USP – Universidade Classe Mundial?
Publico aqui, com autorização da autora, carta da professora Rita Cruz, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP. É uma carta-reflexão sobre a proposta de alteração regimental na pós-graduação da USP de que falávamos. De forma clara e brilhante, ela expõe os desencontros da política universitária do Estado de São Paulo que, a pautar-se pela interpretação fria de rankings e pelas comparações grosseiras entre as instituições, afeta diretamente a maior universidade do país com consequências desastrosas. Mais que isso, provoca uma reflexão sobre qual o papel da universidade na sociedade paulista e brasileira atuais deixando a pergunta: qual a melhor forma de uma universidade latino-americana portar-se para estar entre as melhores do mundo? Um simples “copy-paste” resolve?
~ o ~
Universidade Classe Mundial: paradoxos de um pensamento ao mesmo tempo neoliberal e neocolonialista
Como é do conhecimento de todos, estamos vivendo um processo de reformulação do Regimento Geral da Pós-Graduação da USP. Conforme declarações públicas da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, as mudanças propostas fazem-se necessárias no sentido de transformar a USP em uma Universidade Classe Mundial.
Todavia, o que nos tem inquietado a muitos, alunos e professores da USP, diz respeito à pertinência/necessidade de algumas das mudanças anunciadas, entre as quais se pode destacar:
- exame de qualificação obrigatório para todos os alunos da pós-graduação, a realizar-se em até 12 meses de seu ingresso;
- exclusão da possibilidade de re-apresentação do Relatório de Qualificação no caso de reprovação;
- necessidade de parecer prévio por escrito, para teses de doutorado, podendo o candidato/aluno ser impedido de defender publicamente seu trabalho no caso de a maioria dos pareceres escritos indicar inaptidão à defesa;
- orientador sem direito a voto nas bancas examinadoras finais.
A principal argumentação utilizada pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação para justificar tais mudanças é a referência a IES [instituições de ensino superior] estrangeiras, as quais têm modus operandi similares ou iguais a este que se propõe hoje para o Regimento da Pós-Graduação da USP, ressaltando-se o fato de que tais Instituições são melhores ranqueadas internacionalmente que nós. Naturalmente, não ignoramos o fato de que há muitas experiências vividas em outros lugares no mundo, no campo científico e acadêmico, passíveis de serem assimiladas por nós de forma positiva, ou seja, produzindo-se aqui, em nosso contexto social, econômico, político e geográfico, as mesmas benesses que produziram em seus lugares de origem.
Entretanto, entendemos, também, que não há um modelo universal para se produzir uma Universidade Classe Mundial e, se considerarmos as condições em que fizemos ciência no Brasil e na USP, particularmente, desde a sua fundação, podemos afirmar, sem dúvida, que somos muito mais Classe Mundial que diversas universidades melhores colocadas nos diversos ranqueamentos internacionais. Por que podemos afirmar isso? Pensemos em alguns dados/informações.
Ranking das 10 melhores universidades do mundo segundo a TIMES HIGHER EDUCATION – informações elementares
Universidade |
Ano |
Orçamento Anual* |
No. de Alunos |
Orçamento/Aluno¶ |
Doc/Pesq por Aluno¶ |
USP |
1934 |
3 |
76.000 |
39.473,68 |
1/14,5 |
CalTech |
1921 |
6,3[1] |
22.000 |
286.363,60 |
1/1,13 |
Harvard |
1636 |
57.6[2] |
21.000 |
2.742.857,10 |
1/10 |
Stanford |
1891 |
37[3] |
18.500 |
2.000.000,00 |
1/1,73 |
Oxford |
1096 |
3[4] |
20.000 |
150.000,00 |
1/ 2,35 |
Princeton |
1746 |
17,2[5] |
12.000 |
||
Cambridge |
1209 |
3,4[6] |
10.000 |
340.000,00 |
1/3,3 |
MIT |
1861 |
4,8[7]** |
11.000 |
436.363,36 |
1/11 |
Imperial College |
1891 |
2[8] |
14.000 |
142.857,14 |
1/12 |
Chicago |
1907 |
4,6[9] |
15000 |
306.666,66 |
|
Berkeley |
1868 |
3,5 |
36.000 |
97.222,22 |
1/15 |
Obs.: as informações e dados acima expostos foram extraídos das páginas das respectivas universidades, disponíveis na web.*Valores aproximados em bilhões de Reais.**Excluindo-se orçamento destinado ao Laboratório do MIT que tem parceria com a NASA.¶ Em Reais.
