Sindrome do Coração Partido e as Chagas do Coração

Essa é mais uma daquelas situações improváveis, mas que teimam em existir. Poderia uma emoção muito forte causar uma alteração cardíaca tão grave capaz de levar um indivíduo à morte? Não estou falando de arritmias. Alterações elétricas do coração podem fazê-lo perder seu ritmo regular e, eventualmente, produzir uma situação onde há, de fato, uma parada cardíaca. Arritmias podem ser causadas por uma série de fatores, inclusive traumas, distúrbios eletrolíticos, drogas e também emoções. Mas falo aqui de alterações anatômicas, detectáveis por exames como o ecocardiograma ou ventriculografia realizada no cateterismo. É possível uma forte emoção causar tipo, uma insuficiência cardíaca?

Sim. É possível. E essa situação clínica é chamada de cardiomiopatia de tako-tsubo, mas que também é conhecida como  sindrome do balonamento apical transitório, cardiomiopatia de balonamento apical, cardiomiopatia estresse-induzida, sindrome do coração partido, simplesmente cardiomiopatia do estresse. Não sei se tako-tsubo se encaixaria na definição de epônimos porque não é o nome de um médico ou pesquisador. Tako-subo é uma gaiola para captura de polvos no Japão. Devido ao seu formato bojudo, acharam-na semelhante ao formato do coração de quem teve uma forte emoção e ficou seriamente comprometido (ver figura abaixo).

takotsubo.png
Esquerda. Ventriculografia mostrando grande dilatação anterior do coração. Direita. Vaso tako-tsubo.

Cardiomiopatia quer dizer, literalmente, uma doença do músculo cardíaco, no caso, sempre um tipo de enfraquecimento. Como nessa doença, esse enfraquecimento se segue a uma forte emoção – perda de filhos ou cônjuge – ela tem o nome de sindrome do coração partido. É uma causa conhecida de arritmias letais e até ruptura do ventriculo, tal é o afilamento de sua parede. A notícia boa é que, passada a fase aguda e de maior perigo, a recuperação é completa (ad integrum), sem deixar sequelas.

Recentemente, um artigo chamou a atenção para o fato de que esses pacientes podem apresentar-se em situação de choque cardiogênico, uma falência tão grande do coração, que a pressão arterial e o fluxo de sangue são insuficientes para manter os orgãos funcionando adequadamente. É grave e tem que internar em UTI. No artigo, os autores mostram diferenças clínicas, laboratoriais e ecocardiográficas nesses pacientes. Ao ler o artigo, tive uma ideia brilhante!!

Não pude deixar de lembrar das minhas aulas de patologia onde vi vários corações acometidos com a brasileiríssima Doença de Chagas.

Muitos desses corações apresentam o que os patologistas chamam de “aneurisma de ponta” (ver figura ao lado do excelente artigo do Eduardo Nogueira da UNICAMP). Esse aneurisma da ponta do ventrículo esquerdo é muito semelhante à dilatação produzida pela cardiomiopatia de tako-tsubo.

Segundo o saudoso professor Köberle da USP de Ribeirão Preto, a explicação para o aneurisma da ponta nos chagásicos é um desbalanço entre os sistemas nervosos autonômicos simpático e parassimpático. As terminações parassimpáticas desaparecem do tecido miocárdico e há uma hiperatividade simpática, “suficiente o bastante para causar lesões miocárdicas”. Köberle conseguiu reproduzir o mesmo tipo de lesão em ratos injetando adrenalina, o hormônio do sistema simpático.

Minha ideia brilhante foi imaginar que a explicação para a cardiomiopatia de tako-tsubo fosse a mesma! Fortes emoções causam uma sobrecarga de estímulos simpáticos no coração e podem – por que, não? – causar uma alteração anatômica semelhante ao aneurisma de ponta da cardiomiopatia chagásica. Fiquei muito feliz com a minha “inteligência” e pensei em mandar um artigo para uma revista internacional.

Mas, como acontece com a quase totalidade das minhas ideias brilhantes, alguém, em geral, um norte-americano, já a concebeu antes de mim. E para evitar que os leitores desse blog postem a referência antes, aqui está ela e abaixo. Não ganharei medaglia porque não mereço. Ia escrever um paper. Escrevi um post. Meno male.

Figuras. Ventriculografia: Nature Medicine; Vaso: Canadian Journal General Internal Medicine.

