DEK H: Habilidade, Habitar, Hábito

 

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Gravura de Eduardo Chillida “Bauen, Wohnen, Denken”, 1994.

O prefixo  hab- em latim forma palavras com três grupos de significados que procurei exemplificar no título do post. O primeiro grupo, ao qual pertence a palavra “habilidade” (habilitas), tem palavras como “hábil” (habilis) e “habilitar”, que é tornar hábil. Em latim, temos ainda habena (portador) e habens (proprietário, rico) que é aquele tem as habentia (propriedades). De fato, o próprio verbo habeo é traduzido como “ter”. Esse grupo de palavras sugere para hab-  um significado de posse, de capacidade, de potencialidade de realização.

O segundo grupo tem como exemplo a palavra “habitar” (do verbo habito) com significado de morar, viver, ficar e seus derivados como “habitante” (habitans), “habitat”, “habitação” (habitatio), entre outros. Aqui, diferentemente, o prefixo hab- parece trazer um significado de demorarse, morar, viver, estabelecerse.

O terceiro e último grupo é encabeçado pela palavra “hábito” (habitus). “Hábito” pode ser traduzido como disposição, inclinação, costume (no sentido de prática, modo, rotina, ou mesmo mania). É a tradução para o latim do grego hexis (ἕξις) que, por sua vez, foi retirado da literatura médica onde até hoje é utilizado com o sentido de “constituição”, “predisposição” orgânica, habitus. (Há o exemplo clássico – os médicos se lembrarão – do habitus marfanóide, característico dos portadores da Síndrome de Marfan). Mas, habitus tem ainda um outro significado que é o de condição, estado, aparência, hábito, aqui no sentido de, veja só, novamente costume (roupa, vestimenta). Em ambos os casos, hab- parece remeter a algo que está em um indivíduo, algo do qual ele é portador, e que se constrói em sua aparência externa, ou em sua forma de comportar-se, ou ainda, de maneira mais interessante, na ambiguidade das duas possibilidades a um só tempo como no dito popular “o hábito não faz o monge”.

Vejamos, então, o que temos até aqui. Aparentemente três campos semânticos independentes: “posse, capacidade, potencialidade”; “demorar-se, morar, viver, estabelecer-se”; “aparência, comportamento”. Mas, um pensamento parcimonioso não se contentaria com uma tal profusão de significados. Aliás, não é mesmo assim que prefixos ancestrais costumam funcionar. Deve haver uma raiz semântica comum que se perdeu com o uso cotidiano e que terminou por cristalizar os três significados separadamente. Tal raiz originária não é facilmente resgatável e restam-nos apenas hipóteses de suas origens. Uma das possíveis hipóteses leva em conta a belíssima palestra proferida por Martin Heidegger em 1951: “Construir, Habitar e Pensar” [1].

Para Heidegger, só construimos coisas porque já habitamos determinados espaços que, desse modo, se tornam “lugares”. Apenas porque alguns lugares determinados já nos pertencem de antemão e de certo modo é que podemos transformá-los com construções e morar neles depois. Heidegger chega a traçar um paralelo entre bauen, palavra do alemão arcaico que abriga os significados de “construir” e “habitar”, e “ser”, como em ich bin, du bist, “eu sou”, “tu és”. Habitar é ser. Nesse sentido é que se pode acrescentar que a capacidade de construir – habilidade – é determinante de como o indivíduo se apresentará e se comportará – hábito -, dado que sua habitação é o que delimita quem ele mesmo é.

 

Notas

1. Bauen, Wohnen, Denken (1951). Conferência pronunciada por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em Vortäge und Aufsätze, G. Neske, Pfullingen, 1954. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. [link para o pdf]

Discussão - 4 comentários

  1. Segundo Webster, confluem para um IE reconsituído *ghabh-, agarrar, tomar.

    []s,

    Roberto Takata

  2. […] aqui uma palavra: hábito. Mas, o que é um hábito? O termo “hábito” traz consigo um sentido originário que reúne três significados principais, a saber, uma capacidade ou virtude (como em “habilidade”), um demorar-se ou […]

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