Como se pode ver na tabela acima, a Universidade de Harvard, Estados Unidos, desenvolveu sua reconhecida capacidade de produzir conhecimento ao longo de pouco mais de três séculos e com orçamentos, muito provavelmente, bem superior aos nossos. Vale lembrar que se hoje Harvard tem um orçamento anual quase vinte vezes superior ao da USP, com um número total de alunos 60% menor, há poucos anos atrás, o orçamento total da USP – 2005, por exemplo – não chegava aos 2 bilhões de reais. Entre outras coisas, pode-se notar que enquanto a USP investe menos de R$ 40.000,00 por aluno, em Harvard esta conta chega ao estratosférico valor de quase 3 milhões de reais!!! Dá para comparar?
Oxford, por sua vez, tem, aparentemente, um orçamento igual ao da USP hoje, mas como a comunidade estudantil oxfordiana é 70% menor que a nossa, a universidade inglesa, com quase mil anos de história, empenha cerca de 150.000 reais por aluno. Certamente, os seus quase dez séculos de história foram importantes na definição de suas políticas acadêmicas e, especialmente, de pesquisa. Estaremos nós querendo ser mais oxfordianos que nossos colegas ingleses? Ou será que queremos mesmo é ser mais realistas que o rei?
Entre as dez melhores do mundo, ainda segundo o ranking “Times Higher Education”, por exemplo, aquela que tem o menor investimento per capita por aluno – Califórnia University at Berkeley – empenha duas vezes e meia os valores investidos pela USP. Apesar de a USP ter, proporcionalmente às melhores universidades do mundo, orçamentos bem mais modestos, parte da sociedade brasileira, ao contrário do que ocorre nos países que abrigam as “top 10 do mundo”, estimulada por uma visão tupiniquim de uma imprensa irresponsável, nos rotula de “burgueses gastões” .
Outro elemento importante neste debate e que não pode ser negligenciado diz respeito à hegemonia lingüística mundial da língua inglesa, ou seja, pesquisadores/cientistas anglófonos levam reconhecida vantagem em termos da reverberação internacional de seus trabalhos em relação, por exemplo, a pesquisadores/cientistas não-anglófonos.
Em sua competente análise acerca de classificações internacionais de universidades e, especialmente sobre a classificação “Xangai”[10], Hervé Théry (2010: 192) diz a esse respeito:
Outro fator de distorção é que o inglês tornou-se, na maior parte dos campos científicos, a língua internacional e que os universitários do mundo anglófono são muito mais integrados ao circuito internacional que os seus homólogos dos outros blocos culturais. Consequentemente, essa classificação das universidades favoreceu claramente os países para os quais o inglês é a língua materna.
Outra distorção apontada por Hervé Théry (2010: 191-2) quanto à classificação “Xangai”, diz respeito à subestimação clara das ciências sociais e humanas. Conforme o autor:
O lugar das ciências sociais e humanas é claramente subestimado nessa classificação, os próprios autores o reconhecem, mas eles confessam não ter encontrado, para esses campos científicos, critérios que correspondam às exigências que tinham fixado: medidas universalmente reconhecidas como válidas e livremente acessíveis na internet. Em especial, o fato de não poder dispor de uma classificação dos livros, um dos principais meios de expressão dessas ciências, prejudicou a sua inclusão correta na classificação.
Se, entretanto, insistem alguns em comparar o incomparável, uma das conclusões a que podemos chegar é a de que a USP é muito mais Classe Mundial que as dez melhores universidades do mundo, afinal de contas, conseguimos ser a melhor universidade da América Latina e estar hoje entre as 70 melhores do mundo, com pouco mais de 70 anos de história, utilizando muito menos recursos que a maioria delas e abrigando 3, 4 ou 5 vezes mais alunos que a maior parte dessas instituições.
ISTO POSTO, NÃO DEVERÍAMOS NÓS ENSINAR A ELES OS NOSSOS MÉTODOS E NÃO O CONTRÁRIO?
Entre os rankings internacionais e as avaliações nacionais
Na onda dos ranqueamentos internacionais, outro processo em curso na USP é o de criação de um novo sistema de avaliação da qualidade de sua pós-graduação.