Wittstein IS, Thiemann DR, Lima JA, Baughman KL, Schulman SP, Gerstenblith G, Wu KC, Rade JJ, Bivalacqua TJ, & Champion HC (2005). Neurohumoral features of myocardial stunning due to sudden emotional stress. The New England journal of medicine, 352 (6), 539-48 PMID: 15703419

Ateus e Afins

http://cafasorridente.files.wordpress.com/2010/02/duvida-cruel-02.jpgAlgumas definições: Se você acredita que a existência de Deus pode ser provada então você é um gnóstico. Se acha que não, então é um agnóstico. Podemos chamar de teísta o que tem fé na existência divina. Ateu, seria o que não tem. Quem é não-religioso é laico. Quem é religioso é… religioso mesmo. Ateísmo não é uma crença. É ausência de crença e isso faz muita diferença: ausência de crença em Deus é bem diferente da crença que não há nenhum Deus. Pode-se chamar de “anti-teísmo” (ou “não-teísmo”, que apesar de logicamente correto, eu particularmente acho estilisticamente inadequado) a “crença” e/ou procedimentos racionais que geram argumentos a favor da não-existência de Deus. Há quem não concorde com essas definições. Aguardo os protestos.

Mas, um jeito interessante de saber a diferença entre o que chamei de ateísmo e anti-teísmo é dizer ao suposto ateu “eu não acredito que você não acredita!” Sim, porque se ele for anti-teísta vai entrar no processo de explicação de sua não-crença, o que, além de ser muito chato, é inócuo ao interlocutor teísta. Surge a discussão-sem-fim, o sexo dos anjos e tudo aquilo que quem é ateu já viu (e participou) pelo menos alguma vez na vida. Se ele for ateu e a declaração do interlocutor for, de fato, sincera, terá que se acostumar a conviver com a dúvida de outrem. A resposta seria um “então, tá…” o que encerraria a discussão ou então começaria outra, no campo do respeito pessoal. No caso de tratar-se de uma pessoa com a qual se convive (ou até se gosta), acostumar-se com a desconfiança do outro pode se constituir num problema não desprezível. Seria algo que a outra pessoa não reconhece em você, ou não aceita.

Para alguns, a convivência com essa dúvida é realmente muito desconfortável. Daí, a meu ver, surgir o anti-teísmo engajado a la Dawkins de modo que a atitude pró-ativa em combater o teísmo e seus efeitos colaterais se converta na certeza de um ateísmo interno castiço e iluminado. Combater é um jeito de personificar o “inimigo” e, por oposição, se diferenciar dele.

Por outro lado, a inquietação de não conseguir demonstrar o que se passa no interior da “pessoa-do-seu-ser” dado que é bastante difícil falar de algo que não se tem, torna o ateu, um solitário par excellence. Isso nos remete ao problema do Bem já discutido em outro post. Será que o ateu mais profundo é o mais solitário? Lembremos que TODOS os cultos religiosos envolvem cerimônias em grupo e manifestações de fé compartilhadas.

A fórmula “não-acredito-que-não-acreditas” obriga o ateu a raciocinar se o que ele tem é uma Não-Fé ou uma Fé-No-Não. Em declarando-se ateu, onde você se posicionaria?

Foto daqui.

Quando os Especialistas Falham

Segundo Edgard Morin: “O especialista torna-se ignorante de tudo aquilo que não concerne a sua disciplina.” O buraco aumenta quando o “não-especialista renuncia prematuramente a toda possibilidade de refletir sobre o mundo, a vida, a sociedade, deixando esse cuidado aos cientistas, que não têm nem tempo, nem meios conceituais para tanto.”

Têm sido muito frequentes, citações de médicos contra a vacinação da gripe A/H1N1, sendo o médico por si só, já um especialista em saúde. Pelo que tenho visto, os títulos de especialista, PhDs, doutorados ou quaisquer que sejam, configuram-se exatamente na definição moriniana de “especialista”. Por “tornar-se ignorante de tudo aquilo que não concerne a sua (sub)disciplina”, quando emite uma opinião sobre assuntos diversos de sua área especificíssima, ele o faz como qualquer outro leigo. Isso pode não ter maiores consequências desde que ocorra numa esfera privada.

Na nossa sociedade entretanto, reina uma “cultura dos especialistas”. Quando um especialista fala, ele fala por nós, que “renunciamos a toda possibilidade de refletir sobre o mundo” ou os fatos que nos cercam. Numa esfera pública, portanto, a fala de um especialista tem um peso bastante diferente, mesmo que ele emita apenas uma opinião pessoal.

