Religiosidade e Ética Científica

A pergunta do post anterior tem uma razão de ser. Foi publicado um artigo no New England (pdf gratuito, ver também a referência na “medaglia” abaixo) traçando um paralelo entre os países da Europa e os Estados Unidos quanto a postura em relação a pesquisas com células-tronco. O artigo categoriza as populações de entrevistados de acordo com políticas públicas de financiamento em cada país, preferências políticas (em especial nos EUA, onde a divisão republicanos vs. democratas permite uma visualização mais fácil do problema) e religiosidade.

Olhando os números mais de perto, 60% dos americanos entrevistados são a favor de pesquisas com células-tronco e 30% acham que ela devia ser proibida, mesmo que isso custasse um atraso no tratamento de algumas doenças. À pergunta “você acha que a pesquisa com células-tronco deveria ser proibida?” 71% dos islandeses responderam “não” e 25%, “sim”, o maior índice de aceitação. Já a Áustria teve 33% “não” e 60% de “sim”, respectivamente, a maior rejeição. A divisão de partidos políticos mostrou nos EUA, que os republicanos, mais conservadores, são a favor da pesquisa em 52% e que ela não deve ser proibida em 51%. Quando comparados com os democratas, mais liberais, 67% deles são a favor. O artigo ainda envereda pela questão se o governo deveria financiar tal tipo de pesquisa e as respostas seguem mais ou menos o mesmo padrão. O que eu queria chamar a atenção aqui era mesmo sobre a religiosidade e a aceitação da pesquisa com células-tronco. Mas antes, um pequeno parêntesis.

Ao analisarmos 2 eventos sequenciais, por exemplo, uma borboleta esvoaçar pelo meu jardim e ocorrer um terremoto na Tailândia, 3 situações podem ocorrer: 1) A borboleta causa o terremoto; 2) A borboleta não causa o terremoto e 3) Não faço a menor ideia se ela causa ou não a porcaria do terremoto. A terceira em geral, é a grande maioria das respostas. Mas, se quisermos “dominar” a natureza precisamos saber se um evento causa ou não o outro. Para demonstrar as duas primeiras é preciso estabelecer uma relação de causa-efeito (#1) ou de não-causa-efeito (#2). Colocado assim, de forma bastante simplista, esse é um dos principais objetivos da ciência: estabelecer relações de causa-efeito. Há inúmeras maneiras de se conseguir isso. Em medicina temos várias limitações e muitas vezes utilizamos uma “metafísica” chamada Estatística para nos indicar um caminho. Outra maneira, e talvez uma das mais elegantes, seja encontrar um tipo de relação entre um evento e outro que pode ser chamada de “curva dose-resposta” (tem outros nomes, eu chamo assim, porque aprendi assim na farmacologia). Nessa relação, toda vez que aumentamos a intensidade de um evento desencadeador, temos um aumento do evento desencadeado (dentro de uma certa faixa). Posto isso, podemos observar a tabela do artigo em questão que coloquei abaixo.

Com todas as críticas possíveis e imagináveis em se categorizar um troço totalmente arbitrário como religiosidade no número de vezes em que se vai a um culto, temos aqui um exemplo da tal “curva-dose resposta”. Quanto maior a frequência em que uma pessoa vai a um culto, maior a chance de achar que a pesquisa com células-tronco deva ser proibida em seu país. Religiosos graduados em “nunca vou ou vou 1 vez/ano”, “vou mensalmente ou anualmente” e “vou semanalmente ou mais” respondem “proibir” na Europa em 33, 41 e 49%; nos EUA em 18, 33 e 40%, respectivamente.Enquanto que os “sem-religião” ficam em 29% e 18% na Europa e EUA, respectivamente.

O que essa pesquisa demonstra? Que a religiosidade (definida nos termos do artigo), nos países estudados, gera uma certa aversão à pesquisas científicas com embriões humanos mesmo que isso custe um atraso no desenvolvimento de tratamentos para algumas doenças como traumatismos raquimedulares. A pergunta que se segue é: Por quê?

A busca de outras fontes de eticidade que não a de cunho eminentemente metafísico, dependente de conceitos como “criador”, “força maior” ou “Deus”, etc, e, principalmente, de uma crítica sobre a maneira como tais conceitos são manipulados pelas diversas formas de religiosidade, é fundamental para a construção de uma ética laica que, por sua vez, fundamentará decisões em comissões de ética, conselhos de pesquisa e outros orgãos de extrema importância para quem quer fazer pesquisa séria e de boa qualidade. As diferenças entre decisões de pessoas religiosas e não-religiosas devem ser melhor estudadas se quisermos uma ética consensual. Do meu lado, em que pese o papel importante que a religião possa ter desempenhado como guardiã da ética, permitir que pessoas sofram de doenças potencialmente curáveis em detrimento a um blastocisto que iria para o cesto de lixo é de um obscurantismo incompreensível.

