One Cup, three billion hearts…*

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O anjo das pernas tortas
A Flávio Porto

A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés – um pé-de-vento!

Num só transporte a multidão contrita

Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: – Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um o
Dentro da meta, um 1. É pura dança!

Rio de Janeiro, 1962

(Vinicius de Moraes in ‘Livro de Sonetos‘)

Todos juntos na mesma emoção?

A Fifa estima que a audiência televisiva acumulada da Copa do Mundo de 2006 na Alemanha foi de cerca de 26 bilhões de telespectadores, ou mais de 400 milhões por jogo. E acredita que esse será o tamanho da audiência da Copa 2010 na África do Sul. [1] Uma audiência que perde apenas para os Jogos Olímpicos: em 2008, em Pequim, a audiência acumulada total estimada foi de 40 bilhões e 4,7 bilhões de telespectadores únicos [2, 3]. Fazendo uma extrapolação linear, a audiência da Copa do Mundo de Futebol alcança um universo de 3,06 bilhões de pessoas – nenhum esporte isoladamente atrai tanto público.

A história oficial (adotada pela Fifa [4]) reconhece tsu’chu (蹴鞠 cùjú – cù ‘chutar’ e jú ‘bola de couro’) como um precursor do futebol. Como o conhecemos, o futebol derivou de um jogo com diversas variantes e que daria origem também ao rúgbi. (A rigor, futebol é uma designação genérica de diversos
esportes aparentados.) A maior parte das transformações com sucessivos códigos de regras deu-se na Inglaterra. Pelo código de Cambridge, introduziram-se o chute a gol, o passe para a frente, a lateral e o impedimento de se correr enquanto a bola era segura pelas mãos. Sim, o jogo era jogado a maior parte do tempo com as mãos e ainda assim era chamado de futebol – football de foot ‘pé’ e ball bola – segundo alguns autores, em oposição a jogos de montaria como polo; era jogado a pé (isso explicaria que jogos em que o contato com o pé seja proibido tenham sido denominados football, mas muitas palavras calcadas empregam termos equivalentes a ‘pontapé, chute’ na composição da palavra). A antiguidade do termo foot-ball, sendo o primeiro registro datado de 1423-1424 [5] (em uma lei que o proibia!), atesta a antiguidade de suas raízes mesmo na Europa). A formação do The Football Association na Inglaterra com suas regras (as Laws of the Game, ‘Regras do Jogo’ – pouco modificada até os dias de hoje), em 1863, demarca a origem do futebol moderno – que é designado association football, mas, dada sua proeminência ante às demais codificações, é conhecido simplesmente como football e formas variantes. Em uma corruptela com a palavra ‘association‘, surge na Inglaterra, em fins do século 19, a variante assoccer – em 1899, a variante é encurtada ainda mais para soccer, enquanto o rúgbi era chamado de ‘rugger‘. Mas na Inglaterra o futebol é designado mesmo como football. (Nos EUA, soccer continua a designar futebol e football é usado para se referir ao futebol americano. Na Austrália, há o futebol australiano que chamam de Australian (rules) football e o futebol é football mesmo, sendo chamado também de soccer [6-7] – mas footbal pode designar diferentes modalidades/codificações a depender da região.)

Na Itália o jogo é denominado de calcio (‘chute’), do lat. calceus (‘calçado’) > calx, cis (‘calcanhar’) desde os tempos da encarnação medieval do ancestral do futebol. [O calcio fiorentino ainda é jogado em festivais (no jogo a bola pode ser impulsionada com as mãos e com os pés, o número de jogadores depende do tamanho do campo e há dez juízes). O termo calcio apoia a interpretação predominante de que o significado original de footbal associava a condução da bola com os pés.] Na maioria das demais línguas, ou se emprega por empréstimo direto o termo football – a prática se espalhou pelo mundo por intermédio dos trabalhadores ingleses nas diversas colônias do Império Britânico e das companhias transnacionais, ou ocorre uma adaptação fonética ou é traduzido com termos equivalentes para ‘pé’ e ‘bola’. Os franceses, tão ciosos de sua língua a ponto de sugerir um logiciel como substituto de software, adotam football sem modificações – e uma das revistas mais conceituadas sobre o esporte é a France Football [8]. Esp. fútbol, ale. Fußbal (os alemães empregam football para se referir ao futebol americano), neerl. Voetball, os japoneses fizeram apenas uma transliteração (com as
adaptações fonéticas próprias): フットボール ‘futtobōru’ (ou também サッカー
‘sakkā’, de soccer) – houve uma tradução com o termo 蹴球(しゅうきゅう) ‘shūkyū’ (shū ‘chute’ e ‘kyū’ bola), mas quase nunca é usado – o primeiro caracter é o mesmo de cùjú -; ao contrário do coreano, que utiliza os mesmo caracteres chineses, ou na forma dos caracteres coreanos: 축구 ‘chukgu’) -, rus. Футбол ‘futbol’, ind. फ़ुटबॉल ‘fu.tbôl’. No chinês, 足球 ‘zúqíu’ (zú ‘pé’ e qíu
‘bola’ – repare que o caracter para bola é o mesmo para o japonês, com pronúncia próxima), curiosamente, é uma tradução de football e não uma variação do cùjú como seria esperado (mas isso pela tradição ter se perdido no tempo e haver sido reintroduzida por meio dos ingleses),o mesmo ocorrendo no grego, com ποδόσφαιρο (podósfero de pous,podós ‘pé’ e sfairo ‘bola, esfera’) e não uma variação de ἐπίσκυρος (epískyros) ou φαινίνδα (phenínda) – jogos gregos antigos ligados à origem do futebol (em sentido amplo). Em finlandês: jalkapallo (jalka ‘pé, perna’ + pallo ‘bola’), os islandeses têm knattspyrna (knöttur ‘esfera, bola’ + spyrna ‘chute’) e também fótbolti (curiosamente knattspyrna é uma palavra de gênero feminino e fótbolti, masculino). Ár. كرة القدم (kúrat al-qádam) (kúrat ‘bola’ + al ‘de’ + qádam ‘pé’), heb. כדורגל (kadurégel) (kadur ‘bola’ + régel ‘pé’). Os croatas, sérvios e bósnios (que usam a mesma língua, mas a chamam de croata, sérvio e bósnio) dizem nogomet (nòga ‘perna’ + suf. -met ‘si mesmo’) – os bósnios e sérvios usam também fudbal, mas os sérvios escrevem em cirílico ногомет ‘nogomet’ e фудбал ‘fudbal’. Em turco, há a forma futbol e também ayaktopu (ayak ‘pé’ + top ‘bola’). Em guarani vakapi ‘pele, couro de vaca’ é usado para se referir ao jogo.