Mas e quando esse “especialista” fala uma bobagem?

Ao confundir o público com o privado, ao não avaliar adequadamente o peso de sua opinião pessoal sobre um assunto sobre o qual não tem todos os dados para raciocinar, o “especialista” se torna então, um refém de seu discurso. Sequestrado pelas forças políticas e sociais nas quais está inserido, sua fala se encaixará perfeitamente no discurso ideologizado de quem tem interesses outros ou simplesmente é vítima de um devaneio ignóbil conspiratório qualquer.

É exatamente isso que está acontecendo com os médicos que se posicionaram contra a vacinação da gripe A/H1N1. Uma importante sociedade médica publicou um editorial de um de seus colunistas médicos questionando a vacinação para diabéticos, contrariando recomendações do próprio ministério da saúde. (Esse texto foi retirado do ar como editorial e colocado como opinião pessoal. Menos mal. Diminui a confusão do público com o privado.) Como essa manifestação, muitas outras são citadas por pessoas que se posicionaram contra a vacinação. Entretanto, a decisão de ser contra a vacinação não é uma decisão racional. É uma decisão baseada em “medos”, desinformação, opiniões preconceituosas, “conversas de comadre”, emails falsos ou com verdades parciais e outras tantas maneiras altamente eficazes de transmitir mensagens que manipulam “mitos”. Cansei de escrever que a ciência não matou os mitos do homem (aqui, aqui e aqui, para citar alguns). Muitas vezes, meus colegas de condomínio (sciblings) mal me compreendem por repetir esse bordão, entretanto, aqui está uma prova viva de que “argumentos racionais” muitas vezes não são mecanismos geradores de certezas eficientes no ser humano.

Gostaria de concluir dizendo que, antes de mais nada, a vacinação é opcional, no caso específico da gripe suína. Quem não quiser se vacinar, ora, que não se vacine! A epidemia esse ano será bem mais branda, eu aposto. A mortalidade da nova gripe é ainda um mistério e cada país parece estar calculando a sua, o que faz mais sentido, tendo em vista as condições climáticas, sanitárias e populacionais de cada um. A doença é diferente da gripe sazonal. Seu público-alvo é diferente. Eu é que não vou experimentar. O que devia ser feito, foi. Agora é esperar o inverno.

This picture depicts a map of the world that shows the  co-circulation of 2009 H1N1 flu and seasonal influenza viruses. The  United States, Europe, Thailand and China are depicted. There is a pie  chart for each that shows the proportion of laboratory-confirmed  influenza cases that have tested positive for either 2009 H1N1 flu or  other influenza subtypes. The majority of laboratory-confirmed influenza cases reported in the United States and Thailand have been 2009 H1N1  flu.

Ciência e Poesia

¡Que viva la ciencia! ¡Que viva la poesía!
Jorge Drexler – Mi Guitarra y Vos

António Cícero responde hoje na Folha (para assinantes) a pergunta “o que é poesia?”. Depois de fazer uma bela e sucinta caracterização dos discursos orais e escritos, em determinado momento, ele escreve:

“Os textos que dizem coisas de caráter prático ou mesmo cognitivo, tais como os textos técnicos e científicos, são mais ou menos assim, abertos e fluidos, pois, caso contrário, o que dizem acaba por deixar de ser verdadeiros, de modo que eles se tornam obsoletos e deixam de ser lidos, isto é, deixam de se concretizar.”

Esses textos são instruções. Têm o objetivo de levar um conhecimento ou técnica ao seu leitor. Esse é seu fim. Se a técnica muda ou o conhecimento perde de alguma forma seu valor, os textos, ato contínuo,  se tornam descartáveis. A poesia e a literatura seriam então, textos não descartáveis. Para isso, seria preciso que não fossem um simples meio para que se transmita uma técnica ou conhecimento. A poesia e a literatura deveriam ser um fim em si mesmo, ou como escreve Cícero, “… textos que não estão sujeitos a esse tipo de descartabilidade são aqueles cujo valor – atenção: neste ponto, não há como não empregar juízos de valor – não depende de serem verdadeiros ou falsos”. Os textos literários pertenceriam “mais à ordem dos monumentos que dos documentos”, brinca Cícero, fazendo poesia.

