Coagulação e Defesa

É conhecido o fato de que sistemas bastante específicos presentes nos mamíferos se mostrem rudimentares – e frequentemente com outras funções – em animais mais antigos na “escala filogenética evolutiva”, um fenômeno chamado de exaptação. Um exemplo que eu gosto de usar é o da bexiga natatória dos peixes que acabou funcionando como pulmão “mais tarde”. Contar esse tipo de história é sempre muito bom porque nos ajuda a entender uma série de fenômenos “inexplicados” além de nos oferecer insights para propor novas teorias sobre o funcionamento dos organismos e, no caso específico da ciência médica, a criar formas de intervir nas doenças.

Nos últimos anos, a coagulação humana vem sofrendo um repaginada radical. São modificações de uma teoria que não deu conta de explicar a coagulação em uma série de situações, em especial, a do paciente que sofre de cirrose hepática. A coagulação é uma cascata, tipo efeito dominó, de pré-enzimas e enzimas e que catalizam a formação de outras enzimas que, ao fim e ao cabo, transformarão a protrombina em trombina. A trombina polimeriza a proteína fibrilar chamada de fibrinogênio transformando-a em sua forma reticular chamada de fibrina. Esta rede segura células e tudo o mais do sangue formando o coágulo (ver figura ao lado).

Classicamente, os pacientes cirróticos eram considerados hemorrágicos em potencial, dado que a grande maioria das enzimas da coagulação – chamadas de fatores – são produzidos pelo fígado. De fato, o paciente portador de insuficiência hepática crônica (cirrose) tem várias situações clínicas nas quais pode sangrar abundantemente, pondo sua vida em risco. O que a teoria não explicava é que os cirróticos podiam apresentar, não infrequentemente, eventos trombóticos, aqueles nos quais o sangue coagula no interior de vasos, sem uma razão aparente. Como, se fatores são faltantes e o indivíduo apresenta uma tendência “natural” a sangrar?

Em 1964, dois grupos independentemente publicaram um artigo na Nature e um na Science propondo a sequência de ativações que originou a cascata em formato de Y, com as vias intrínseca e extrínseca, da forma como a utilizamos até hoje.

O problema todo é que esses esquemas (veja vários aqui) foram propostos para situações in vitro, ou seja, de laboratório. Nenhum dos esquemas, é incrível!, tem uma única célula desenhada. Como pode qualquer coisa dentro de um organismo multicelular ocorrer a revelia das células? No entanto, eles têm sido utilizados pelos médicos para entender a coagulação humana e, pior, para tratar seus distúrbios e também predizer se um indivíduo apresentará ou não um sangramento importante durante uma cirurgia, por exemplo.

Foi então, que Maureane Hoffman e Dougald Monroe III propuseram a Teoria Celular da Coagulação em 2001. Essa abordagem dá conta de explicar fenômenos nos cirróticos porque chama a atenção para outros mecanismos de compensação presentes nesses pacientes, tão importantes quanto os próprios fatores de coagulação, no sentido de preservar a hemostasia (capacidade de não sangrar até a morte em resposta a traumas banais).

A Teoria Celular da Coagulação me chamou a atenção para a semelhança entre coagulação e imunidade celular e eu descobri algumas coisas bastante interessantes que ficarão para o próximo post.

HOFFMAN, M., & MONROE, D. (2007). Coagulation 2006: A Modern View of Hemostasis Hematology/Oncology Clinics of North America, 21 (1), 1-11 DOI: 10.1016/j.hoc.2006.11.004

Discussão - 11 comentários

  1. Rick disse:

    Karl deixou a postagem com jeito de novela, agora vou ficar na expectativa do próximo post.

  2. Tu vai me xingar, mas... não existe "escala filogenética". Há a escala aristotélica da vida - contrabandeada na noção de "escala evolutiva". Mas a análise filogenética é um dos resultados do esforço consciente de *expurgar* a ideia de escala. Tanto é que uma das bases de Hennig na construção da metodologia filogenética foi eliminar todo grupo que não fosse monofilético (não fosse formado pelo ancestral e todos os seus descendentes): a ideia de grado (que é a que a escala remete) é espúria à filogenia.

    É também equivocado falar em animais mais antigos no caso de espécies com representantes atuais. No máximo, pode se invocar uma divergência (entre grupos A e B) mais antiga do que a divergência entre outros grupos (B e C ou C e D).

    []s,

    Roberto Takata

  3. Ah, e a homologia entre bexiga natatória e pulmões também ainda não é consensual:
    http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S109564330100304X
    -------------

    Alguns, entre os quais se incluía o finando Stephen J. Gould, baseados na interpretação da anatomia de alguns actinopterígios fósseis consideram uma relação invertida: bexigas natatórias seriam pulmões modificados - ao menos na linhagem que deu origem aos sarcopterígios.

    []s,

    Roberto Takata

    • Karl disse:

      Takata, *jamais* te xinguei (no máximo de corintiano, ok, ok).

      Vou te fazer algumas perguntas, por favor considere-as sinceras.

      1. Eu usei um exemplo clássico de exaptação. Você poderia citar outro que não fosse controverso? Eu poderia substituir pelo que utilizei desde que seja 100% aceito.
      2. Estou ciente das dificuldades dos conceitos de "escala filogenética" assim como o de animais "mais evoluídos" em se encaixar na biologia moderna. Entretanto, é uma ideia útil para explicar o conceito de exaptação ou cooptação. Como é um caminho não original meu e trilhado por outros, caso eu os coloque entre aspas aliviaria?
      3. Há animais que estão há mais tempo na Terra que outros ou não? Se sim, como utilizar o termo "primitivo" ou "antigo" (como usei) de forma correta para eles?
      4. Qual seria o conceito que é a condição de possibilidade da biologia comparada?
      5. Foram 2 comentários sobre o 1o parágrafo. Nada sobre o restante?

