Vocêé seu fator de impacto

O editor de um periódico científico do qual sou assinante recentemente enviou, creio que para todos os sócios, um e-mail no mínimo curioso. Na mensagem ele informava sobre uma série de mudanças que precisariam ser feitas em relação à política de publicação de artigos na revista e depois explicava, detalhadamente, as razões das mudanças: como o periódico passara a ser classificado recentemente como de nível “A Internacional” o número de artigos submetidos e publicados aumentos vertiginosamente. No entanto, como o número de citações dos artigos publicados não acompanhou o ritmo do número de artigos publicados, o dito periódico corre agora o risco de perder a classificação de A Internacional. Vejam bem, teoricamente a qualidade da revista é tão boa que a permitiu ser classificada entre as melhores do mundo na área, mas devido a um artefato aritmético qualquer, sem que tenha havido mudança observável na qualidade da revista, pelo contrário, há a ameaça de “descer do pódium”. É cisma minha, ou este sistema de classificação é, no mínimo, falho. Permitam que eu use o termo que realmente desejo: é um sistema burro, estúpido. Estamos nos tornando escravos de números.
Qualquer um que, como eu, saiu de uma árdua pós-graduação e agora sofre para conseguir um emprego conhece uma outra face desta escravidão: as coisas ficam muito mais difíceis se não houver, em nosso geralmente minguado currículo, um número expressivo de artigos publicados. Não se faz, comumente, nenhuma exigência especial quanto à qualidade dos mesmos, o que se quer é quantidade. Claro, com a criação dos tais fatores de impacto, em teoria tenta-se medir indiretamente a qualidade de um artigo pelo número de citações ao mesmo – ainda assim, a grande ênfase é nos números. Por que, então, se utilizam estes indicadores? Respondo da forma que considero a menos hipócrita possível: porque os americanos disseram que era para se utilizar e nós somos cultural e cientificamente subservientes. Sim, em sua mania de reduzir tudo a cifras, imaginam que a qualidade está do lado de quem produz muito: sem exagero, é a mesmíssima coisa que considerar que Harold Robbins ou Sidney Sheldon são melhores escritores que J. D. Salinger ou  que Cervantes porque os dois primeiros produziram muito mais, é um absurdo, é idiota. De quem seriam os maiores fatores de impacto?
O pior é que o sistema encoraja a procriação de artigos científicos que em nada contribuem para a ciência, nada acrescentam, que jamais serão lidos ou citados. Quem, no meio, desconhece a tal “multiplicação dos pães”, a virtual geração espontânea de artigos a partir de dados esquálidos? Quem lê a Nature ou a Science tem acompanhado a avalanche de casos de fraudes e plágios de artigos gerados, não tenho dúvidas, pela pressão em publicar. Aqui mesmo no Brasil tivemos um fato recente em São Paulo. Antes de conseguir minha atual bolsa, concorri a uma bolsa de pós-doutorado em Minas pensando em ter tempo para publicar alguns artigos, mas não consegui porque não tinha suficientes artigos publicados, e não sou caso isolado. Serão os pesquisadores de hoje mais desonestos do que os de outras épocas? Sinceramente não creio, mas há uma pressão inexplicável pela geração de artigos. Alguém já percebeu que se se der ênfase demais a este tipo de coisa, por exemplo na escolha de professores universitários, a qualidade de ensino pode cair? Qual a ênfase que está sendo dada a bons professores, com boa didática, com valores outros que não apenas ter um espesso currículo? Eu tive professores na universidade que mal sabiam se expressar com frases de mais de três palavras, mas publicavam horrores.
Será que somos tão incompetentes que não podemos pensar em formas mais eficientes de se avaliar a qualidade de um acadêmico que não seja a que o chefe mandou usar? Não me venham com a conversa de que este é o sistema, que temos de nos adequar. Na primeira parte deste post mostrei o que acontece quando tentamos nos adequar demais. A blogosfera também se torna escrava de números e fatores de impacto: google pagerank, rank Technorati, acessos diários. Não é preciso ser ingênuo para saber qual blog terá melhores indicadores, o nosso ou um de download de filmes pornô? Há algum tempo li um ScienceBlogger comentar que o número de acessos de seu blog subiu estratosfericamente porque escreveu um post em que citava Britney Spears. Nenhuma mudança de qualidade aqui tampouco. Será pedir demais que enfatizemos a qualidade antes da quantidade? Nosso fator de impacto dirá tudo sobre nós?

Discussão - 13 comentários

  1. Claudia disse:

    hehehe, Ítalo, sempre achei estupida essa ideia de numero de artigos do meio cientifico.
    E agora isso tb "contamina" os blogs e sempre me pergunto se o que eu quero p/ meu blog é maior numero de visitas ou pessoas q realmente leem meu blog e tenham algo a aprender e a contribuir. Sejamos realistas: meio ambiente, ciencia e td mais q abordamos aqui nao vai ser mais importante para a maioria das pessoas como os BBB, escandalos dos artistas e o novo "crime" do momento. Nós somos o ponto fora da curva, é fato.