Imediatamente, meu cérebro começou a procurar exemplos que contradissessem um de meus colunistas prediletos com aquele mesmo prazer mórbido dos alunos CDFs (acho mais legal que nerd) que tentam pregar peças nos pobres professores. Me perguntei então, se a poesia não poderia transmitir algum tipo de conhecimento ao invés apenas de permitir uma contemplação “monumental” ou se um livro ou artigo científicos não poderiam perenizar-se não pelo conhecimento seminal que proporcionaram, mas talvez, por um encadeamento de ideias elegante, uma condução cognitiva suave e especial que poderíamos, por que não, chamar de bela. Ao organizar assim meu pensamento, os exemplos enxamearam com o zumbido característico da abundância.

A crítica literária moderna trouxe esse tipo de pensamento à ciência. Contra um artigo somente outro artigo. Uns acham que isso é “pós-moderno” demais. Pode ser, mas acho bem mais divertido ver “conhecimento” em poesia e poesia em “literatura científica” que ficar procurando a Verdade em cada rodapé das coisas que leio. Separar as coisas como quer Cícero também é meio sem graça.

~ ~ ~ *** ~ ~ ~

Se por um acaso, algum leitor quiser ilustrar com exemplos, por favor, a caixa de comentários está à disposição.

Foto Intense Science de nenonafirestardragonstrgteg1’s photostream at Flickr.

O Ato Médico

O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º O exercício da medicina é regido pelas disposições desta Lei.
Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades
humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua
capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.
Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção
à saúde para:
I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;
II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;
III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.”

Está havendo uma discussão, na minha opinião necessária, porém mal conduzida, sobre quais as responsabilidades do médico na sociedade brasileira. Tentarei, atendendo a pedidos, esclarecer meu ponto de vista sobre o assunto devagar, visto que o problema requer uma reflexão que o calor da discussão pode confundir. A discussão é sobre o que um médico pode ou não fazer, cujo projeto de lei, ora em trâmite no Congresso Nacional, se convencionou chamar de lei do “Ato Médico”.

Como está explícito nas primeiras linhas do projeto acima, sua pretensão é reger o exercício da medicina. O que tem sido alegado por muitas sociedades médicas, em especial a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), é que a profissão médica, apesar de muito antiga, foi a última a ter seu exercício regulamentado por lei. Esse fenômeno ocorreu também em outros países. Outras profissões da área da saúde, bem mais recentes, como nutricionistas e fisioterapeutas, tiveram sua regulamentação estabelecida há vários anos. Essa indefinição de papéis permitiu o aparecimento de uma zona cinzenta onde vários profissionais poderiam atuar sobre um mesmo problema, sobrepondo-se. Nutricionistas e nutrólogos, psiquiatras e psicólogos, fisiatras e fisioterapeutas, e mesmo enfermeiras e médicos, teriam de discutir o que pertence à esfera profissional de cada um de modo que também as responsabilidades ficassem claras. A tentativa de definir o papel do médico foi de encontro com o espaço ocupado por outras profissões e a chiadeira foi muito grande.

De um lado, os médicos que buscam definir legalmente sua área de atuação; de outro, os vários profissionais da área da saúde se sentiram invadidos e tolhidos profissionalmente, já que vinham exercendo seu papel com autonomia e excelência, mas que agora terão que, de certa forma, subordinar-se a um profissional médico. Achei o tom das declarações de ambos os lados inadequado. Posso criticar especificamente as declarações das sociedades médicas: o que deveria ser uma carta de compromissos está se tornando uma disputa por territórios.

Essa é uma daquelas leis que, no meu caso específico, não afetará em nada o meu trabalho. Se pensarmos bem, a questão específica é sobre responsabilidades. Responsabilidades geram consequências. O número de processos civis contra médicos cresce ano a ano. Eu já participei como perito e membro de comissões técnicas ou éticas de processos contra médicos. Em uma unidade de terapia intensiva de um hospital de grande porte nas quais internam-se políticos, intelectuais e celebridades em geral, nunca vi ninguém – médico ou não – clamando por ser responsável por algum procedimento ou conduta relacionado a um paciente complexo ou com uma família complexa (podemos definir isso depois). O que vejo é exatamente o contrário. Ninguém quer assumir responsabilidade alguma – repito, médico ou não. Grande parte dos profissionais da equipe multidisciplinar que atendem nas UTIs nas quais trabalho, são A FAVOR do tal Ato Médico! Eu particularmente, trabalho muito com fisioterapeutas. Nunca precisei prescrever alguma conduta. Sempre pude discutir abertamente com profissionais que, muitas vezes, eram bem mais experientes que eu. Fiz-lhes a seguinte pergunta: “No caso de um médico prescrever uma extubação (retirada da cânula orotraqueal que conecta o paciente a um ventilador mecânico) com a qual você não concordasse, qual seria sua conduta?” A grande maioria tentaria argumentar com o médico, no que muitos, dizem, teriam sucesso. “E caso o médico se mostrasse irredutível?” A esmagadora maioria realizaria o procedimento com a alegação de que “a responsabilidade final cabe ao médico!” Ela tem que caber a alguém, afinal.

