de São Paulo, sofreu um acidente relativamente grave. Fraturas de costelas, traumatismo raquimedular (lesão da coluna vertebral), múltiplas escoriações. Foi para UTI. Com o famigerado colar cervical, intubado e necessitando de ventilação mecânica, logo se recuperou. Jovem, não tinha nenhuma doença crônica associada. Na célula que ficou internado na UTI, o técnico de enfermagem da manhã foi sempre o mesmo. Um pouco mais de 20 anos, bem menos que 30. Gay desses que não deixam dúvida, porém sem ser afetado ou escrachado demais. Pelo menos durante o trabalho. Pelo contrário, a forma e o carinho como cuidava do corpo inerte, por vezes malcheiroso e grande do paciente acidentado transmitia extrema competência. Transparecia a todo o momento o treinamento recebido. Costumo dizer que um profissional começa-se a avaliar pela forma como veste-se com o uniforme. Quem trabalha direito tem um relação com o traje de trabalho, acaba encontrando um jeito de arrumar a touca ou vestir o avental, de deixar os óculos de proteção (chamamos tudo de EPI – equipamento de proteção individual) de um jeito próprio. As mesmas atividades são feitas com elegância particular e tudo isso junto, faz com que admiremos o profissional no exercício de suas funções. Assim era o rapaz. Medicações, banhos, eletrocardiogramas, mudanças de decúbito, instalação das dietas, tudo feito corretamente, com zelo e segurança. O paciente melhorou, acordou, saiu do ventilador, sentou na cama, tirou a sonda nasoenteral para alimentação e começou a receber dieta oral, nos 2 ou 3 dias subsequentes. Cheguei um dia à UTI e o rapaz estava dando uma sopinha, às colheradas, ao paciente. Me postei diante da cama e fiquei observando, satisfeito. Tinha que examiná-lo e questioná-lo sobre dores, falta de ar, etc, mas como estava quase no final, resolvi esperar e apreciar aquele momento de pequena felicidade (dizem até que a vida é feita destas pequenas felicidades!). Ao perceber, o técnico de enfermagem começou a falar, com seus trejeitos característicos, de como ele estava melhor, levantando o ânimo do paciente. Ao terminar a refeição, ele saiu do quarto e eu fiquei a sós com o paciente. Tirei o estetoscópio da parede e antes de posicioná-lo nos ouvidos o paciente disparou: “Pô, Dr! Que é que essa bichona tá fazendo aqui?”

Me senti mal, mas não consegui responder nada. Limitei a dizer que ele tinha sido cuidado, durante quase toda a internação, por aquele rapaz e que ele era muito competente. Agora, com toda essa violência estampada nas páginas de sítios e jornais, me ocorre novamente essa estória de intolerância.

É esse o paradoxo da homofilia. Homossexuais masculinos costumam ter um olhar diferenciado para o cuidar. Amam a espécie humana – sem preconceito de gênero –  e aprendi a ver isso no meu trabalho, que, convenhamos, não é um parque de diversões. Peço a licença deste hibridismo, mas usei o homo- do latim que significa homem, anthropos (no grego), ser humano, junto com o sufixo grego –filia, afinidade por, gostar de, amar; e não o homo- grego (igual, o mesmo) pela exata força do trocadilho e pela estranheza que a expressão gera. Estranheza que me causa o fato de não entender como pode ser possível um homossexual que sofre um preconceito diuturno, eternas gozações e piadas de mau gosto, bullyings, agressões verbais ou físicas da sociedade em que está inserido, possa demonstrar um amor tão verdadeiro e engajado pela mesma espécie (Homo) que o maltrata. Paradoxo afetivo-linguístico, sem dúvida. Sem dúvida, um caso de homoafetividade.

Discussão - 11 comentários

  1. Não sei se chegam a amar a humanidade em uma frequência maior do que membros de outros grupos.

    []s,

    Roberto Takata

  2. Rudolf disse:

    Penso sempre que esse tipo de violencia denegritiva é uma forma de uma uma pessoa frustrada se sentir melhor com ela mesma visto que a outra está numa posicao inferior. É um consolo (em duplo sentido).

    • Mariana disse:

      Creio ser apenas uma limitação, como aquela pessoa que não tem as pernas está limitada e não pode sair correndo, uma pessoa preconceituosa não tem mais o que dar, não consegue fazer melhor, embora tenha sua vida toda pela frente para evoluir e sair desse limbo.

  3. Rudolf disse:

    Imagino que é sim possível que alguém escolha esta profissao por amor a humanidade, mas nao creio que seja o motivo mais comum. No caso do homossexual, um motivo que provavelmente possa ter influenciado mais sua escolha profissional seja o fato de que enfermagem é uma profissao comumente associada ao sexo feminino.

  4. Antonielle disse:

    Mas Karl, porque você diz o homossexual masculino? E o feminino? Acredito que esse olhar diferenciado para o cuidado independa do sexo ou da opção sexual.

