O Filho do Pastor e o Padre
Esse moço de chapéu, cachimbo, trajando longas botas e aquelas calças de explorador usadas em filmes de aventura, nasceu em 1890 na cidade de Colorado Springs, no Colorado – Estados Unidos da América. Seu nome: Alan Gregg. Filho de um pastor congregacionalista e uma musicista, logo partiu para estudos em Boston, tal como seus três irmãos mais velhos, cidade onde sua família vivia antes de seu pai ser transferido para o Colorado. Na época em que a foto foi tirada, ele tinha por volta de vinte e nove anos de idade. Alan, se assim podemos chamá-lo, tinha um espírito muito aventureiro. Em 1914, quis alistar-se para a Primeira Guerra Mundial (1914-18), mas pelo Canadá, já que os EUA ainda não havia enviado tropas para o confronto, o que, de fato, só ocorreria em 6 de Abril de 1917. Foi convencido que seria muito mais útil se terminasse a faculdade que ora cursava. Seguiu, então, o conselho de seus tutores graduando-se em medicina pela Harvard em 1916 e, ao final do ano seguinte, após um internato breve, integrou a equipe médica britânica em território europeu (mesmo destino, aliás, do cirurgião brasileiro Benedito Montenegro [pdf], formado em 1909 pela Universidade da Pensilvânia. Montenegro, entretanto, serviu do lado francês do conflito). Mas, voltando ao Alan, no período que seguiu ao seu retorno da Europa, não sabia ao certo qual rumo dar a sua carreira, profundamente impactada pela experiência da guerra. De conversa em conversa, encontrou algumas pessoas interessantes e a uma específica solicitou um “serviço que qualquer outro médico recusaria”. Um serviço que fosse o “mais selvagem e mais difícil” que um médico pudesse ter em tempos de paz. A pessoa a quem ele pediu tal missão escreveu, anos depois, que diante de tal solicitação, tentou fazer exatamente o que lhe foi pedido.
Em Março de 1919, então, Alan Gregg desembarca na cidade do Rio de Janeiro. A foto é desse período.
Mas por que viria Alan a terras brasileiras? “Depois de trabalhar em laboratórios no Rio de Janeiro e estudar a ancilostomíase (“amarelão”) e mosquitos transmissores de malária, Alan foi enviado a rincões remotos do país onde trabalhou em campanhas com equipes de saúde pública locais, tanto diagnosticando, como tratando aldeões infectados pela endemia.”
Conduziu pesquisas e escreveu relatórios técnicos sobre a ancilostomíase e sobre as condições sanitárias gerais do país. Durante os três anos em que ficou no Brasil afirmou ter mudado consideravelmente sua visão da medicina entendendo que a prática médica de então só teria sucesso em sua vertente “preventiva” posto que a “curativa” não tinha, como vimos, um êxito técnico muito significativo; além disso, sua própria carreira de médico teve seus horizontes ampliados ao adquirir aqui a base para a apreciação de outras culturas. “No Brasil de então”, ele relembra em uma de suas cartas a amigos nos EUA, “após descer de um trem, você volta no tempo. Nos jogos infantis, as crianças entoam música gregoriana porque as pessoas não dispõem de melodias mais recentes.” (Eu, cá com os botões do meu avental, pressuponho que Alan possa ter cruzado com algum “parente” desses moleques de cara suja da foto ao lado, a cantar, pelo interior das Minas Gerais, o que seria, neste caso, um avanço no tempo, mas… isso jamais saberemos de fato).
Alan teve dificuldades no trato com a cultura brasileira. Certa vez, conta, ao chegar a um vilarejo, não estava conseguindo convencer os moradores a deixarem-se examinar pela equipe médica. Ele apelou então ao padre da igreja local, um polonês, também em missão. O padre perguntou a Alan se ele vinha levando uma vida dúbia e a razão de desperdiçar dinheiro com aquela pobre gente não seria a de fazer uma “oferenda pacífica” a seu Deus. Alan retrucou perguntando se deveria haver algum motivo para dar comida e dinheiro a pessoas fracas e famintas. Quando o padre disse que seus motivos deveriam ser caridade ou mesmo uma sensação de culpa, Alan sentiu um sufocante desejo de concordar mas, ao invés disso, disse que seu patrão acabara de doar uma quantia de 3 milhões de dólares à Polônia. Isso aparentemente convenceu o padre que concordou em intervir, favoravelmente a Alan, junto a seu rebanho.
O fato é que, depois de tantas experiências, Alan Gregg estava pronto para deixar o Brasil em 1922. Seus nada misteriosos patrões americanos o chamaram de volta aos EUA para integrar a diretoria adjunta da recém-fundada Divisão de Educação Médica da Fundação Rockefeller. Ele tinha um trabalho a realizar. Ao redor do mundo.
Discussão - 3 comentários
[...] Quando entrei a primeira vez no prédio da Faculdade de Medicina, lembro-me bem, tive um tipo de dispneia (vale a visita, agora que está restaurada). “Nem parece que estamos no Brasil” – diziam com orgulho. O intróito é de mármore italiano. A escadaria central é imponente e, ao mesmo tempo, discreta. As salas de aula, tradicionais e belas. Vitrais, janelas, o relógio. As salas da diretoria e da Congregação são máquinas do tempo de austeridade e estilo. Obras de arte. Apenas lá pelo terceiro ou quarto ano da faculdade, não me lembro bem, descobri que nossa belíssima casa fora construída com capital privado dos EUA proveniente da Fundação Rockefeller, por meio de acordos que se iniciaram no longínquo ano de 1916. Também o prédio do Instituto Oscar Freire, da Faculdade de Saúde Pública, do Hospital das Clínicas, além da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, ou receberam incentivos, ou foram totalmente construídos com verbas da mesma fundação. Demorei algumas décadas para me dar conta de tal extravagância. Na medida em que fui me inteirando dos fatos, questões foram surgindo. Por que cargas d’água uma fundação norte-americana com capital gigantesco proveniente da refinação monopolizada do petróleo e outras commodities (como carvão), forjada no pós-guerra civil (presumivelmente um conflito anti-escravidão), financiaria uma faculdade de medicina em um país sul-americano que, apenas algumas décadas antes do início das negociações, era uma monarquia escravagista? Por que o Brasil, e especificamente, a cidade de São Paulo? A medicina praticada aqui e lá era assim tão diferente para haver uma “exportação de tecnologia” dessa monta? Por que a Fundação Rockefeller acatou integralmente o tal relatório Flexner sobre ensino médico financiado por outra instituição (abastecida pelo capital da exploração também monopolizada do aço norte-americano) a Fundação Carnegie? Qual seria a relação entre esses eventos e a vinda de médicos norte-americanos ao Brasil, como Alan Gregg? [...]
[...] magnitude dado à medicina brasileira em particular. Este impulso veio, inicialmente, na forma de incentivo à medicina pública, que ora engatinhava e pagava seus tributos, como vimos, mas proponho que [...]
[…] magnitude dado à medicina brasileira em particular. Este impulso veio, inicialmente, na forma de incentivo à medicina pública, que ora engatinhava e pagava seus tributos, como vimos, mas proponho que […]