Minha vida de matemático e lógico

Esse post é parte da Blogagem Coletiva de comemoração aos 10 anos do ScienceBlogs Brasil. O tema dessa semana é Fazer Ciência, minha vida de cientista. Hoje quem escreve é Walter Carnielli, professor Titular do Departamento de  Filosofia da Unicamp.

Se você quiser participar saiba mais em: http://bit.ly/SBBr10anos

 

cientista

Em novembro de 1023. Zach Weber, professor de Filosofia da Universidade de Otago, Nova Zelândia, entrevistou-me para a publicação “The Reasoner” (Volume 7, Número 11, November 2013, ISSN 1757-0522 www.thereasoner.org, “Features: Interview with Walter Carnielli”)

Penso que as perguntas do Zach Weber foram muito bem colocadas (talvez as respostas nem tanto). Mas acredito que valha a pena rever algumas respostas, com novos detalhes, para a iniciativa “Fazer ciência, minha vida de cientista”.

Esta não é a entrevista na íntegra, apenas uma revisitação elaborada de algumas partes menos técnicas.

The Reasoner, ZW: Como começou sua  carreira em  matemática e lógica?

WAC: No início do ensino médio, eu tive um jovem professor que estava fazendo seu doutorado em lógica. Um dia chovia pesadamente e apenas algumas crianças vieram para a aula. Eu pedi que ele nos explicasse em duas frases o que era uma “tese de doutorado”. Ele explicou seu trabalho em indução matemática, com alguns exemplos. Eu não acho que o outros estudantes estavam prestando atenção, mas eu achei surpreendente como alguém poderia dominar o infinito, provando coisas que eu pensava  que levaria uma eternidade, apenas com alguns passos! Eu pedi mais, e ele e o professor de física me deram alguns problemas combinatórios para resolver. Nós já havíamos  tido aulas sobre lógica, envolvendo tabelas de verdade elementares- tabelas de verdade, argumentos simples e afins – e eu achei muito impressionante como combinatória e lógica tinham métodos semelhantes. Isso influenciou bastante minha carreira, e o que investigo ainda hoje.

Na verdade, essa espanto positivo já era  reflexo de algo muito interessante que havia na casa dos meus pais, quando eu era menino: havia dois lindos guarda-roupas antigos num quarto, um em frente ao outro, cada um com um grande espelho de cristal. Quando alguém se colocava no meio, via-se. uma imagem refletida na outra, indefinidamente, até o “infinito”… Nunca vi uma melhor imagem do infinito do que essa. A ciência não sabe se o universo é finito ou não. Não há representações óbvias do infinito. Mas dois bons espelhos paralelos dão uma ótima ideia. Qualquer um pode tentar!

De repente, na aula chuvosa de matemática, tudo fez sentido. O jogo dos espelhos encontrava uma formulação matemática na indução aritmética. Decidi estudar isso e as coisas ligadas a isso para sempre!

Também tínhamos nos bons tempos do Colégio Culto à Ciência em Campinas, muita geometria e desenho geométrico resolvendo problemas com linhas, planos, triângulos, etc. A principal dica – isso levou anos para eu entender – era  sempre “suponha o problema resolvido, e a partir daí resolva-o”. Funcionava  em muitos casos, não sempre, mas eu estava sempre intrigado: como você pode supor um problema resolvido e, em seguida, resolvê-lo? E se fosse em princípio não solucionável? O professor não sabia porquê isso funcionava, Mais tarde, muito mais tarde, eu conheci o método analítico de Pappus de Alexandria (290 – 350), que inspirou Newton e Descartes entre outros. Parece misterioso, ligado de alguma forma à auto-referência a ao infinito, que apenas mentes mais elevadas poderiam realmente entender. Eu decidi, muito imodestamente como costuma ser a juventude (felizmente), estar mais perto das mentes mais elevadas estudando matemática.

The Reasoner, ZW: Grande parte da sua pesquisa tem sido em lógica paraconsistente. Como você vê a relação entre a lógica clássica e a lógica não-clássica?