  2. Ítalo M. R. Guedes disse:

    É exatamente o que penso, Claudia. Precisamos dar mais ênfase à palavra e ao conceito de "qualidade". Isso, parece-me, requer uma mudança, ou resgate, de valores, valores reais e não os enfiados de goela a baixo.

  3. Luis Brudna disse:

    Texto meio ´Saramago´.
    Sem parágrafos! 🙂
    Dá um alívio pra turma BBB e ´abre´ mais o texto. 😉
    --
    Sobre as classificações... a ciência virou MAFIA com essa paranóia de qualificações, citações, número de artigos... estragaram a qualidade da ciência. É de dar nojo.

  4. Luis Brudna disse:

    Mais...
    Existem tentativas de melhorar a inspeção de rankeamentos... tipo Índice H. Mas aos poucos o rankeamento vai novamente sendo infectado pelos sugadores de citações e ´fazedores de artigos´.
    Ainda é preciso inventar um sistema de avaliação que realmente valorize a qualidade.
    Dá uma olhada nesta técnica... vc vai gostar. 🙂
    http://www.humornaciencia.com.br/miscelanea/corren.htm
    ==

  5. João Carlos disse:

    "Publsih or perish"... É uma questão que vem sendo levantada faz tempo, inclusive lá nos "estêites"... Tem alguns "espertinhos" que fazem "jogo de equipe": um publica um artigo "meia-bomba", o outro refuta em parte, o primeiro publica outro com uma contra-refutação e assim por diante. Em breve os "índices de citação" dos artigos iniciais fica enorme...
    Enquanto deixarem computadores programados por idiotas fazerem o serviço de editores preguiçosos, o que vai acontecer é isso aí... Os números frios vão falar mais alto do que a qualidade. Qualquer argumentação em contrário será taxada de "elitismo" e na mediocridade que campeia nos EUA e seus "satélites" (leia-se: "o resto do mundo") isso é palavrão... 🙁

  6. Ítalo M. R. Guedes disse:

    Brudna,
    Tenho mesmo que corrigir este defeito dos parágrafos e o de escrever frases muito longas. Olha, um dos culpados é o Saramago mesmo, e agora que ele tem um blog, leio-o quase diariamente. Você usou uma palavra justa, a coisa é de dar nojo.

  7. Ítalo M. R. Guedes disse:

    Est história do publish or perish é deprimente. Infelizmente, aqui no Brasil a palavra "elite" ou "elitismo" se tornou pejorativa. O problema, creio, é que não temos uma elite de verdade, apenas um simulacro amorfo. Precisamos de uma elite meritocrática, inclusive elite intelectual, original, brasileira e não macaqueadora de gringos. Acho que nós, Lablogueiros, podíamos pensar mais nisto, tentar influenciar as opiniões, elevar o nível das discussões em torno de temas científicos, acadêmicos e até societais. Não sejamos escravos de números, escrevendo o que achamos que agradará o leitor passante, mas discutamos temas relevantes, desagrademos quando necessário.

  8. Carlos Hotta disse:

    É tudo uma questão de métrica, no fim. Na Inglaterra, avalia-se o candidato por cinco tarbalhos publicados nos últimos cinco anos. Quando se avalia o Deaprtamento, somente três trabalhos nos últimos cinco anos.
    Isso faz com que os pesquisadores invistam em qualidade e não em quantidade e valoriza a produção recente.
    Só que ninguém vai querer que isso aconetça no Brasil, um lugar onde publicar dez trabalhos no jornal de pesquisa local vale mais que uma publicação internacional.

  9. Roberta disse:

    Essa texto me faz lembrar daquela comunidade no orkut "Currículo lattes- o orkut nerd"... É, lá no fundo ambos servem para a mesma coisa: Mostrar para os outros quão pop você é...
    Adorei o texto e, se você não se importar, gostaria de linka-lo na comunidade da biologia aqui da UFPB. Gosto de colocar notícias e textos interessantes lá para ver se saem discussões interessantes. Raramente tenho sucesso, mas continuo tentando...

  10. geofagos disse:

    Cara Roberta,
    Responderei pelo Ítalo, uma vez que ele não poderá fazê-lo por esses dias. Tenho certeza que ele se sentirá lisonjeado com o seu link.
    Abraços.

  11. Ítalo M. R. Guedes disse:

    Cara Roberta,
    Pode ficar à vontade, nós é que lhe agradecemos. Não sabia desta comunidade. Concordo plenamente, o currículo Lattes está sendo usado quase como um "book". Lamentável.

  12. Igor Santos disse:

    Mas um aumento do número de visitas aumenta a probabilidade de atingirmos alguém que realmente lê e se interessa pelo assunto.
    Por aqui, até agora, acho que estamos conseguindo escrever muito e bem.
    O balanço é muito importante.

  13. Ítalo M. R. Guedes disse:

    Você usou a palavra certa, o balanço, o equilíbrio. Minha grande preocupação é o desequilíbrio, a "sede de nomeada", de fama vã em detrimento da qualidade. Também acho que, como comunidade, estamos por aqui bem equilibrados.

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