  5. Fabio disse:

    Muita polêmica nessa hora. Estamos de acordo sobre o quanto estereótipos desfavoráveis são nocivos, mas o que pensar de estereótipos favoráveis? "Homossexuais masculinos são mais dedicados e atenciosos". E agora?!
    "Negros são melhores atletas", "Judeus tem mais tino comercial", "Asiáticos tem melhor desempenho acadêmico" etc etc

  6. Rick disse:

    Acho válida a colocação do Takata, vejo tantos heterossexuais que dedicam sua vida ao próximo quanto homossexuais misantropos. Creio que nesse ponto a opção sexual não tenha muita influência, ou você nunca recebeu alguém agredido por homossexuais no hospital, eles não costumam ser muito delicados nessas horas. Como todo mundo.

    Rudolf, não vejo essa associação positiva de "profissão de mulher", tudo bem, na faculdade boa parte dos homens que faziam enfermagem pareciam homossexuais, mas não era unanimidade, tanto que havia uma espécie de isolamento homo/hetero.

    Antonielle, talvez a mulher homossexual não sofra tanto preconceito, mas percebo menos isso, até mesmo o pejorativo "sapatão" está sumindo, ao passo que para o homossexual masculino parecem fervilhar novas formas de humilhação verbal. Observe que os "gays" são motivos frequente de piadas, fácil de observar por tantos humoristas que fazem quadros transvestidos, mas na minha memória faltam exemplos de "lésbicas" do humor.

  7. Karl disse:

    @Takata. Que já amem é quase um milagre.

    @Antonielle. Concordo. A estória é sobre um masculino. Homossexuais masculinos venceram o preconceito de dar banho em homens, por exemplo. Talvez isso nem tenha passado na cabeça das mulheres, independente da opção sexual.

    @Fábio. Excelente comentário. Aguardo polêmica, hehe.

    @Rick e Rudolf. Há profissões de predomínio feminino sim. Há alguns anos, um artigo em uma revista de urologia europeia comentava o fato de que a medicina estava virando uma profissão feminina e quais seriam as consequências disso. A enfermagem é um exemplo disso. Não tenho estatísticas para demonstrar se a incidência de homossexuais masculinos na profissão de enfermeiros é maior que a população normal. Entretanto, isso quer dizer apenas que esses rapazes sofrem de preconceito duplamente, sendo ou não, homossexuais, o que é lamentável em dobro.

    Eu me referi a um tipo de homossexual masculino bastante específico, Rick. Tais pessoas, como qualquer pessoa normal, têm seus dias de fúria, mas a violência física não é um atributo comum. Talvez vc tenha confundido com outros tipos que sofrem violência nas ruas por sua aparência espalhafatosa e que reagem, também, violentamente. Exceções, de qualquer forma.

    Por fim, não vejo muita diferença nas piadas entre os tipos de homossexualismo. De qualquer forma, se isso for verdade é apenas mais uma prova de que o mundo é machista.

    Obrigado por todos os comentários.

    @

  8. Rudolf disse:

    O mundo está mudando muito! As mulheres estão passando a ser maioria em muitas profissões e mesmo em profissões tidas como masculinas a quantidade de mulheres é crescente. Existem muito mais mulheres fazendo doutorado que homens. Em 15 a 20 anos a maioria dos professores universitários serão mulheres. A emancipação de verdade está acontecendo agora. Na emancipação da metade do século XX participaram mulheres que foram educadas numa cultura de diferença. Já uma grande parte da minha geração cresceu em escolas mistas, com regras familiares iguais para os filhos e as filhas. Para a nossa geração a participação geral das mulheres em qualquer profissão é algo natural. Para os mais velhos, que ocupam cargos profissionais mais altos a coisa ainda é diferente.

    Tenho uma curiosidade. Vocês profissionais da saúde já devem ter atendido feridos de brigas passionais em prontos socorros. Imagino que a briga entre um casal homosexual masculino seja algo super violento. Na briga hetero normalmente o homem bate na mulher e ela como mais fraca não tem muito o que fazer e a briga termina. Num casal de homens o cara deve se defender e a briga vira uma rinha de luta livre. É assim mesmo?

    • Karl disse:

      Hehe. Olha, Rudolf, eu nunca atendi nenhuma briga desse tipo. Atendi exatamente o contrário. Uma mulher que sentou o pau no marido manguaça. Foi uma surra daquelas e o "pobre coitado" ficou bem machucado. XD

  9. Mariana disse:

    Achei excelente! realmente aqueles que sofrem muito por suas escolhas, são aqueles que têm inteligência para mantê-las, coragem para usar da liberdade de expressá-las e consequentemente, não se indispõe com os demais, reserva-se ao direito de amá-los o que inclui entende-los, compreender que os males que provocam são oriundos de suas limitações.

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