WAC: Eu acho que a expressão “lógica clássica” não é mais do que uma “façon de parler“. A lógica formal ou simbólica como um todo é apenas um modelo matemático da linguagem natural e do raciocínio, quer incorpore ou não quaisquer ferramentas ou teorias que carregam o rótulo “não clássico”. Não há rivalidade entre “lógica clássica” e “lógicas não clássicas”. O que é – impropriamente – chamado por muitas pessoas “lógica clássica ” é simplesmente uma coleção de princípios e leis herdados de Aristóteles. Mas a lógica aristotélica e lógica moderna, na tradição de Frege, Russell, Whitehead, Wittgenstein, etc., não coincidem. Uma diferença substancial, entre outras, é que a lógica aristotélica e a lógica moderna diferem fortemente na questão da importação existencial. Acho que nós podemos nos referir à lógica tradicional como uma contrapartida da lógica moderna, e a lógica contemporânea é melhor vista como lógica universal.

The Reasoner, ZW : Então tudo é apenas “lógica”, se visto de uma perspectiva suficientemente alta?

WAC: Se há alguma coisa que mereça o nome “lógica clássica”, é a lógica considerada adequada para as necessidades da maioria da matemática. A matemática, pelo menos em sua prática, não envolve o passado ou tempos futuros, nem hermenêutica, nem raciocínio contra factual, advérbios, modalidades, adjetivos, graus, etc. Outras áreas não tão imunes a perspectivas e interpretações filosóficas, podem exigir distinções mais sutis – e esse é o ponto  onde surgem as chamadas “lógicas não clássicas”.

Mas depois de tudo, as lógicas “não-clássicas” acabam se revelando aplicáveis à matemática. É um ponto de vista filosófico que justifica a matemática intuicionista e construtiva, a chamada matemática inconsistente, as teorias de conjunto paraconsistentes, as teorias de conjuntos difusos, etc.

No limite, novos objetos matemáticos beneficiam-se quando a distinção clássica/ não clássica é deixada para trás: é bem conhecido que existem “topoi” (na teoria. dos  topos) que não verificam a lei do terceiro excluído, e o matemático que entende essa visão contemporânea não se sente desconcertado.

The Reasoner, ZW : Eu posso ver esse ponto de vista refletido em alguns de seus trabalhos. Você pode nos falar sobre as Lógicas da Inconsistência Formal (LFIs)?

WAC: Eu trabalhei, com colegas como Marcelo Coniglio e estudantes de doutorado à época como o agora professor João Marcos  na formalização da distinção entre consistência e não-contradição, o que levou às LFIs. Em termos sintáticos, isso é feito simplesmente adicionando as noções meta-teóricas de consistência e inconsistência no nível da linguagem objeto, adicionando à linguagem novos conectivos com o significado pretendido de “é consistente” e “é inconsistente”, e alguns axiomas relacionando as noções de consistência e inconsistência com a negação e a contradição.

Um conceito mais amplo de paraconsistência surge daí, o qual incorpora vários outros: apenas uma contradição sobre um assunto consistente leva à explosão. Uma contradição sobre algo que não temos certeza se se comporta de forma consistente, não causa qualquer explosão dedutiva. Isso torna a lógica paraconsistente completamente livre de quaisquer suposições metafísicas como objetos contraditórios reais existentes no mundo, ou de qualquer influência de Hegel. Não é contrário a Aristóteles, quando levamos a sério seu famoso comentário sobre acreditar em contradições no Livro Γ da Metafísica: nós podemos dizer as palavras, mas não podemos realmente acreditar no que estamos dizendo.

walter

 

Walter Carnielli  é Professor Titular do Departamento de  Filosofia da Unicamp. Membro e ex-diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp. Sua pesquisa atual envolve as relações entre lógica,  probabilidade e racionalidade. Ganhador da Medalha Telesio-Galilei e Prêmio Jabuti.

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