Para que e a quem servem os sistemas de avaliação seja de universidades “classe mundial” ou de programas de pós-graduação?
1. No caso da avaliação da pós-graduação, o sistema Capes tem servido, entre outras coisas, para fomentar a competição entre Programas, em escala nacional. Como? Os Programas melhor classificados são aqueles que recebem mais recursos. Assim, esse sistema trabalha para manter na penumbra aqueles que apresentam maiores dificuldades; enquanto isso, os melhores têm suas receitas fortalecidas.
2. Um sistema de avaliação pautado na competição contribui, efetivamente, para “varrer” do universo da pós-graduação os Programas que não conseguem melhorar suas notas, por razões diversas, entre as quais a dificuldade em vencer os mecanismos vorazes da competição (fatores temporais – programas jovens; fatores geográficos – dificuldade em fixar professores/pesquisadores em lugares distantes dos centros econômicos mais dinâmicos do país, fatores financeiros – escassez de recursos, por exemplo).
3. Coincide, historicamente, com a instalação do sistema de avaliação da Capes uma reconhecida perda de qualidade na formação geral de pós-graduandos no Brasil. Naturalmente, não se pode atribuir única e exclusivamente à avaliação Capes algo que decorre de um sucateamento do ensino em todos os níveis no país, reinante durante décadas. Todavia, alguém duvida de que existe relação direta entre avaliação Capes e encurtamento de prazos na pós-graduação stricto sensu? Alguém tem dúvida de que o sistema de avaliação Capes fomentou, de forma incomensurável, o produtivismo no país? Alguém duvida de que prazos menores e professores e alunos focados na produção-fim (ou seja, a produção por ela mesma) contribuem significativamente para piorar a qualidade da pós-graduação?
Tais inquietações me conduzem a perguntar: como se fazia a avaliação da produção na USP, por exemplo, nos anos 50, 60 e 70?
O reconhecimento nacional e internacional da USP, historicamente construído, subordinou-se, durante décadas, única e exclusivamente à inserção social de seus formandos, graduados e pós-graduados, bem como à sua produção científica, que revolucionou diversos setores da vida social.
Todavia, na medida em que, pós anos 80, começa a ampliar-se, substancialmente, o universo da pós-graduação brasileira, “a fatia do bolo” para cada um tinha de diminuir!
É nesse contexto que assumimos uma lógica empresarial de avaliação, fundada não somente na produção, mas sobretudo e principalmente na produtividade. Paradoxalmente, enquanto o setor produtivo se flexibiliza, supera o paradigma fordista e incorpora princípios toyotistas, a vida cotidiana na universidade volta-se para a produção em massa além de tornar-se cada dia mais inflexível!
A melhor avaliação da USP foi e continua sendo feita pela sociedade brasileira, de modo geral, e paulistana, especificamente. A inserção de nossos egressos, tanto da graduação como da pós-graduação em todos os setores do mercado de trabalho, incluindo-se postos de liderança em escolas de ensino fundamental e médio, universidades, empresas de todos os ramos e governos em todas as escalas expressa a verdadeira reverberação do investimento público onde ele deve reverberar.
Por fim concluo acreditando que temos empenhado muito tempo e energia na construção de parâmetros, indicadores e relatórios de avaliação, os quais alimentam uma verdadeira esquizofrenia avaliativa nacional. Enquanto isso, nossos alunos clamam, simplesmente, por uma boa aula, por um pouco de atenção, por uma boa conversa, enfim, atividades elementares, cada vez mais difíceis de serem desenvolvidas em um cotidiano acadêmico regido pela competição. Quanto ao tempo para a pesquisa, passou a ser um sonho de todos nós. Algo me parece estar errado.
Sem mais, despeço-me, cordialmente,
Profa. Dra. Rita de Cássia Ariza da Cruz
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP
[10] Instituição Escore (2008)
1 Harvard University 100
2 Stanford University 73,7
3 University of California – Berkeley 71,4
4 University of Cambridge 70,4
5 Massachusetts Institute of Technology (MIT) 69,6
6 California Institute of Technology 65,4
7 Columbia University 62,5
8 Princeton University 58,9
9 University of Chicago 57,1
10 Oxford University 56,8
Fonte: THÉRY, Hervé. Classificação de universidades mundiais: “Xangai” e outras. estudos avançados 24 (70), 2010. Disponível aqui.
