Vírus: viajantes entre mundos

©Rodrigo Barreiro

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Este post é o resultado de uma prova aplicada à turma da disciplina de Virologia, da graduação em Ciências Biomédicas do ICB/USP. A prova foi uma redação sobre o tema “Vírus é vivo?” e as respostas seguem abaixo:

O conceito de vírus evoluiu de um “veneno filtrado” capaz de causar doenças (como descrito para o mosaico do tabaco no fim do século XIX) para “organismos codificadores de capsídeo capazes de sofrer evolução Darwiniana, parasitas intracelulares ou intravirais obrigatórios”. Essa mudança se deu após o estudo de milhares de tipos virais, possuindo todos, basicamente, vírions com as seguintes características: presença de material genético capaz de sofrer evolução (DNA ou RNA, mas com o RNA no “centro” do processo), capsídeo proteico e, em alguns casos, envelope lipídico. Essas partículas virais, ao entrar em contato com células, geram uma “fábrica viral”, capaz de copiar a estrutura do vírion múltiplas vezes. A descoberta de vírus gigantes (como o mimivírus) tirou o elemento “filtrável” da definição e a descoberta do Sputnik, vírus capaz de parasitar mamavírus, adicionou a parte dos vírus intravirais.

Após definir em linhas gerais os vírus, é necessário definir vida. Contudo, seguindo a linha de pensamento de Karl Popper, essa definição é não-científica, não sendo possível chegar a um conceito forte utilizando as ferramentas lógicas com o método científico. Essa conceituação é intrinseicamente humana e precisa levar em consideração o processo de surgimento de um conceito como uma construção social. A escolha de um ponto de vista precisa utilizar os conceitos populares, intuitivos, milenares até, de vida e adicionar a ele limites mais precisos.

A vida, em visão macroscópica, consiste basicamente de seis pontos: reprodução, movimento, crescimento, desenvolvimento (um “ciclo de vida”), resposta a estímulos (“homeostase”) e evolução. Entretanto, diversos fenômenos reconhecidamente abióticos apresentam características semelhantes, por exemplo o fogo ( de reprodução, crescimento e desenvolvimento), vírus de computador ( capazes de replicação e evolução) e, notavelmente, cristais. A cristalização é um processo auto-organizado no qual, após uma nucleação, os elementos dissolvidos formam estruturas que crescem reproduzindo padrões, gerando até, em alguns casos, diversidade (como em quasicristais). Cristais podem ser até catalizadores de processos reconhecidamente biológicos, como a montmorillonita, possivelmente influenciadora do surgimento de replicadores no mundo pré-LUCA.

Todavia, tais elementos não são considerados vivos. A principal razão para a isso é a ausência de um organismo, um conjunto de subsistemas organizados e coordenados de forma a dar sustentação a um sistema maior; e a ausência de um material genético, carregador das informações para construção de um organismo e capaz de evoluir Darwinianamente. Esses dois fatores, somados à autopoiese (capacidade de um sistema químico gerar outro semelhante a partir de materiais “externos”) constituem uma tríade que, indiretamente, inclui os conceito “populares” e permite uma base mais palpável para prosseguimento da discussão.

Sendo assim, os vírus são organismos vivos? A pergunta encontra ainda mais um obstáculo: o ciclo viral. O vírion, a forma extracelular do vírus, inerte em sistemas abióticos e até, muitas vezes, cristalizável, carrega ácidos nucleicos. Mas não possui um comportamento de organismo nem capacidade regenerativa, não podendo ser considerado vivo. Por outro lado, a “fábrica viral” e toda sua malha de interações forma claramente um organismo, com integração de etapas e replicação da informação necessária para a gênese dos virions e reinício do ciclo. Apesar de tal fenômeno parecer “alopoiético”, com a célula produzindo vírus, as estruturas do hospedeiro são fortemente cooptadas, servindo como ferramentas e nutrientes para o processo protagonizado pelas informações virais, podendo ser entendido como um processo autopoiético. Logo, a forma ontogeneticamente ativa da “fábrica viral” é viva.

Conclui-se assim que os vírus são, como entidades, viajantes entre mundos. O vírion, estrutura no mundo inanimado, não-vivo, constitui um “zoígeno”, um elemento capaz de, nas condições certas, dar origem a vida. Enquanto o vírion não for inativado, perdendo sua organização, ele pode passar por um processo de criação, necessitando, para isso, de uma célula viva, a partir da qual a entidade viral ativa consegue se formar. O surgimento desse organismo vivo constitui então uma “transbiogênese”, no qual um ser vivo conceitualmente diferente brota da interação do vírion e o hospedeiro.

A estruturação de vírus como seres cujo ciclo de vida transita entre estágios vivos e não vivos cria duas novas indagações: onde os vírus se integram no quadro dos seres vivos existentes (ou seja, em que ponto do “arbusto da vida”) e se entidades replicadoras semelhantes podem receber classificações que os incluam nos domínios da vida.

As interações filogenéticas “ribossomocêntricas” da “árvore da vida” se tornaram demasiadamente simplistas com a descoberta de diversos eventos de simbiose e transferência gênica horizontal, formando um complexo arbusto que brota a partir do LUCA (o último ancestral comum). Como há vírus parasitando arqueas, bactérias e eucariotos, é possível imaginar vírus parasitando o LUCA ou até sistemas de reprodução de RNA anteriores. A interação de parasitas com química de DNA pode até ter participado da mudança no tipo de material genético usado pelos replicadores mais complexos, de RNA para DNA. Apesar de alguns capsídeos icosaédricos apresentarem motivos proteicos semelhantes, a ausência de um gene unificador (com os genes ribossonais em células) e a presença de diversas classes (que apesar de centradas no ssRNA+, apresentam materiais variados como ssDNA, dsDNA-RT, ssRNA-RT e outros) sugerem que é possível a diversos eventos de surgimento de linhagens virais. Somam-se a isso altas taxas de evolução, que tornam o rastreamento filético a longo prazo muito complicado. Dessa forma, os vírus “vivos” constituem parte ativa do arbusto da vida, mas com a relação filogenética exata necessitando ser melhor esclarecida por pesquisas futuras.

Quando viramos o olhara para outros replicadores Darwinianos como plasmídeos, retrotransposons e viroides, não é possível observar a mesma malha de interações formadora de organismo. Sendo assim, tais “replicons órfãos” não possuem suficiente protagonismo para adquirirem o mesmo patamar de vivos ou “viajantes”. Isso não diminui a importância dessas estruturas, que mesmo não-vivas por si, são parte chave na complexidade que rege os sistemas biológicos.

Em conclusão, o acatamento de vírus como um seres com estado vivo (em contraponto à visão celularista da vida, atualmente mais popular) acarreta uma pespectiva menos hierarquizada das entidades biológicas, contribuindo para uma visão mais horizontal da vida. Mais que isso, o aceitamento de vírus como entidades vivas, protagonistas, é uma atitude não só justa como progressiva, contribuindo para redução da visão antropocêntrica da biosfera e até enriquecendo nossa posição como seres integrados a uma rede de interações de organismos .

Quem eu sou?

Tiago LubianaMeu nome é Tiago Lubiana, carioca, estudante e patologicamente apaixonado pela ciência, com queda especial por biologia molecular, bioquímica e encéfalos. Entusiasta da ciência aberta e do pensamento crítico como ferramentas de transformação social.

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