Como médico, também tenho o mesmo problema com outros médicos. Sou plantonista de UTI e estou vendo um paciente complexo. Avalio, penso, pesquiso e tomo algumas condutas que julgo serem pertinentes. Chega o médico do paciente e toma condutas, digamos, totalmente díspares. O que fazer? É uma questão de responsabilidades. Posso tentar discutir, apresentar evidências de que aquilo não é o correto, mas a palavra final cabe a ele. E, agora chegamos ao ponto: se a conduta se mostrar equivocada, a responsabilidade (civil e até criminal) é dele, assim como as penas da lei! Qualquer discordância de minha parte tem que levar isso em consideração. O médicos intensivistas discutem muito (o que também acho que é uma discussão mal posta) sobre a questão das UTIs “abertas” e “fechadas”. É exatamente a mesma situação!

Há uma necessidade de regulamentação da profissão médica. Há uma necessidade premente de estabelecer o responsável técnico por procedimentos relacionados à saúde e sua manutenção. Suspeito que essa delimitação tenha como objetivo consequência um número maior de processos civis (que aumentam ano a ano). Se por um lado, acusações de arrogância e falta de bom senso por parte dos médicos são pertinentes (algumas situações já presenciadas por mim mesmo!), por outro, não há como negar uma certa hipocrisia por parte das sociedades não-médicas: a quem deverá ser imputado um eventual erro? Qual o grau de responsabilidade que se pode atribuir à cada procedimento específico? E quanto ao diagnóstico? São questões difíceis de responder sem ideologizar o debate que, para o meu gosto, já está ideologizado demais.

No dia em que uma lei substituir o entendimento e o relacionamento cordial entre profissionais de alto nível, sejam eles médicos de várias especialidades ou uma equipe multiprofissional da qual faz parte um médico, eu espero estar aposentado. Não delegarei jamais meu relacionamento com qualquer profissional da saúde, seja médico de outra especialidade, seja não-médico, a um conjunto de regras e definições. Prefiro uma fórmula mais buberiana: “Eu” reconheço “tu” como o “outro” ao meu lado e em “tu” vejo o profissional que sou e também o que queria ser: sob TODOS os aspectos, cuidar de pessoas, para mim, é um encontro.

Saúde, Doença, Êxito Técnico e Sucesso Prático

ResearchBlogging.orgUma série de posts do Cretinas (aqui e aqui) servirão como mote para uma delimitação que há tempos eu gostaria de ter feito. Nos posts é feita uma crítica sobre os gastos do SUS com métodos “alternativos” de tratamento como homeopatia, acupuntura, tai-chi-chuan, etc. Longe, mas muito longe mesmo, de defender o governo quanto a algumas políticas de saúde adotadas, e de defender tais práticas “alternativas” sobre as quais já confessei minha ignorância (aqui e aqui), acho que chamar esse tipo de atitude de desonestidade intelectual é “pegar um pouco pesado”. Em particular, pelo fato de que, na minha opinião, há uma confusão conceitual entre saúde e doença na base desse raciocínio e que será o motivo desse post.

(Antes de mais nada, ninguém perguntou aos pacientes submetidos a esses programas se eles sentiram melhor ou não. Era a primeira coisa a ser feita antes de qualquer tipo de crítica. O acolhimento que determinadas práticas dentro de um contexto do “cuidado em saúde”, proporcionam é, por si mesmo, terapêutico. Pelo que pude apurar (informalmente), houve aumento dos gastos em decorrência do aumento enorme das solicitações desse tipo de programa. Ver o outro lado é fundamental.)

