A Autópsia de Gaddafi

A morte do ditador líbio vem causando furor nos meios de comunicação e não era para menos. Longe de querer revisar todo o papel político de Gaddafi e o que representa seu assassinato por forças militares ocidentais nessa eterna cruzada que teima em não terminar – pelo amor de Deus! – gostaria de chamar a atenção para a posição que uma possível autópsia em seu cadáver está adquirindo na opinião pública mundial.

Muamar Gaddafi. Lider líbio morto essa semana.

Em primeiro lugar, é preferível o termo autópsia a necrópsia, mas ambos são aceitáveis. Segundo, que, na sociedade ocidental atual, o número de autópsias clínicas vem caindo vertiginosamente enquanto que o número de autópsias médico-legais aumenta (ver aqui e aqui). Podemos chamar de autópsias clínicas aquelas em que a equipe médica tem interesse em descobrir a doença ou evento que causou a morte do paciente. Isso era bastante comum em hospitais-escola e as salas de autópsias eram um local de grande aprendizado. Era possível observar o grau de acometimento hepático em um quadro de insuficiência cardíaca, por exemplo, “ao vivo” e à cores, o que nem sempre era agradável. A integração dos orgãos e a forma como se comportam frente a uma doença é, talvez, uma das melhores formas de “raciocínio integrativo”, tão em falta na medicina hoje. As autópsias médico-legais são aquelas que visam descobrir como alguém foi assassinado e sob quais condições. Essas têm aumentado e até se transformado em séries de TV (CSI, por exemplo).

Chamo a atenção para dois fatos. Dado que Gaddafi aparece em um vídeo, capturado e vivo, e, depois em um outro vídeo, já morto, faz levantar fortes suspeitas de que tenha sido assassinado em cativeiro. Péssimo se for verdade. Segundo, uma pergunta: a quem interessa ou não interessa a autópsia de Gaddafi? É uma autópsia médico-legal, sem dúvida. Dessas que o mundo está fazendo cada vez mais. Há quem não queira a autópsia dos dois lados da guerra, perdedores e vencedores. Os perdedores têm medo de macular o corpo de um líder quase divino da Líbia. Os vencedores têm medo de quê?

A ideia de que a autópsia possa macular o corpo (e talvez o espírito) de alguém é muito forte. Há religiões que proibem a violação do cadáver, como a judaica. No Brasil, a demora na realização do procedimento e a desfiguração do corpo são os principais argumentos. Esta última, não se justifica absolutamente porque os procedimentos são realizados de forma a não causar nenhum tipo de mutilação visível. Quanto à demora e o atraso nos funerais, sou obrigado a concordar.

Gaddafi foi assassinado, provavelmente não em consequência de uma resistência à prisão e seu corpo está exposto em um frigorífico onde as pessoas (inclusive crianças) podem entrar e fotografar. Imagens detalhadas com orifícios de armas de fogo foram divulgadas na rede. Gaddafi já foi autopsiado. É mais um caso de autópsia moral que tem o corpo foucaultiano como palco dos poderes que se nos perpassam. Isso faz muito mal à autópsia como procedimento médico. E, por isso, faz mal à medicina; e sendo a medicina uma forma de humanidade, para a humanidade, em geral, faz muito mal também.

Discussão - 1 comentário

  1. Fabiana disse:

    Crucificações. Esquartejamentos. Degolas. Exposição pública de cabeças decepadas, ou de outros membros do corpo. Canibalismo.
    Não são corpos. São troféus de guerra, Karl. E não são autópsias. São violações de cadáver. Não te parece assim?
    "Deus" é só a desculpa plausível da barbárie. A questão é mesmo poder. O grito primal do vencedor, o urro bestial do "mais forte". Bestiário geral, e globally broadcasted live.
    Não tem nada a ver com medicina, não... Medicina é vida! Só se apropriaram da palavra - e do processo? - da "autópsia" pra "legitimar" de racionalidade científica essa nossa animalidade patente e indigesta.
    A massa come Gaddafi, a gente come Gaddafi. Pelos olhos.
    Triste, né? Eu fico. 🙁

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