Carta da Lu ou Sobre como o Mito de Tritão-Sereia influencia a Vontade de Salvar da População Médica Brasileira

O Ecce Medicus pretende, quem sabe um dia, ser um espaço para reflexões sobre a profissão médica. Por essa razão, há algum tempo, venho convidando pessoas, médicos ou não, a escrever sobre suas práticas e vivências relacionadas à profissão de Hipócrates. Hoje, publico uma carta da Dra. Lúcia, médica infectologista e intensivista do Paraná. 

“Querido Karl,

Queria te contar como foi a minha semana passada! Faz tempo que não batemos papo, e, devo confessar, faz tempo que mal tenho tempo pra ler o seu blog, que sempre alimenta os olhos e a alma… E põe meu cerebro pra funcionar também! Afinal, nesta nossa correria diária, vivemos embotados, no automático, mantendo a cabeça acima da linha d’água… Ops! É bem esse o assunto! Protocolos e água!

A Secretaria de Saúde do Estado do Paraná, numa parceria com o Corpo de Bombeiros do Estado, patrocinou um curso de Salvamento Aquático. O coordenador foi o Dr Ten Cel David Szpilman, autoridade mundial em afogamento. Tirando o fato de estar na frente de um dos mestres, a emoção estava em nivelar a todos, socorristas, guarda vidas, técnicos de enfermagem, enfermeiras e médicos, desde o ínicio do curso. As estatísticas são impressionantes, caro Karl. Cerca de 7000 óbitos por afogamento todo ano no país, dimensões continentais, não? Pessoas jovens, com grande expectativa de vida, produtivos. Nós nos acostumamos a enxergar o que chega ao hospital, que são os mais graves e mais difíceis de recuperar. Nós acostumamos a pensar que afogamento é coisa de mar grande e rio bravo. Quem se afoga e morre hoje?  São mais de 100.000 acidentes não-fatais no BRASIL! Nos pacientes de 1-14 anos, o afogamento é a segunda causa de morte. Na aula de acolhimento com estatísticas, a surpresa: as crianças morrem em casa, na banheira, na piscina, no tanque! Cerca de 70% das pessoas que se afogam no litoral são pessoas que vivem fora da orla. Essa catástrofe crescente está sendo mapeada graças aos esforços e iniciativa do Dr. Szpilmann, que classificou e estudou os tipos de afogamento (link pro site Sobrasa). Os melhores dados do mundo são os dados brasileiros. A educação para a prevenção hoje se mostra a maneira mais racional de combate a esse tipo de morte, uma vez que apenas 7% dos que se afogam em grau 6 sobrevivem, 0,5% sem sequelas. (Clique aqui para ver a classificação de afogamentos. Arquivo pps, em português).

Pra começar, fomos convidados a piscina! Cada dia mais todos convivemos com esportes aquáticos e estamos acostumados a nos divertir na água, no verão. Eu mesma sou uma entusiasta da água: nado desde os oito anos, hoje mergulho, tenho o Rescue Diver como um dos cursos mais importantes que fiz na vida de mergulhadora. Você sabe nadar? Ótimo, não se arrisque. Mas você sabe ajudar alguém em apuros, para que não vire estatística? Coragem e técnica são atributos diferentes e podem fazer a diferença entre a vida e a morte de uma ou duas pessoas (sim, a pessoa em apuros e seu possível salvador!  Ops, agora vítima também!). Como profissionais de saúde, sempre somos referência em situações de risco. E, acostumados com a cena hospitalar montada e razoavelmente confortável, como reagir numa situação de salvamento?  Você não tem a enfermeira e o oxigênio com a máscara, você não tem quatro pares de mãos habilitadas ao seu redor, você tem apenas você e a vítima. E um momento de festa em família, de lazer e recreação se transforma no seu pior pesadelo, atender, SALVAR a quem você ama! (não estamos discutindo o cunhado nem a sogra, nem as relações familiares…). Choque! Não, não tem desfibrilador, mas sim, um corpo boiando em parada respiratória… Karl, acostumados que somos em salvar vidas, em processos invasivos complicados, em atos médicos e monitoramentos… Só você e a vítima… Sentiu o arrepio?

Isto não é o resgate do naufrágio do Titanic. É um treinamento na praia

Hoje, vou pra água mais tranquila! Porque sempre digo: o engenheiro está andando na rua e um prédio que ele não construiu desaba. Ele se compadece e continua. Um advogado assiste ao crime e se protege. E continua. Mas nós médicos, se vemos algum mal súbito acontecendo ao nosso redor, seremos sempre médicos. E se mais alguém souber, ainda respondemos por omissão de socorro, negligência, caso não estejamos prontos a atuar. Esse “inconsciente coletivo”, do médico-Deus, onisciente, onipotente, nos atinge, faz todas as cabeças virarem em nossa direçao. Pois entender como prevenir, evitar, reconhecer o risco, e iniciar o atendimento pré-hospitalar, definidor de quem vai viver ou não nos afogamentos, me faz sentir melhor hoje.

Recebo muitas vítimas de afogamento, de todos os níveis. O conhecimento dos protocolos de atuação, desde a praia até a UTI, nos ajuda a falar uma só língua, entender o valor de cada passo, o empenho do guarda vida, a valorização da VIDA!  Quem sempre me impressionou e hoje valorizo ainda mais, é o Guarda-Vidas. PARECE fácil se jogar e tirar alguém da água. Arriscar a propria vida, Karl!  Não tem nada parecido na medicina intra-hospitalar!  Gastar muita energia, muita técnica e muita garra, não tem nada de fácil.  Existem homens (e mulheres) assim. Quem dera existissem coragens, energias, técnicas, GENTES assim, em todas as áreas. Ver e ser parte do mito do Tritão-Sereia, dominar a força do mar por alguns instantes e ver a vida resistindo, lutando, querendo! Isso muda muitas perspectivas.

Vou voltar a nadar amanhã.”

Civil em treinamento

Fotos cedidas pela autora.

Links interessantes

1. Sobrasa Referências, apostilas e aulas.
2. Poseidon Algumas estatísticas nos EUA (em inglês)
3. Drowning No EMedicine. Precisa inscrição (em inglês).

Discussão - 2 comentários

  1. Sibele disse:

    A Lu postando no Ecce Medicus!

    Um acontecimento extraordinário!!! Até derrubou o Twitter, hahaha! \o/

    PARABÉNS, Lulu!

  2. Fabiana disse:

    Sempre prefiro achar que aprendo mais com os outros do que comigo mesma. Ou com o outro em mim, aquela parte de mim da qual eu mesma pouco ou nada sei. Ou no diálogo. Porque o outro sempre pode me mostrar algo em que eu jamais teria pensado se ele não estivesse ali. Dar a palavra ao outro é sempre um gesto de humildade, uma reverência àquilo que não sou mas que, por alguns instantes, ou por muitos, pode ser também meu, por acréscimo. Aquilo que eu nunca seria, se não fosse por estar na companhia desse alguém que, no contato, me completa. Nesse momento, somos menos deuses, menos oniscientes e onipotentes. O EM sempre me pareceu, desde a sua concepção, e pela experiência de leitura que tenho dele, muito mais um fórum do que a fala de um só. É por isso que gosto tanto de estar aqui. Pensar junto, e não sozinho. 🙂
    Parabéns, Karl e Dra. Lu.

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