Mas façamos um exercício – como Zé Ricardo Ayres fez – para tentarmos aumentar nossa compreensão sobre o binômio saúde-doença. Se perguntarmos a um grupo de pessoas “você se sente saudável?” quantos responderiam “sim”, quantos “não” e quantos não saberiam dizer, é difícil de estimar. Se, por outro lado, perguntássemos “você está doente?” as respostas seriam presumivelmente mais uniformes. A ideia aqui será demonstrar que saúde e doença fazem parte de universos bastante diferentes, falam de coisas diferentes e de maneiras inteiramente diferentes. Alguém com diabetes controlado ou soropositivo para o HIV pode responder que se sente saudável apesar de ter de fato, uma doença. Por outro lado, um indivíduo em quem não se diagnostica nenhuma doença, pode não ter a vivência da saúde. A alguém que respondesse “sim” à pergunta se estava doente, poderíamos continuar perguntando “mas que tipo de doença você tem?”. Entretanto, ao que respondeu “sim” à pergunta se estava saudável, não faz sentido perguntar “mas que tipo de saúde você tem?”. Talvez, fosse mais racional perguntar “o que você quer dizer com isso?”. Já, perguntar ao “doente” “o que você quer dizer com estar doente, ou estar diabético ou estar com HIV?” é que não faz sentido! O significado de “diabetes” e “HIV” está validado em qualquer discussão sobre o assunto. Isso quer dizer que tem validade  intersubjetiva (entre sujeitos). Dito de outro modo, no caso do diabetes, uma “racionalidade de caráter instrumental já deixou claro de antemão para os participantes do diálogo que o conhecimento das regularidades e irregularidades do nível de glicose circulante em nosso sangue fornece elementos para prever e controlar alterações morfofuncionais indesejáveis, com efeitos que vão de sensação de fraqueza até a morte.” O lado da saúde, não tem a mesma validação. Existe, portanto, uma assimetria enorme de legitimidade de discursos, favorecendo o que se chamou de discurso casual-controlista da abordagem biomédica que predomina amplamente. Essa predominância é que permite a algumas correntes tachar as atuais práticas de saúde como “desumanizadas” por um lado e, por outro, abre a perspectiva a críticas sobre a cientificidade de determinadas políticas, em especial, às relacionadas à medicinas alternativas, como fez o Cretinas.

É preciso separar os conceitos de êxito técnico e sucesso prático. Êxito técnico refere-se à razão instrumental da ação – por exemplo, se uso um vasodilatador para redução da pressão arterial, consigo diminuir o risco de acidentes cardiovasculares, ponto final. Sucesso prático diz respeito à atribuição de valores e implicações simbólicas, relacionais e materiais do fato de um paciente ser hipertenso. O que significa para esse paciente assumir a identidade de hipertenso? Nas palavras de Ayres, “êxito técnico diz respeito a relações entre meios e fins para o controle do risco ou dos agravos à saúde, delimitados e conhecidos pela biomedicina. O sucesso prático diz respeito ao sentido assumido por meios e fins relativos às ações de saúde frente aos valores e interesses atribuídos ao adoecimento e à atenção à saúde por indivíduos e populações”. As relações são objeto da razão instrumental e da ciência médica, já sabemos. Já, as ações de saúde causam efeitos nos indivíduos e os significados desses efeitos – o sentido – são objeto de uma razão prática. É aqui que a coisa se complica. A razão prática é eminentemente ética: se preocupa com os meios para atingir os fins. Digo a um paciente “o Sr. é hipertenso, precisa tomar esse remédio!” Ele poderia responder “Dr., não tenho dinheiro para tomar esse remédio; ou, não quero tomar esse remédio; ou ainda, não sou hipertenso!” Como proceder? Deveria mostrar a esse paciente um artigo dizendo que é melhor ele tomar a medicação? Um êxito técnico não garante o sucesso prático. Cabe discutir se o contrário, o sucesso prático sem sua contrapartida instrumental do êxito técnico, é lícito ou não. Entretanto, só essa discussão já valeria todo o trabalho do post, pois sua simples instauração reconhece que a medicina não é redutível à ciência médica.


Fonte: Ayres, J. (2007). Uma concepção hermenêutica de saúde Physis: Revista de Saúde Coletiva, 17 (1) DOI: 10.1590/S0103-73312007000100004

Battisti, Lula e a Prática Médica

O Ecce Medicus não é um blog sobre política. Entretanto, o caso Battisti se desenrolou de tal forma que gostaria de usá-lo como exemplo para discutir o caráter das decisões médicas. O leitor deverá estar pensando “mas o que isso tem a ver?” Eu digo que bastante, como tentarei mostrar nas próximas linhas. Um resumo da história pode ser encontrado aqui e cada um pode tirar suas próprias conclusões sobre a legitimidade da extradição.

