Uma luz dentro de células

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Por Joey Salgado


A Fernanda Poletto, do excelente Bala Mágica, publicou recentemente um texto falando sobre Armas Mágicas (quanta mágica por aqui…), o qual recomendo fortemente a leitura. O conceito de Armas Mágicas se resume a uma metodologia capaz de promover a internalização de fármacos em tumores, através da utilização de peptídeos chamados de iRGD. Os iRGD “guiam” o fármaco até o tumor e “abrem a porta” para que o mesmo entre na célula tumoral, aumentando assim a especificidade de sua ação. 

Achei sensacional a utilização desses peptídeos iRGD para o carregamento do fármaco e, por conta disso, recordei-me de um trabalho relativamente recente (2006 tá novo ainda?), onde uma certa sequência de peptídeos mostrou-se fundamental para a proposta de uma nova técnica. Em 2006 (quatro anos… tá novo, foi a menos de uma Copa do Mundo atrás…), Jones e colaboradores, da Universidade de Standford (sempre eles…) demonstraram a possibilidade de se utilizar oligopeptídeos contendo oito resíduos de arginina como cross-coupling peptides (ou CCP) de moléculas conjugadas com luciferina (lembra dela?). O princípio da técnica é demonstrado na figura abaixo.[1]

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Vamos por partes. Oligopeptídeos de arginina, principalmente esses contendo oito unidades desse aminoácido, são chamados de cross-coupling peptides justamente por possuírem a capacidade de permearem através da membrana lipofílica de células, chegando ao citoplasma da mesma. A subunidade em verde da molécula na figura acima diz respeito à sequência de CPPs. Pelo fato de permearem por membranas lipofílicas, ao mesmo tempo que são solúveis em meio aquoso, CPPs podem ser conectados a outros peptídeos, fármacos ou agentes marcadores, formando os chamados “conjugados”, que podem ser carregados para dentro de uma célula. Já na época do trabalho, o mesmo grupo de pesquisas havia apresentado a utilização de CPPs conjugados com ciclosporina A, um imunossupressor, para “entrega” de drogas em tecidos vivos.[2] O problema, de certa forma, é que a velocidade com que a entrega do fármaco era realizada, ou de qualquer outra molécula conjugada ao CPP, era desconhecida até então. Sabia-se que o CPP realizava a entrega, visto que os efeitos do fármaco eram observados, mas não se tinha ideia de quanto tempo era necessário para o mesmo permear para dentro da célula e/ou para liberar o fármaco.

No sentido de se desenvolver uma técnica que permitisse avaliar a eficiência e a velocidade da “entrega” de um determinado conjugado com CPP, em tempo-real e in vivo, chegou-se a conjugados de CPP com luciferina, como já demonstrado na figura acima. A luciferina (destacada em azul) está conectada ao CPP (em verde) através de uma molécula-ponte (em vermelho). Tal molécula-ponte está conectada ao CPP por uma ligação disulfeto S-S (em vermelho e verde), que quando na presença de glutationa intracelular (GSH) é rapidamente clivada, liberando a molécula de luciferina. Utilizando-se tal conjugado em células de organismos transfectados com o gene luc de vaga-lumes, responsável pela expressão da enzima luciferase, o par luciferina/luciferase emite luz, que pode ser registrada em tempo-real por uma câmera.

Dessa forma, mostrou-se ser possível averiguar a eficiência e a velocidade de permeação de CPPs de arginina, utilizando-se esse conjugado com luciferina como modelo para entrega intracelular de drogas. Apesar do sucesso obtido pelos autores, parte da complicação em se utilizar tal técnica reside na síntese do conjugado, que não é trivial, e no fato de que devem ser utilizados organismos geneticamente modificados para avaliação do modelo. Contudo, a técnica equivalente, que utiliza CPPs conjugados com moléculas fluorescentes, apesar de possibilitar que se faça a avaliação da liberação de drogas in vitro, não é funcional para sistemas in vivo e não permite o acompanhamento da mesma em tempo-real. Outra opção, o uso de CPPs conjugados com moléculas contendo radioisótopos, possibilita a observação in vivo, mas não tem resolução suficiente para determinar se o conjugado marcado se encontra dentro ou fora da célula e não permite saber se a molécula marcada que simula o fármaco ainda está ligada ao CPP (o radioisótopo emite radiação independente se foi liberado dentro do meio celular ou não).

Este é um exemplo de um belo trabalho, na minha opinião, que apresenta uma técnica fenomenal, capaz de modelar em tempo-real a entrada em células de drogas conjugadas a CPPs, e que ao mesmo tempo permite as observações da liberação intracelular da mesma e da interação com um receptor enzimático.

Que beleza esses peptídeos, né não?!

Referências e notas:

[1] Jones, L. R.; GOun, E. A.; Shinde, R.; Rothbard, J. B.; Contag, C. H.; Wender, P. A.; “Releasable Luciferin-Transporter Conjugates: Tools for the Real-Time Analysis of Cellular Uptake and Release” J. Am. Chem. Soc. 2006, 128, 6526. DOI: 10.1021/ja0586283.

[2] Rothbard, J. B.; Garlington, S.; Lin, Q.; Kirschberg, T.; Kreider, E.; McGrane, P. L.; Wender, P. A.; Khavari, P. A.; “Conjugation of arginine oligomers to cyclosporin A facilitates topical delivery and inhibition of inflamation” Nat. Med. 2000, 6, 1253. DOI: 10.1038/81359.

Discussão - 4 comentários

  1. Oi, Joey!!
    Obrigada pela citação 🙂
    Ao longo do texto, fui lembrando das nossas discussões sobre a diferença de mecanismos de fluorescência de quantum dots e pequenas moléculas orgânicas...
    Parabéns pelo texto!

  2. Fernando Heering disse:

    Que isso, Fer, não agradeça.
    Obrigado pelo elogio! 😉

  3. Roberto Takata disse:

    Uma alternativa que vejo - sem analisar mais aprofundadamente - seria capturar os conjugados e imobilizá-los dentro das células. Talvez com "anticorpos" expressos intracelularmente (sim, haveria de se fazer um OGM de todo modo - ou injetar as proteínas de algum modo).
    []s,
    Roberto Takata

  4. Fernando Heering disse:

    Parece viável, Takata. Vou inclusive ver se tem algo a respeito dessa alternativa.
    Abraço!

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