Discussão - 21 comentários
ADORE! 😀
Não acho ruins as medidas propostas. Independentemente de se levar ou não a USP a uma respeitabilidade internacional e bom posicionamento nos rankings internacionais.
[]s,
Roberto Takata
Roberto está em terras mineiras e não está sentindo na pele o periodo Robespierrino instaurado nos verdes campi uspianos...
@Sibele,
As propostas têm méritos independentemente dos ares que estejam respirando aí na USP.
Exames de qualificação já existem e estão instalados em diversos programas de pós-graduação. Trazê-los para o período inicial tem a vantagem de adiantar o filtro.
Parecer externo e orientador sem voto na defesa dão peso à avaliação mais independente.
[]s,
Roberto Takata
Roberto,
"As propostas têm méritos [...]" - bem, a própria prof. dra. Rita Cruz responde na sua carta. Reveja o item 3 da missiva, por favor.
Não sou contra exames de qualificação e parecer externo /orientador sem voto na banca. O problema é a forma impositiva como todas essas mudanças estão se processando.
"Benefícios" alcançados assim invariavelmente deixam um rastro de terra arrasada na sua consecução. Por exemplo, um ótimo benefício: um novo prédio para a ECA. Excelente! Mas imposto, sem sequer consulta e participação da comunidade a que se destina??? Os fins justificam os meios, então? ---> http://goo.gl/cfa6U
Sibele: "Reveja o item 3 da missiva, por favor."
Vejamos: "necessidade de parecer prévio por escrito, para teses de doutorado, podendo o candidato/aluno ser impedido de defender publicamente seu trabalho no caso de a maioria dos pareceres escritos indicar inaptidão à defesa;" Me parece ok.
Sibele: "O problema é a forma impositiva como todas essas mudanças estão se processando."
Não parece nem ser o núcleo da análise da Dra. Cruz e muito menos é o que estou analisando. A minha análise da medida, aqui, independe, como disse, dos ares que estejam respirando aí na USP.
De todo modo, bem ou mal, na USP as decisões são baseadas em colegiados.
[]s,
Roberto Takata
Roberto,
eu me referia ao item 3 da sessão "Entre os rankings internacionais e as avaliações nacionais", da missiva:
[...] Todavia, alguém duvida de que existe relação direta entre avaliação Capes e encurtamento de prazos na pós-graduação stricto sensu? Alguém tem dúvida de que o sistema de avaliação Capes fomentou, de forma incomensurável, o produtivismo no país? Alguém duvida de que prazos menores e professores e alunos focados na produção-fim (ou seja, a produção por ela mesma) contribuem significativamente para piorar a qualidade da pós-graduação?"
"A minha análise da medida, aqui, independe, como disse, dos ares que estejam respirando aí na USP." Sim, vc bem o disse. E acaso desconsiderar tais "ares" não torna essa análise parcial?
"[...] bem ou mal, na USP as decisões são baseadas em colegiados." O processo é irrepreensível e democrático... Então tá!
Oi.
Acho que você confundiu dotação financeira com orçamento anual na tabela de orçamentos.
Harvard teve orçamento de US$ 3,9 bilhões (~ R$ 7,1 bilhões) em 2011. Ainda é um orçamento enorme, mas quase 90% menor do que os R$ 57,6 bilhões da tabela.
Pesquisei sobre as outras universidades da tabela e esses foram os números que encontrei:
Caltech - US$ 2,2 bi (~ R$ 4,0 bi)
Harvard - US$ 3,9 bi (~ R$ 7,1 bi)
Stanford - US$ 4,1 bi (~ R$ 7,4 bi)
Oxford - £ 2,4 bi (~ R$ 6,9 bi)
Princeton - US$ 1,5 bi (~ R$ 2,7 bi)
Cambridge - £ 1,3 bi (~ R$ 3,7 bi)
MIT - US$ 2,6 bi (~ R$ 4,7 bi)
Imperial College - £ 0,7 bi (~ R$ 2,0 bi)
Chicago - US$ 2,9 bi (~ R$ 5,2 bi)
Berkeley - US$ 2,1 bi (~ R$ 3,9 bi)
Esses são os valores totais, incluindo orçamentos de pesquisas patrocinadas, que às vezes são operados de forma independente da universidade, distorcendo o real valor real do orçamento por aluno.