Cesare Battisti participou de um grupo armado há 30 anos ao qual são atribuídas 4 mortes. Tem um histórico de fugas para França e Brasil onde foi detido em 2007. O estado italiano o considera um assassino. Foi julgado em condenado à prisão perpétua sem exposição à luz solar. A Itália solicitou sua extradição e o governo brasileiro vem resistindo a essa decisão, que foi parar no Supremo Tribunal Federal. O Supremo, depois de meses de avaliação, optou pela extradição em decisão bastante apertada (5×4) e deixou a decisão final ao presidente Lula. A Lula, portanto, caberá decidir agora, praticamente, sozinho, sobre o futuro de Cesare Battisti. Alguns devem estar pensando que é uma decisão bastante difícil, essa de definir o destino e mesmo a própria vida de um ser humano. E é mesmo. Como Lula deve proceder? Que tipo de arcabouço teórico Lula deveria utilizar-se para tomar essa decisão específica? Grosso modo, se levar em conta sua ideologia, por exemplo, não o libera. A Itália de Berlusconi está mais à direita que nunca. E se estiverem caçando as bruxas de um “comunismo” que já não existe? A própria França, tradicionalmente abrigou Battisti por um período. Por outro lado, se tomar por base o fato de a Itália ser um país com o qual o Brasil mantém relações diplomáticas importantes, ser um estado soberano, ter elegido um primeiro-minstro democraticamente e ter um sistema judiciário confiável, deve-se respeitar a dor das famílias que perderam seus membros e a decisão do tribunal italiano, extraditando Battisti. Não importam os argumentos aqui. Importa a decisão de um homem sobre a vida de outro homem.

De que adiantaria demonstrar cartesianamente o envolvimento de Battisti nos assassinatos? Que tipo de ideologia poderia justificar um crime? A discussão é interminável. Nos interessa o caminho que será necessário para chegar a uma decisão baseada em algum tipo de racionalidade, e não simplesmente, a opinião e as idiossincrasias da arbitrariedade. Qual guideline, diretriz, recomendação poderia ajudar Lula a tomar uma conduta como essa? O direito tem uma figura de racionalidade chamada jurisprudência que pode basear uma decisão em decisões tomadas anteriormente. Mas Lula, não é um juiz! Estes por sua vez, já deram seu veredito. Cabe a Lula decidir e decidir baseado no coração ou no medo, não me parecem formas racionais de decisão.

Quando digo que me sinto só e que a ciência é um luxo com o qual não se pode contar sempre é sobre isso que estou falando. Deve ser o mesmo sentimento do presidente Lula agora.

Sobre a Cópia de Posts

Esse post é apenas para dizer que o Ecce Medicus vem tendo alguns de seus posts inteiros copiados sem menção ou crédito. Infelizmente, descobri que isso tem sido uma prática comum e outros colegas do Scienceblogs.com.br têm sofrido o mesmo tipo de agressão. Sabemos também, que pessoas de pouca experiência estão tendo acesso às ferramentas que permitem publicar um blog e que, muitas vezes, copiam os posts que acham interessantes em outros blogs, sem dolo. Entretanto, é preciso que estas pessoas sejam informadas rapidamente e tomem ciência do que é uma licença Creative Commons e assim como, das iniciativas brasileiras que tratam do problema.

A cópia de posts inteiros ou em parte, sem crédito, é fortemente desencorajada pela blogosfera. Há medidas no Blogger e em outros sítios de hospedagem contra o roubo de conteúdo. O Ecce Medicus está protocolando uma queixa contra o blog envolvido nas cópias. Caso os créditos sejam acrescentados e um pedido de desculpas seja postado, retiraremos, com prazer, as providências tomadas. Obrigado, aos leitores que me avisaram do ocorrido, em especial, ao Felipe Frog do Psicológico.

Espero que a causa desses problemas não seja a má intenção, mas sim, a falta de educação crônica que assola o país. A blogosfera de divulgação científica tem mesmo uma dura missão aqui.

Atualização

Por outro lado, as citações são sempre muito bem vindas. São elas que fazem um blog crescer em visibilidade e autoridade. Obrigado a todos que citam e linkam o Ecce Medicus.

Sobre Prêmios e Responsabilidades

“Quando comecei a escrever este blog, não sabia exatamente onde ia chegar. Eu queria simplesmente organizar uma porção de idéias que povoavam minha cabeça e, quem sabe, um dia colocá-las em um livro. Pela sua própria forma de ser, um weblog permite que você se cite e isso acaba por construir uma matriz de conceitos que, assim postos, são mais fáceis de visualizar e entender. Além disso, e talvez mais importante, um weblog permite que você coloque suas idéias à prova. Os comentários são úteis não para testar a popularidade mas, para saber se o que estamos pensando não contém erros lógicos, preconceitos, inconsistências ou incoerências.”