      Obrigado por todos os comentários.

  4. 1. Controvérsia é o que mais tem na narrativa da história de evolução de estruturas orgânicas. Mas podemos falar da pena das aves: elas estão presentes em dinossauros que certamente não voavam. Não se sabe exatamente qual função desempenhavam inicialmente - se termorregulatória, p.e. - mas sua modificação como estrutura aerodinâmica foi posterior a isso certamente.

    2. Aliviaria - e ainda assim pouco - se fosse "escala evolutiva" entre aspas. Porém meu trabalho de pentelho purista é sugerir o abandono completo do termo. Alguns falam em grupos basais, mas mm isso passa um conceito errôneo sobre padrões e processos evolutivos. Gastaria algumas palavras a mais dizendo: "em animais representantes de grupos de ramificações mais basais (ou de divergência mais antiga)" -, se necessário, colocando uma nota explicativa (ou um link pra um texto com mais detalhes).

    3. Até há, mas não por muito mais tempo. Uma espécie das mais antigas com representantes atuais não deve ter muito mais do que 10 milhões de anos. Para organismos atuais eu não usaria o termo "primitivo", reservaria o termo para me referir a "características" que conservam a forma ancestral (em oposição a características modificadas - "derivadas"). Poderia falar em organismos que conservam muitas características primitivas (mais precisamente: conservam estados primitivos de características).

    Vamos considerar o desenho de Darwin: http://heyhowboutya.files.wordpress.com/2010/04/darwin_divergence.jpg
    No nível 14(XIV) estão todas as espécies atuais. Consideremos somente os descendentes do A original. No nível 1 temos dois representantes da divergência de A: a1 e m1. Façamos de conta que a1 representa o ancestral dos deuterostomados (grupo que nos inclui, bem como a estrelas do mar e outros) e o m1 o do grupo dos protostomados (grupo que inclui insetos, moluscos e outros). No nível 6, temos uma divergência de a5: a6 e f6. Digamos que a6 representa o ancestral dos sinápsidos (grupo que inclui os mamíferos) e o f6 representa o ancestral dos répteis (incluindo aves, crocodilos, lagartos...). Digamos que o a14, q14 e p14 representam espécies atuais de mamíferos (p.e. humanos, cangurus gigante e ornitorrincos) - todos descendentes do a10; b14 é um papagaio e f14 uma tuatara (descendentes do f10); o14 (besouro serra-pau), e14 (aranha marrom) e m14 (lula colossal), vindos de m10.

    Não dá pra falar que m14 é mais primitivo do que a14. Mas dá pra falar que a1 é mais primitivo do que a14. Dá pra falar que m1 é mais primitivo do que a14? Aí é preciso muita cautela.

    4. Não entendi bem a pergunta.

    5. Sobre o restante, a parte central do post, não tenho nenhuma observação. Só corroborar o comentário do Rick.

    []s,

    Roberto Takata

    • Karl disse:

      1. As penas estão no nível da bexiga natatória como exemplo nos lugares que li (se bem que não foram muitos, é verdade). Com sua licença, vou manter o exemplo.
      2. Troquei mas mantive a analogia. Aguardo uma forma mais didática de explicar a exaptação.
      3. "Uma espécie das mais antigas com representantes atuais não deve ter muito mais do que 10 milhões de anos." Que dizer de um bicho que os biólogos acham que está perambulando por aí, inalterado, há 100 milhões de anos? Não acho isso impossível, vc acha?
      4. A pergunta é como pode surgir um ramo da ciência chamado de "biologia comparada" se não conseguimos abstrair algumas coisas entre forma e função?

  5. 1. No caso da pena há bem menos discussão a respeito da homologia com a penugem dinossáurica.
    2. A exaptação é apenas a evolução de uma nova função para uma estrutura que no ancestral desempenhava uma função diferente. O nó está é no uso de espécies *atuais* como sinalizador da condição ancestral (a chamada polarização do caráter por meio de grupos externos).
    3. Acho bastante improvável uma espécie de 100 milhões de anos inalterada - não por outra coisa pelas mudanças radicais do meio ambiente (isso sem contar com efeitos de deriva e pressão de mutação). O que se têm são espécies atuais que *morfologicamente* se *assemelham* muito a espécies fósseis bem antigas, essas q são geralmente denominadas de fósseis vivos. Mas não há nenhuma garantia de que suas características fisiológicas e comportamentais não tenham se alterado.
    4. Não sei se entendi. Mas envolvem conceitos como homologia, analogia, divergência e convergência adaptativas.

    []s,

    Roberto Takata

  6. ChicoPinto disse:

    Espero ansiosamente pelo próximo post.

    Valeu, Karl!!

  7. Sibele disse:

    Que lindo, Karl e Roberto confabulando elegantemente sobre as incríveis questões científicas levantadas nesse post! (bom, só sobre o primeiro parágrafo, mas né?).

    Dois perfeitos gentlemen! Uma finesse! Senti o clima das grandes sociedades científicas! 😀

  8. Sibele disse:

    E também tenho uma pergunta sobre as questões levantadas nesse post. Mas vou esperar o próximo capítulo da novela! o/

  9. [...] também Coagulação e Defesa e Coagulação e Defesa [...]

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