Coagulação e Defesa III

(Veja também Coagulação e Defesa e Coagulação e Defesa II)

As relações entre o sistema da coagulação e a imunidade são antigas, remontando aos primórdios da vida na Terra. Parece ser “evolutivamente econômico”, ao menos de um ponto de vista teleológico, um sistema acumular múltiplas funções em seres primitivos. A especialização posterior das funções é uma característica da complexidade. Em humanos, as funções da coagulação e do sistema imunológico eram consideradas separadas e estanques, cada um cuidando de situações específicas que poderiam colocar a vida do organismo em risco, a saber, evitar sangramentos abundantes após traumatismos e defender o organismo contra invasores, respectivamente. Cada um no seu quadrado. Até agora, pelo menos.

Em um artigo publicado há alguns meses na Blood, Loof e colegas mostraram, pela primeira vez, que o sistema de coagulação de humanos pode, sim, ter uma função na defesa contra a invasão de bactérias. Os autores usaram cepas de Streptococcus pyogenes, uma das bactérias “assassinas” de que a imprensa gosta tanto de falar pela sua capacidade de penetrar nos tecidos (ver figura abaixo) e ratos normais e modificados geneticamente (ver abaixo) em banhos de plasma humano para testar a capacidade de defesa das proteínas relacionadas à coagulação.

Esquerda: Bactéria sem o ativador de plasminogênio (AP). Direita: Com o AP. Dissolve o coágulo, invade o tecido e a corrente sanguínea. Modificado de Hongmin Sun. Physiology 21:281-288, 2006.

Já era conhecido o fato de que a capacidade de invadir tecidos do S. pyogenes é dependente da produção de uma substância anticoagulante (chamada de ativador do plasminogênio), mas estudos iniciais não mostravam uma ativação da coagulação claramente. Os autores suspeitaram da falta de alguns “ingredientes” (cálcio e fosfolípides) importantes para iniciar a cascata. Acrescentaram os ingredientes e viram que a “inflamação” causada pelo S. pyogenes era capaz de deflagrar a coagulação nos ratos normais. Feito isso, tomaram ratos modificados geneticamente para não produzir um fator específico da coagulação: o fator XIII. O fator XIII merece uma consideração especial. É uma transglutaminase.

As transglutaminases são enzimas que apareceram precocemente na história dos seres vivos neste planetas e faço aqui um parênteses que o(a) leitor(a) vai perdoar. Elas são enzimas que catalisam uma ligação covalente entre um grupamento amina (normalmente de um aminoácido lisina) com um grupo gama-carboxamida (normalmente da glutamina). O que há de interessante nessa ligação é que ela é altamente resistente à proteólise, ou seja, digestão. As transglutaminases são utilizadas em processos industriais para “juntar” proteínas, por exemplo, coisas “com gosto” com coisas “com consistência”, o exemplo mais conhecido o kani (bastão com gosto de carne de caranguejo) entre outras “engenharias” culinárias. No corpo humano, servem para “juntar” cabelo, pele e, veja só, fazer coágulo! Aliás, as transglutaminases foram descritas no longíquo ano de 1959, mas sua atividade biológica apenas em 1968, através do estudo de quem? Rá! Do fator XIII! A comprovação de sua idade é sua presença no caranguejo-ferradura, participando de seu processo de coagulação.

Feito o (grande, mas interessante, vai) parênteses, voltemos ao nosso estudo. Os autores então, dizia, pegaram ratos sem o fator XIII e, ao infectá-los com o S. pyogenes banhados em plasma humano viram que a infecção no pobre roedor era bem mais grave. A figura abaixo carece de uma explicação minuciosa.

Retirado da referência abaixo. Para explicações, veja o texto.

Essas fotos são micrografias eletrônicas que mostram a estrutura de coágulos gerados a partir de plasma normal (A,C,E) ou de plasma com deficiência de fXIII (B,D,F) na ausência de bactérias (de A a B) ou na presença delas (de C a F) (Veja as “bolinhas” no meio da rede). G, H e I são bactérias com marcadores específicos que serviram para validar o método. A e B, portanto, mostram a diferença do coágulo com e sem o fator XIII. C e D mostram que uma “segura” os invasores, a outra, não. E e F são closes de C e D. É a primeira vez que esse efeito foi demonstrado de forma tão clara e elegante.