Assim começa o post do aniversário de 1 ano do Ecce Medicus, que foi em fevereiro de 2009. Passados 7 meses, ainda não sei onde essa aventura – que toma um tempo enorme – vai parar! Isso porque o prof. Osame Kinouchi e o Laboratório e Divulgação Científica da USP – Ribeirão Preto, organizaram um concurso para blogs chamado Prêmio ABC (Anel de Blogs de Ciência). Foi feita uma votação entre os blogs cadastrados no ABC, que poderiam votar em três blogs de cada categoria. É portanto, uma votação de pares. Blogueiros votando em blogueiros! Fiquei sabendo ontem que o Ecce Medicus venceu a categoria “Mente e Cérebro, Saúde e Medicina”! Os outros blogs participantes da categoria são simplesmente fantásticos, alguns devidamente linkados no blogroll ao lado (ver a lista completa aqui).

O fato é que um prêmio como esse, eleito por pares, em meio a tantas opções de qualidade, é simplesmente inimaginável para mim. O dia-a-dia de um médico comum é algo totalmente fora desse fantástico mundo. Escrevo o que vivo, o que leio e o que me perguntam. Não sou repórter; tampouco divulgador científico. Fiquei me questionando muito sobre porque um prêmio de tal relevância foi conferido ao Ecce Medicus. Confesso que não encontrei resposta satisfatória. Um concurso sempre comete algumas injustiças.

Fica então, a surpresa de saber da relevância do que é aqui publicado; a alegria e orgulho enormes de ser reconhecido pelos pares (o que para um médico é absolutamente tudo); e a responsabilidade de ser universal, como disse Dostoiévsky, escrevendo sobre sua própria aldeia.

Não poderia deixar de agradecer a pessoas/blogs que são parte integrante desse projeto. Em especial o Rainha Vermelha do Átila e o Brontossauros em Meu Jardim do Carlos Hotta, chefes, líderes e amigos. Ao prof. Osame Kinouchi e ao LDC, pela iniciativa. Esse prêmio é dedicado a todos os amigos/blogueiros do Scienceblogs Brasil e aos leitores do Ecce Medicus, com quem aprendo diariamente.

Muito Obrigado.

Ratzinger: Covardia e Misericórdia

“Além disso, em solidariedade a Sérgio Cabral, o gerente médico do centro de saúde que participou da cirurgia e a toda a equipe de médicos, enfermeiros e auxiliares que salvaram a vida dessa criança, gostaria profundamente de ser excomungado. A excomunhão é uma punição pública exemplar. Uma pecha. Um rótulo, quase uma maldição, mas que nesse caso se transformou numa das maiores vitrines da miséria de nossa sociedade e das mazelas de nossas instituições. Se lutar contra as injustiças e desigualdades ancestrais merece como pena a excomunhão então, quero ser excomungado já. Por essa razão, um de meus maiores ídolos é Espinoza: Excomungado de duas religiões!

Excomungai-me, Dom José! Pelo amor de Deus”

Assim começa o post de 9 de Março de 2009 num momento em que a notícia da excomunhão dos médicos que participaram da curetagem de uma criança de 9 anos com gravidez gemelar, violentada pelo padrasto, portanto de altíssimo risco, foi veiculada pela imprensa. Depois, um arcebispo de Roma fez declarações mais brandas e usou o termo “misericórdia”.

Agora, o Vaticano ratifica sua posição e mantém todas as punições de acordo com seu juízo do direito canônico (a partir de post do Pharyngula que o chamou de Monolito Inumano!). Direito canônico ora dominado pela Congregação para a Doutrina da Fé, orgão presidido pelo próprio Ratzinger antes de tornar-se papa e que tem íntima relação com a instituição da Santa Inquisição. Essa é a fé da maior instituição cristã da Terra. Uma fé “degenerada em contradição da vida, em vez de ser tranfiguração e eterna afirmação desta!” “Uma vontade de nada canonizada.”* Perdeu-se uma belíssima oportunidade para se demonstrar o real significado da palavra MISERICÓRDIA. Uma covardia e uma pena…

*Citações do aforismo 18 de “O Anticristo” F. Nietzsche.