 

ResearchBlogging.orgBlendon RJ, Kim MK, & Benson JM (2011). The public, political parties, and stem-cell research. The New England journal of medicine, 365 (20), 1853-6 PMID: 22087677

Discussão - 15 comentários

  1. Karl, bom post, acho que a acurva dose resposta é bem melhor que a simples correlacao.
    Eu explicaria os resultados assim:
    Os religiosos defendem o principio etico de que as vidas sao sagradas, em especial a vida humana. Sagrado significaria que elas estariam acima de consideracoes pragmatgicas ou utilitaristas.

    Ou seja, nao usam a etica utilitarista secular onde se pode sacrificar um ser humano desde que se salve dois, a la Singer (filosofo que considero interessante).

    Ou seja, se usa o conceito (talvez falacioso) de rampa deslizante a fim de prevenir os descambos do Darwinismo Social do inicio do seculo XX, que foi um grande trauma etico. Ou seja, me parece que essas posicoes, especialmente das Igrejas, se refere ao combate ao Social Darwinismo (inclusive o Criacionismo surgiu no seculo XIX como forma de combater o Social Darwinismo que dizia que os pobres e os negros eram inferiores - o Criacionismo naquela epoca era uma bandeira politica de esquerda, afirmando que todos eram iguais por serem filhos do mesmo Pai, de modo que nao haveria raças humanas superiores ou inferiores).

    Acho que ajudaria o dialogo entre cientistas e religiosos se nós cientistas esclarecessem que sao Darwinistas mas nao sao Social Darwinistas (embora eu sei que existe uma fracao grande de cientistas que sao social darwinistas na pratica). Ou seja, é necessária uma explicita e contundente rejeição do Darwinismo Social, algo que nao tenho encontrado muito nos blogs de ciencia Darwinistas.

    Voce conheceria algum post de critica do Darwinismo Social que eu pudesse usar como referencia?

  2. Agora percebi que tenho o tique ou mania de escrever "Ou seja". Também tenho a mania irritante de falar "Concorda?", quando na verdade o outro participante do dialogo nao concorda... rs Mas vc concorda que os blogs de ciencia deveriam ser mais enfaticos na rejeicao do Darwinismo Social, sem se preocupar se isso dá municao para o Inimigo?

  3. A expressão "um simples blastocisto" já trai a aceitação anterior de que o embrião não é um ser humano com pleno acesso ao direito à vida.

    Muitos dos que são favoráveis à pesquisa com células-tronco embrionárias e acham a posição contrária obscurantista são também contrários à pesquisa com animais fofinhos. Não que seja um contrassenso completo, mas encerra aí alguma ironia (especialmente do ponto de vista dos que acham q uso de embriões humanos em pesquisa deve ser vedado).

    .[]s,

    Roberto Takata

  4. Rudolf disse:

    Nós humanos somos muito estranhos, com nossas crenças e códigos de ética. No fim, os laicos também são pregadores e também são controversos. Visto isso, os laicos iluministas percebem que estão frequentemente traindo seus ideais.

    Fiquei espantando pelo nível de aceitação que os religiosos possuem com a pesquisa de celulas tronco de embriões. Tinha uma imagem em que a aceitação era muito menor. Outra coisa que me espantou foi o fato de haver menos aceitação na Europa onde nós brasileiros acreditamos ser mais progressista que os EUA.

  5. Frederico disse:

    Interessante o texto, mas vale algumas correções. No começo você está discutindo células tronco e no final você fala de pesquisa com embriões, que são coisas diferentes, apesar de que em algum momento uma poder levar a outra.
    Por exemplo, a Igreja Católica incentiva a pesquisa de células tronco adultas (http://noticias.terra.com.br/ciencia/noticias/0,,OI5462650-EI8147,00-Vaticano+incentiva+pesquisa+com+celulastronco+adultas.html).
    Por outro lado, ela é não aceita pesquisas de qualquer espécie com embriões, por considerar o embrião uma vida humana, o que de uma forma bem simplista seria o mesmo que fazer as experiências que o Hittler fazia com os Judeus, com a diferença de o Embrião não conseguir gritar.
    A imagem que você mostra tem a ver com pesquisas com Embriões, não necessariamente com células tronco.
    Abs,
    Fred

  6. Lucia Malla disse:

    Um dos pontos de discussão da aula de ética q comentei no post anterior sobre uso de embriões para pesquisa foi exatamente o quanto o posicionamento sobre o uso de embriões para pesquisa tem um componente cultural, muito além da religiosidade. Na nossa sala tínhamos um mix de etnias (chineses, iranianos, brasileiros, britânicos, americanos etc.) e, apesar de todos cientistas e a maioria agnóstico/ateu/religioso moderado, as opiniões divergiram mais em termos do background cultural de cada um q da religiosidade em si. E a discussão enveredou em classe pra o quanto tal posicionamento sobre uso de embriões seria religioso ou apenas cultural, o quanto a religião é em si cultural ou influencia a cultura e o quão estas 2 coisas podem ser separadas (ou não) neste tópico. É outro ponto a se pensar.

