O Filme
Vou dar só um exemplo, macaco pelado. Só um. Então, agarre-o com as suas mãozinhas glabras e suadas de desespero, com toda a força que puder. Veja só.
Pegue uma boa câmera de filmar. Pode ser celular com câmera também, óbvio. Mas bom. Nossa, como você se prende a detalhes irrelevantes, não? Depois de pegar a câmera, desça pelo elevador e ganhe as ruas. Nas ruas mora o monstro do cotidiano. Mora a vida comum. Nas ruas há vitrines e galerias e é onde está o mundo da vida. Escolha um lugar movimentado qualquer. Ligue a câmera e comece a filmar o que você vê ao seu redor. Filme tudo; vá filmando. Filme os carros, os prédios, as pessoas. Filme-as conversando, paradas ou simplesmente andando. Filme ABSOLUTAMENTE tudo. Até acabar a bateria.
Macaco pelado, você sabe manipular esses aparelhos, não? Sabe sim. Só não sabe muito bem o que fazer com eles, mas vou lhe dizer. Chegue em casa e passe o que você filmou para o computador. Assista. Passe horas, dias, assistindo até quando não aguentar mais ver o filme e me responda com toda a sinceridade – sinceridade com a qual você normalmente não está acostumado a lidar – me responda, macaquinho pelado – à pergunta que farei e que sei, sim, que é a pergunta que você mais teme que eu faça. Na verdade, é a pergunta que você luta para não se fazer!
Pobre macaco pelado… Não vou poupá-lo porque você tem andado meio arrogante nos últimos tempos, viu? É isso mesmo. Então lá vai. Depois de ter filmado tudo o que podia lá fora – no mundo da vida – depois de ter visto esse filme várias e várias vezes, me diga macaco pelado, qual é o sentido desse filme que você acabou de fazer e que viu tantas vezes? Qual é, diz? NENHUM?! Como assim? Mas você filmou o mundo REAL, coisas REAIS, pessoas REAIS, com uma câmera boa, não foi? O que foi que você captou, então? Não foi a REALIDADE? Por que isso tudo não faz sentido, macaco? Será que a realidade não faz sentido?
Nenhum sentido. A r e a l i d a d e n ã o f a z n e n h u m s e n t i d o. Descrever a realidade o mais fielmente possível NÃO GARANTE que haja sentido! Explicar é diferente de compreender. Por melhor que seja a câmera, por mais tempo que se filme, por mais longe que se vá, ainda assim, nada fará sentido.
Essa é a sua Ciência, macaco pelado. Uma câmera. Cuidado com os filmes que você faz e principalmente com os que você vê. Agora, quer saber um jeito de como dar algum sentido para as coisas que você filma? Quer sim, eu sei. É fácil. Da próxima vez, conte uma história. Não precisa nem de câmera. Esse é o exemplo. Sacou?
Discussão - 3 comentários
Humanos...
Eu diria que o filme é menos explicação do que descrição.
Além disso, ele é apenas *parte* da 'realidade' (não apenas vc captou apenas parte dos sinais - luz e som - deixando o resto de fora - campos magnéticos, cheiros, densidade, campo gravitacional, etc; como captou apenas parte da parte desses sinais, um breve recorte no tempo). E não é tanto que não faça sentido, é apenas chato - a menos que tenha ocorrido no meio algum crime, algum feito heroico, algum pedido de casamento, um flashmob, um harlem shake...
A diferença entre explicar e compreender me parece mais bem exposta no causo do Feynman com o ensino brasileiro.
[]s,
Roberto Takata
E a questão da separação entre 'sentido', 'história' e 'realidade' deve ser vista também sob outra perspectiva.
Elaboramos histórias que nos fazem sentido que não necessariamente tem a ver com realidade. E não digo apenas a respeito de mitologias e religiões.
Mlodinow em seu "O andar do bêbado" narra um experimento em que pessoas consideram certas histórias mais improváveis como mais verossímeis: como considerar uma garota que na faculdade participou de movimentos sociais ter mais chances de, depois de formada, ser "bancária E ativista de causas femininas" do que ser "bancária (seja ou não ativista de causas femininas)".
[]s,
Roberto Takata