Por exemplo, o Jet Propulsion Lab do Caltech, é mantido pelo Departamento de Defesa e pela NASA e custa aprox US$ 1,5 bi (mais de 70% do orçamento total da Instituição, que é de US$ 2,2bi).
Ao dividir o orçamento pelo número de alunos, temos dois valores, que mudam bastante ao tirarmos o JPL do total: US$ 986 mil/aluno/ano ou US$ 313 mil/aluno/ano.
E ainda há mais dinheiro de pesquisa patrocinada no orçamento do Caltech, mas o relatório não deixa claro se são operados de forma independente.
Você está certo. Embora eu concorde quase que de forma absoluta com as ideias gerais autora, ela confundiu os investimentos da universidade (investimentos financeiros mesmo) com orçamento. Para melhorar ainda mais a comparação, o ideal seria usar o valor dos gastos (expenses). Mesmo assim a USP fica bem para trás.
De qualquer forma já está mais do que na hora da comunidade científica discutir de maneira racional os sistemas de avaliação e sobretudo quais os objetivos da graduação e da PG para o aluno, para a instituição e principalmente para o país. Os critérios da avaliação têm que ser construídos a partir daí. Hoje está ocorrendo o contrário, já com desastrosas consequências. Afinal, somos cientistas(/intelectuais?) ou meros seguidores de uma seita chamada CAPES (que representa interesses também, é claro)?
Abraços
Com todo o respeito que o assunto merece, o prazo máximo de um ano para a qualificação desrespeita profundamente o amadurecimento das pesquisas, especialmente nas Humanidades. E não é porque os alunos das áreas de Humanas sejam “vagabundos” ou “lentos”. É porque nossas pesquisas demandam leituras longas e verticais, discussões, articulação na maioria das vezes renovadora de ideias, proposição de novos paradigmas do pensar. Certos assuntos não são “apressáveis” - por mais que lutemos por nos mostrar “produtivos”. Acaba que a Universidade, espaço em que se deveria produzir o novo, termina como lugar de reaproveitamento do velho, do rançoso, do batido, do esperado. Nihil novi sub solem.
Na minha área, por exemplo, em que estudamos comparativamente culturas, literaturas, por vezes linguagens diferentes, em que universos inteiros se põem em contato, um ano para qualificar é quase um ato de terrorismo acadêmico. Penso assim.
E muito poucos nos ouvem o pensamento.
@Fabiana,
Como são os exames de qualificação agora no seu curso? No IBUSP, no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, a quali para o doutorado envolve apresentar o projeto.
"É porque nossas pesquisas demandam leituras longas e verticais, discussões, articulação na maioria das vezes renovadora de ideias, proposição de novos paradigmas do pensar."<=Isso não é exclusividade das humanidades, leituras profundas e amplas discussões são também essenciais em biológicas e, imagino, também nas exatas.
[]s,
Roberto Takata
Roberto,
Em nosso Programa de Pós, a qualificação envolve a apresentação de um relatório de umas 100 páginas, que inclui o projeto original de pesquisa (previamente aprovado pelo orientador pretendido durante o exame de ingresso), o novo projeto, modificado pelas próprias pesquisas, um relato de todas as atividades acadêmicas e das disciplinas cursadas, com as respectivas monografias apresentadas em anexo, além de umas 50 páginas já do texto final da dissertação ou tese. Para você ter uma ideia, o último relatório de qualificação que avaliei, de um doutorado que compara a obra de Guimarães Rosa a uma de suas adaptações fílmicas, interpretados segundo os modelos filosóficos de Deleuze e Guattari, tinha 140 páginas. Mas era grande. Em geral, eles têm de 70 a 100 páginas.
"Isso não é exclusividade das humanidades, leituras profundas e amplas discussões são também essenciais em biológicas” - concordo com você, em gênero e número (em grau não concordo não, que grau não faz concordância - heh, isso é uma piada sem graça, mas verdadeira, comum entre gramáticos... 🙂 ). Acho que o que estamos discutindo aqui são justamente os perigos que rondam o essencial de uma pós-graduação de qualidade, não é mesmo? Só falei das Humanidades porque realmente não tenho a menor experiência em outras áreas - e acho que, apesar das linhas comuns, deve haver particularidades nelas que eu desconheço, mas que um projeto geral deveria, talvez, considerar...
