Uma Passagem para a Água
Este post faz parte de uma série cujo primeiro é O Poder dos Prótons.
Na fisiologia clássica, por volta da década de 20, quando se descobriu que a membrana plasmática das células era uma dupla camada lipídica, formulou-se a hipótese de que a água pudesse penetrar no meio intracelular através da própria membrana, seguindo forças osmóticas. Entretanto, uma série de pesquisadores, por meio de medidas biofísicas (que analisam potenciais de membrana), notaram que a permeabilidade de algumas membranas à água era 10 a 20 vezes maior do que a esperada caso a passagem ocorresse apenas através delas[1]. Previram, assim, a existência de um canal para passagem da água.
No início da década de 80, Peter Agre era um hematologista envolvido no estudo do fator Rh (o “positivo” ou “negativo” dos tipos sanguíneos) trabalhando no Instituto Nacional de Saúde dos EUA. Estava interessado em induzir a formação de anticorpos em coelhos sensibilizando-os com um peptídeo parcialmente purificado do fator Rh. Os coelhos reagiam fortemente produzindo anticorpos que, no entanto, não reagiam com o cerne da molécula de Rh mas sim, com uma outra proteína que acreditava-se ser um fragmento do grande polipeptídeo. Parecia uma contaminação do experimento. Mas essa proteína de 28 kilodaltons (kDa), tinha algumas propriedades estranhas. Não se corava com os procedimentos habituais e quando foram procurá-la na membrana de hemáceas, verificou-se que era extremamente abundante. Com aproximadamente 200.000 cópias por hemácea, era uma das proteínas mais comuns na célula! Nas palavras de Agre (descendente de imigrantes nórdicos) “era como se alguém, andando pelo norte desértico da Suécia, de repente, encontrasse uma cidade de 200.000 habitantes que não constasse em nenhum mapa”. Estudos subsequentes revelaram que a proteína tinha características de um canal pois dispunha-se ao longo da espessura da membrana. Uma série de elegantes experimentos revelou que ela era um canal de água sendo batizada com o sugestivo nome de aquaporina 1 (AQP1). Peter Agre recebeu o prêmio Nobel de Química em 2003 por sua descoberta (Figura abaixo). Orgulho do pai, que havia trabalhado com Linus Pauling, acabou abandonando a hematologia. (Veja a interessantíssima “palestra do prêmio” (em inglês, 45 min) no portal do Nobel).
Figura 1. Peter Agre. Prêmio Nobel de Química de 2003
As aquaporinas constituem uma família de, até o momento, algumas centenas de proteínas de membrana. Nos mamíferos já foram identificadas doze, sete das quais estão presentes no rim. Nos últimos anos, pesquisas têm explorado a seletividade e as funções multitransportadoras das aquaporinas. Isso levou a uma divisão do grupo em aquaporinas clássicas e aquagliceroporinas. Estas últimas também transportam passivamente glicerol e outros polióis bem como alguns solutos e, ao que parece, são filogeneticamente até mais antigas que as aquaporinas clássicas[2]. A AQP1 é uma proteína de membrana altamente permeável à água. Sua condutância é de aproximadamente 3 x 10^9 molec / subunidade / seg permitindo que uma molécula de água trafegue a ~0,02 cm/s [3]. A AQP1 forma 4 complexos na membrana celular (subunidades), cada um formando um canal de água independente (figura 2). Um quinto poro é formado no centro do complexo e há indícios de que possa conduzir íons, mas o transporte passivo de água através da membrana celular é mesmo a maior função fisiológica da AQP1 [4].
Figura 2. Foto de simulação do transporte de água por uma molécula de aquaporina. As subunidades são constituídas de túbulos que estão em cores diferentes. As moléculas de água (pequenos bumerangues azuis) permeiam a subunidade à direita (em dourado). Esta imagem ganhou o prêmio de melhor foto científica da revista Science™ na edição de 24 de Setembro de 2004 e pode ser encontrada aqui, juntamente com uma animação do transporte das moléculas de água.
É surpreendente o fato de que, mesmo transportando água tão eficientemente, as aquaporinas sejam impermeáveis aos íons. A razão disso seria a proteção do meio interior celular para que a maquinaria metabólica possa funcionar adequadamente e em “silêncio biológico” – o que pode até ser uma definição bonita de Saúde, mas teleológica demais para servir a nossos propósitos. Até o mais enxerido de todos íons, o próton e seu alterego H3O+, não consegue passar pelas reentrâncias do canal de água. Como isso se dá? Como isso ocorre se os prótons teleportam-se de um lugar para outro livremente na Mattrix aquática, materializando-se e evaporando em qualquer lugar bastando para isso um “fio de água” por onde possam passar…
É o que tentarei descrever no próximo e último post da série.
Referências Bibliográficas
[1] Finkelstein A: Water Movement Through Lipid Bilayers, Pores, and Plasma Membranes: Theory and Reality (Distinguished Lecture Series of the Society of General Physiologists). New York, John Wiley & Sons Inc, 1987.
[2] Nielsen S, Frokiaer J, Marples D, et al.: Aquaporins in the kidney: from molecules to medicine. Physiol Rev 82:205-244, 2002.
[3] Preston GM, Carroll TP, Guggino WB, et al.: Appearance of water channels in Xenopus oocytes expressing red cell CHIP28 protein. Science 256:385-387, 1992.
[4] Zhu F, Tajkhorshid E, Schulten K: Theory and simulation of water permeation in aquaporin-1. Biophys J 86:50-57, 2004.
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🙂