Lorraine

lorraineA enfermeira me deu duas fichas de pacientes para atender. Atendi primeiro uma senhora de setenta e cinco anos com náuseas. Resolvi rápido, nada de mais. Depois a chamei. – Lorraine? – Sim, sou eu.

Uma moça de vinte anos de idade, negra, esguia, portando um óculos de lentes grossas respondeu. Os dentes brancos e perfeitos esboçaram um sorriso social. Bonita. Após entrarmos no consultório, comecei a perguntar. O problema era uma diarreia crônica, desde há cinco meses. Teve cinco episódios. Emagreceu cinco quilos. Perguntei se havia alguma relação com a menstruação. Ela pensou um pouco e concluiu que a diarreia vinha aproximadamente uma semana após as regras. Sorriu virando levemente a cabeça mas com os óculos focados em mim. Ela ainda não tinha reparado nesse detalhe e pareceu contente com minha pergunta. Disse que ficava de cama durante o período menstrual, por cólicas e muito sangramento. Perguntei se já havia consultado um ginecologista e ela respondeu que ainda não tinha tido relações sexuais. Ouviu minha argumentação em tom de leve bronca sobre incongruência entre os dois fatos, em silêncio. Disse que ia procurar um, ao final.

Comecei a perguntar mais. Sobre o emprego, estudos, dados familiares e ela foi me contando sobre sua vida com extrema naturalidade. Disse que trabalhava em um supermercado no centro da cidade, organizando as prateleiras de biscoitos e papel higiênico, e que seu salário no contra-cheque era de novecentos reais. Mas, com a infinidade de descontos, recebia um líquido de pouco mais de trezentos. Fez o ensino médio no Colégio Mackenzie porque conseguiu uma bolsa por intermédio da tia, mas que teve muita dificuldade em acompanhar o ritmo da classe. Nessa época, trabalhava no McDonald’s no turno da madrugada. Saía da lanchonete às seis horas da manhã para entrar no colégio às sete. Dormia um pouco na estação de trem. Seu salário então, era de fato novecentos reais, mas ficava muito cansada e também dormia durante as aulas. Um dia a diretora a chamou e disse que dessa forma não seria possível continuar, tinha que escolher entre a escola ou o trabalho. Ela optou pela escola e saiu do emprego, terminando o ensino médio, “aos trancos e barrancos” (sic).

Quando a mãe ficou desempregada, teve que trabalhar novamente e arrumou o tal emprego no supermercado. Mora em Itaquera (extremo da zona leste de São Paulo) e vem de metrô todos os dias para o centro. O metrô é muito lotado e recentemente acabou ficando na “caixa” (afastamento do trabalho por motivos de saúde) porque um rapaz prensou seu joelho direito contra as barras de apoio do trem provocando uma lesão ligamentar. A mãe é divorciada do pai, que não ajuda em casa. Ele ajudava com cento e cinquenta reais mensais mas reclamava muito e ela mesma tomou a iniciativa de fazer um acordo no qual ele foi liberado de ajudá-los logo após completar vinte anos. “Não gosta de homem chorão”. Tem dois irmãos. Um teve problemas com a polícia e esteve preso por alguns meses. Ao sair da prisão, envolveu-se em um acidente motociclístico comprometendo o quadril direito. Agora ele movimenta-se com dificuldade e não trabalha. Ela não gosta muito dele também. “Nunca trabalhou” – primeira frase em tom de queixa que disse desde então. O outro irmão tem depressão e também não trabalha. Ela, portanto, sustenta toda a família com o salário espoliado do supermercado, mas não reclama. Só acha que lhe falta tempo. Inclusive para namorar; e foi quando rimos juntos a primeira vez.

A essa altura, eu me dei conta de que havia esquecido completamente do fato de estar no meio de uma consulta médica. Como quem de súbito fecha um livro envolvente mas leva aquele tempo necessário para livrar-se do universo paralelo criado pelo autor, comecei a me desvencilhar da trama tecida pela Sherazade negra e de óculos e tentei pensar fisiopatologicamente. Solicitei exames e pedi um ultrassom. Receitei-lhe um antiespasmódico intravenoso (sim, toda essa narrativa foi feita sob o jugo de cólicas abdominais). Esperei que ela melhorasse e, depois de disfarçar atendendo mais um ou dois pacientes, sentei-me ao seu lado para “ter certeza de que a medicação estava fazendo efeito”. Eu queria ouvir.

 

(continua)

Discussão - 4 comentários

  1. Maria Helena disse:

    Continua quando? Espero que logo, fiquei curiosa com a Lorraine brasileirinha...

  2. Doutor fazendo anamnese homeopática : )

    []s,

    Roberto Takata

  3. Tati disse:

    Me identifiquei tanto com a situação da moça, que vi nela um pequeno retrato de mim mesma!

  4. [...] narrativas, por sua vez, se exerce de preferência no campo da ação e de seus valores temporais. As narrativas reconfiguram nossas experiências temporais. É daqui que elas retiram seu valor de verdade. Heidegger é [...]

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