E, talvez, pensando em experiências empíricas, muito mais “objetivas” e de resultados por vezes mais imediatos, não? Pelo menos imagino que seja assim. Posso estar errada. Trabalhamos muito pouco com experiências empíricas.
Deixa eu compartilhar com vc uma sensação que tenho tido cada vez mais, no trabalho e quem sabe na vida, e que talvez nos meios “científicos” seja um pouco diferente, não sei. Vocês me digam. Trabalho muitas vezes com perguntas sem resposta. Com um “eu não sei”. As respostas às vezes demoram muito pra chegar. Os padrões surgem - mas demoram. E a gente precisa ficar encarando esse não saber, com muita paciência, com muito respeito, para não “jump into conclusions” (acho essa expressão do inglês ótima!) - precipitadamente. Há objetos “opacos”. Difíceis. É preciso conviver muito, com eles - e com o não saber. Estar com eles, conversar com eles, interpelá-los, quase acarinhá-los - para, enfim, vir a saber melhor... E se isso não acontecer, ou não acontecer completamente, tudo bem também. Às vezes a gente dá respostas rápido demais. Somos chamados a isso.
E esse, acho, talvez seja o grande problema da pressa. Da pressa acadêmica inclusive. É preciso mostrar resultados. Mas quais?
Abraços pra vc tb.
@Sibele
"eu me referia ao item 3 da sessão 'Entre os rankings internacionais e as avaliações nacionais', da missiva"
Embora eu tenha algumas dúvidas sobre isso, não me referi a esse ponto e sim às medidas propostas, que não versam sobre produtivismo nem encurtamento do tempo da pós-graduação. (Em certa medida é até contrário ao produtivismo: já que, em tese, aumenta a possibilidade de *não* se produzir uma tese ou dissertação.)
"E acaso desconsiderar tais 'ares' não torna essa análise parcial?"
Toda análise é parcial. O que eu fiz foi declarar sob que ângulo faço minha análise.
"O processo é irrepreensível e democrático… Então tá!"
Se fosse irrepreensível não haveria de dizer "bem ou *mal*".
[]s,
Roberto Takata
@Fabiana,
Nesse caso, naturalmente, haverá que se mudar o sistema da qualificação - caso o novo prazo seja aprovado. O sistema que vocês adotam é praticamente uma pré-tese. Poderia funcionar como uma segunda etapa.
Em relação a isso de "eu não sei" isso é comum também em biológicas. Especialmente nas áreas de fronteira. Por exemplo, a questão da origem da vida, a questão da consciência, a questão da origem da linguagem, etc. E mesmo em terreno mais comezinho há problemas ainda pouco tratáveis: desconhecemos a função da maioria dos genes e desconhecemos quais genes atuam mais diretamente na maioria das características biológicas. Muitas vezes sabemos que um grupo de genes estão ligados a uma determinada característica, mas não sabemos como uma coisa leva à outra.
[]s,
Roberto Takata
Acho que sim, Roberto. Estava aqui lavando minha louça e imaginando: o cientista em seu laboratório, o médico debruçado sobre o seu paciente. “Eu não sei”. Nesse não saber, está o mundo.
O negócio é não deixar que a necessidade de resposta nos faça dar qualquer resposta. Não é isso? Respeitadas, também, as particularidades do lugar que a gente ocupa, dos papéis que a gente exerce. Acho 🙂
Abraços! Bom dia.
Prestei atenção para essas discussões intermináveis da USP por muito anos. Entendi que na USP não só não há democracia, como democracia não funciona na USP e também ninguém quer realmente democratizar nada por lá. No fim há um caos controlado onde cada um faz mais ou menos o que bem entende. Não há uma estrutura, não há estratégia, não há hierarquia, não há poder, não há punições. Existem grupos que decidem criar micro-estruturas para viver em algum tipo de pólo de ordem afastado de outros grupos que não concordam. Os grupos se estranham, competam, convivem, e nenhum nunca consegue acabar com o outro. Existe também o grito dos que se sentem injustiçados. Por qualquer motivo, plausível ou não, estão reclamando, resmungando e tentando atrair mais e mais atenção. As vezes conseguem arrumar uma grande bagunça enquanto a maioria das pessoas e micro-grupos tenta evitar eles. Mas isso também nunca vai longe e tudo continua sempre igual. Não há união, não há maioria, então não há como haver democracia.