Para o português foram propostas várias alternativas: balípodo (gr. bállo ‘lançar’), ludopédio (lat. ludus, i ‘jogo’ + gr. pedíon, ou ‘planta do pé’), pedibola (lat. pes,pedis ‘pé’), podabolismo, bolapé, pebol… Obviamente nenhum pegou. O futebol na acepção moderna adentrou ao nosso léxico já em 1889 – na forma foot-boll -, em 1899 escrevia-se foot-ball (por isso muitos clubes brasileiros nascidos no início do século 20 têm como parte de seu nome oficial essa forma – como o Grêmio Foot-ball Porto Alegrense de 1905, Coritiba Foot Ball Club de 1909, o Santos Futebol Clube foi fundado em 1912 com a denominação de Santos Foot-ball Clube) e a forma futebol consolidou-se em 1933 (o São Paulo Futebol Clube é de 1935). [5]

Três bilhões de apaixonados incorrigíveis. E possivelmente outro tanto de ressentidos figadais: mas que talvez tenham um pouco de futebolite não-diagnosticada – ao menos entre aqueles que desejariam praticar o cùjú com o couro dos que assopram entusiasticamente suas vuvuzelas.

[1] Gleeson. No TV audience increase expected for 2010 World Cup. Reuters.

[2] Beijing Olympic Broadcasting. Beijing 2008.
[3] The final tally… Nielsen.
[4] Fifa History of Football. Fifa.
[5] Houaiss. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. V. 1.0.5a.
[6] Australian Football. Australian Institute of Sport.
[7] Football. Australian Institute of Sport.
[8] France Football. L’Equipe.

*”Uma Copa, três bilhões de corações”: Referência mashup de um clipe de filme altamente não recomendável e de um documentário oficial – “Two billion hearts” (“Todos os corações do mundo”) – sobre a Copa 1994, nos EUA, (a audiência única estimada na época era de dois bilhões de pessoas), dirigido por Murilo Salles.

Discussão - 3 comentários

  1. Karl disse:

    Sensacional, Takata. Gostaria de fazer dois comentários e saber se você concorda.
    A palavra futebol e a cultura que a envolve é um exemplo de algo que não nos veio dos gregos, em que pese exemplos de que havia jogos parecidos na antiguidade. Isso é interessante porque já procurei por exemplos assim outras vezes e tive dificuldade de encontrar. No final, estava na minha cara, hehe
    Em segundo lugar, há controvérsias sobre a fundação do São Paulo Futebol Clube. O clube e seu sítio oficial ainda divulgam o ano de 1935, que foi o ano da reestruturação, como você apropriadamente citou. Mas, em 1930 já havia um São Paulo que algumas correntes internas insistem em não aceitar. Para mais informações sobre esse apaixonante assunto ver http://spfcpedia.blogspot.com/2008/01/fundao-e-refundao.html
    Obrigado

  2. Roberto Takata disse:

    @Fernanda,
    Valeu! \o/
    @Karl,
    Concordo. Essencialmente, o futebol é um 'esporte bretão': mas alegremente canibalizado e transformado pelas culturas locais. (Como exemplo de cultura não-helenística, podemos citar ainda nossa música - com grande peso da matriz africana: o ritmo é essencialmente não-ocidental -, a culinária e a unanimidade nacional: a apreciação masculina pelas ancas femininas.)
    Sim, o São Paulo da Floresta. Mas, pelo que sei, faliu - ou faliram o clube - e o SPFC foi uma refundação (com objetivo estatutário de honrar as glórias do São Paulo anterior - tanto é que o SPFC é dos raros casos que tem um título *antes* de sua existência, ele pleiteia, e a FPF homologa, o título conquistado em sua encarnação anterior).
    []s,
    Roberto Takata

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