  7. Karl disse:

    Caros senhores e caríssima senhora,

    @Lúcia. É perfeito seu contraponto. Ficou um pouco demais pra mim discutir aspectos culturais relacionados à rejeição em se pesquisar células-tronco provenientes de embriões humanos, mas me parece evidente que eles são muito importantes, pra não dizer fundamentais. Se assim não fosse, como explicar que a Áustria tenha um índice de rejeição de 60% comparado com os 49% da Alemanha. Sabemos que a Áustria vive uma onda conservadora e isso influencia esse resultado independentemente da questão religiosa.

    @Fred. Obrigado pelas "correções". Você tem razão com a "confusão" que fiz mas é que eu pensei que todos fossem ler o post anterior. Tendo em mente que a igreja é contra a pesquisa de células-tronco provenientes de embriões humanos tudo fica mais fácil de entender. O Vaticano não só não é contra a pesquisa de células-tronco propriamente ditas, como também as financia, como pode ser visto neste post do Cretinas (veja também os comentários, que estão como sempre, sensacionais. Aliás, que falta faz o Cretinas, viu?).

    @Takata. Talvez não tenha entendido bem seu comentário, mas não sei onde escrevi um "simples" blastocisto. Considerar um embrião um ser humano com pleno direito a vida é o que temos para discutir.

    @Rudolf. Você me fez ver o outro lado. É verdade e isso está de acordo com o comentário do Lúcia. Entretanto, o artigo do New England é sobre financiamento público desse tipo de pesquisa e a questão da religiosidade. Ir além disso, seria torturar muito os dados.

    @Osame. O Darwinismo Social é uma "falácia naturalistica". Talvez, o melhor exemplo dela. Há vários comentários sobre isso na internet. Não sei se o lado religioso da discussão tem tanta consciência desse passado pseudocientífico do mal uso de uma ideia, mas acho que hoje isso estaria meio ultrapassado, não?

    Obrigado por todos os comentários.

    • Karl, nao tenho certeza se a questao do Darwinismo Social seja anacronica. Muito do que vejo de comentaristas no Estadao e na Veja sao claramente posicoes de Darwinismo Social. Alem disso, creio que muito da aceitacao do Darwinismo na Europa entre a populacao geral nao se deve ao seu maior nivel educacional cientifico, mas sim ao fato de que uma onda de extrema direita (cujo pensamento darwinista Social pode ser visto no tal manifesto do terrorista da Noruega, por exemplo, em suas referencias ao Brasil como pais que nao funciona por ser mestiço) está crescendo no continente (basta seguir o progressivo aumento desses partidos nas eleicoes e nos governos). Ou seja, o Darwinismo é mais aceito ali do que nos EUA nao apenas porque exisem menos criacionistas ali, mas tambem porque posturas de Darwinismo Social claramente implicam numa aceitacao previa do Darwinismo. Ou seja, as pessoas comuns aceitam e exprimem, mesmo sem estar conscientes, posicoes de Darwinismo Social e de Eugenia, e isso as faz naturalmente mais simpaticas ao Darwinismo. Nao sei se estou me espressando bem. O que estou dizendo é que os cientistas aceitam o Darwinismo por suas qualidades cientificas, mas as pessoas do povo, os leigos, simpatizam com o Darwinismo na medida que ele ~e visto como um fundamento cientifico de suas crencas previas sobre competicao, self-made man, laissez faire, posicoes contra as politicas de defesa social dos fracos e doentes (ou seja, uma posicao eugenista). Tenho encontrado a visao de que os pobres tem mais filhos que os bem educados e inteligentes e que isso implica em degenerescencia da especie em grande parte de nossos estudantes universitarios. Essa posicao me parece muito atual, nada anacronica...

      • Karl disse:

        Bem, eu não disse que é anacrônica, o que eu quero dizer é que talvez tenha apenas sido ultrapassada, no sentido de englobada por outras discussões. Podemos enxergar pitadas de darwinismo social em qualquer manifesto eugenista ou racista. Talvez a conexão seja feita apenas em nossa cabeça. Nos exemplos que vc deu há citações explícitas do darwinismo social? De qualquer forma, acho que é sempre perigoso quando uma teoria científica sai do âmbito onde foi concebida, extrapolando-se perigosamente para outras áreas do conhecimento.

  8. Willy disse:

    Para encontrar uma relação causal entre dois eventos, ou encontrar essa curva dose-resposta, deve-se realizar um experimento controlado, e não apenas pegar dados e observar que quanto maior um, maior o outro.
    O que você fez foi no fundo encontrar uma correlação e nada mais.

  9. Daniela disse:

    Apenas um comentário: curvas dose/resposta também são uma ferramenta estatística, chamada regressão logística 😉

    • Karl disse:

      Daniela, teria você respondido ao Willy, sem ler seu comentário? Deixo claro entretanto, que concordo com os dois. Só é preciso dar nomes aos bois. O efeito dose-resposta é apenas uma maneira de verificar a "força" (strenght) de uma associação, mas que é eloquente, é.
      Obrigado pelos comentários.

  10. […] tronco. Os embriões, claros, seriam o descarte dos procedimentos de fertilização in vitro. E ele também discute como seu posicionamento nessa questão pode ser muito mais um resultado cultural do que […]

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