Uma resposta imunológica eficaz depende da identificação e da eliminação rápidas dos invasores. Há exemplos destes mecanismos para materiais inalados e ingeridos. As feridas são outra porta de entrada importante e a tentativa de retardar a progressão das bactérias envolvendo-as em uma rede gelatinosa até que “soldados” (neutrófilos) e “tanques de guerra” (macrófagos) cheguem é muito interessante, além de parecer ter sido selecionada evolutivamente. Um exemplo clássico de fisiopatologia que a evolução ajuda a esclarecer. Uma das transglutaminases humanas, o fator XIII, funcionou plena e surpreendentemente em camundongos e é praticamente indistinta da enzima de um bicho de quase 100 milhões de anos (caranguejo-ferradura). Sinal dos tempos. Cicatrizes de luta ancestral.

ResearchBlogging.orgLoof, T., Morgelin, M., Johansson, L., Oehmcke, S., Olin, A., Dickneite, G., Norrby-Teglund, A., Theopold, U., & Herwald, H. (2011). Coagulation, an ancestral serine protease cascade, exerts a novel function in early immune defense Blood, 118 (9), 2589-2598 DOI: 10.1182/blood-2011-02-337568

Discussão - 6 comentários

  1. Sibele disse:

    Muuuito interessante mesmo, Karl!

    Mas diga-me, e os cirróticos citados no Episódio I?

    "[...] os cirróticos podiam apresentar, não infrequentemente, eventos trombóticos, aqueles nos quais o sangue coagula no interior de vasos, sem uma razão aparente."

    • Karl disse:

      Parece que foi respondida lá mesmo, não?

      "Essa abordagem dá conta de explicar fenômenos nos cirróticos porque chama a atenção para outros mecanismos de compensação presentes nesses pacientes, tão importantes quanto os próprios fatores de coagulação, no sentido de preservar a hemostasia[...]"

  2. Breno disse:

    Essa série sobre coagulação ainda vai aparecer em algum livro texto de medicina. Ou, mesmo, em alguma prova de universidade ai pelo Brasil. Parabéns.

  3. Sibele disse:

    "[...] não?"

    Não!

    Cadê os tais "outros mecanismos de compensação presentes nesses pacientes, tão importantes quanto os próprios fatores de coagulação, no sentido de preservar a hemostasia[...]“, segundo a "Teoria Celular da Coagulação" de Hoffman & Monroe?

    Entendo que essa série procurou abordar as relações entre coagulação e defesa, como o próprio título diz. E ficou mesmo sensacional - parabéns!

    Mas estou com uma dúvida de *leiga*, Doutor. Quais seriam esses outros mecanismos de compensação apresentados pelos cirróticos e (ah sim, minha pergunta, que devo desde a série I) porque eles não são válidos para, por exemplo, os hemofílicos? E veja, refiro-me apenas à hemostasia, não à defesa.

    • Karl disse:

      Muito bem, Srta Fausto. Vamos as suas dúvidas.

      Os outros mecanismos de compensação que os cirróticos lançam mão para não morrerem sangrando - e que frequentemente não são suficientes para evitar isso - são aumento do fator de von Willebrandt e diminuição das proteínas C e S. O primeiro é pró-coagulante e as segundas são anticoagulantes, o que obviamente foi possível inferir pelo contexto. Entretanto, essas descobertas só fizeram sentido quando autores que há muito tinham uma pulga atrás da orelha em relação ao status hemostático dos cirróticos utilizaram a teoria celular da coagulação para entender as reações em cascata e explicar as alterações verificadas nestes pacientes.

      De fato, a raison d'etre do post é a relação suspeita, mas não comprovada até então, entre os sistemas imunológico e da coagulação. Há muito mais pontos de contato e a unificação dos dois para a medicina é quase como quando Maxwell unificou os campos de força elétricos e magnéticos. Não que a medicina vá em busca de uma teoria de tudo - nós somos muito mais humildes que os físicos - mas há unificações possíveis. A medicina evolutiva é um caminho para isso.
      Obrigado pela pergunta.

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