@Sibele
O caso do novo prédio não é diferente. Um micro grupo achou que seria legal ter um novo prédio por N motivos. Esse grupo sabia que se colocasse o projeto de um novo prédio na pauta de uma grande discussão, o prédio nunca sairia do esboço. Não tem como atender o desejo de todos professores, alunos, funcionários e associações. Alguém sempre vai se sentir injustiçado e vai começar um tumulto para impedir a Grande Obra do micro-grupo. Daí o dinheiro do investimento vai embora e se perdeu muito tempo discutindo muitas coisas que não levaram a lugar nenhum. Por isso, quando o micro-grupo foi apresentar o projeto, tudo já estava pronto, os tratores já estavam quase entrando no terreno. Até os Outros se mobilizarem, a obra já está quase pronta. Depois que o prédio esta pronto, ninguém vai demolir.
Não houve democracia, não houve discussão, tudo foi imposto na força passiva. Na minha opinião esse pragmatismo é moralmente errado, mas no fim isso acaba somente sendo uma opinião, porque esta ação não é punível. Logo, grupos que se sentiram injustiçados nessa violência velada agirão da mesma maneira, quando tiverem uma Grande Idéia de fazer alguma coisa nova na Universidade. As coisas se repetem como sintomas de uma grande neurose coletiva.
@Fabiana
Quando aparecem novas regras do além, os docentes que não se adaptam acabam se juntando para criar excessões. No fim a nova regra deixa de existir, diluida em excessões. As regras que funcionam são as estabelecidas em acordos de cavalheiros entre os docentes de um departamento.
A professora Rita Cruz, em seu texto, extrapola a questão regimentar da pós-graduação da USP, a fim de apontar um problema de maior abrangência na nossa sociedade, que é a pedagogização de todos os campos, a maneira como os processos de “avaliação” vão sendo construídos nos distintos espaços sociais. Da avaliação de alunos, passamos a avaliar professores, empresas, empregados, instituições, sempre atrelando a essa avaliação um componente meritocrático financeiro (bônus, gratificações, recursos, prêmios, investimentos…). A Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP aponta, com razão, os furos existentes em comparar o incomparável, ou ainda, a (des)vantagem de se comparar apenas os aspectos que interessam a este ou àquele governo, a esta ou àquela liderança.
Comparamos os resultados de pesquisa, mas ignoramos as condições em que essa pesquisa é desenvolvida, quanto se investe nas agências e nos agentes pesquisadores, até em que língua a pesquisa “deve” ser desenvolvida e publicada.
No curso de pedagogia, debatíamos muito sobre o processo de avaliação de alunos de escolas e lugares distintos do país, que entravam em uma “corrida” que se pretendia entre iguais, com condições bastante adversas – e o critério era sempre o mesmo, ”democrático”, para todos. Entretanto, essa diferença entre as condições de trabalho, de pesquisa,de vida, só são comparadas no quesito que interessa, e interessa principalmente a agências de financiamento – nacionais e/ou internacionais.
Eu me arrepio só de ouvir falar de “classe mundial”, world class qualquer coisa, que vem como enxurrada para nos moldar a uma formatação em que, de cara, já estamos e estaremos, sempre, em desvantagem.
Fiquei pensando porque ninguém respondeu ao comentário deixado no post da professora no blog "Usp em greve".
http://uspemgreve.blogspot.com.br/2012/03/universidade-classe-mundial-paradoxos.html
No meu ver, a análise dela foi feita de maneira completamente enviesada.
Outra coisa que eu quero que me expliquem: como é que este modelo tão ruim a que todos se referem acima fez da USP a melhor universidade do Brasil? Sinceramente, será que é tão ruim assim?
Fiz uma análise numérica similar, mas com outras fontes:
http://quipronat.wordpress.com/2012/02/16/dispendio-estadual-em-ensino-superior-publico-quanto-e-muito/
Roberto, excelente texto! Seria um prazer publica-lo na integra aqui. Além de fomentar o debate, a grande repercussão que o texto da professora Rita gerou poderia ser cotejada com sua opinião, sempre muito bem embasada.
Forte abraço