Artesanato científico

Desculpem-me pela ausência. Alguns poucos leitores restantes lembrarão que há relativamente pouco tempo trabalho enfim como um pesquisador independente, sem orientador para guiar os passos, acostumo-me com a vida real, fora da universidade, e nem sempre é muito fácil dar a mesma proporção de tempo às várias atividades assumidas. Mas o Geófagos continua, apesar de alguns contratempos. Aliás, não é a primeira vez que fico um período relativamente longo sem escrever. No início de 2007, trabalhei alguns meses em uma empresa produtora de adubos e, como viajava muito, o blog ficou meio esquecido.
Estes dias estou coletando um experimento e a tarefa está sendo mais trabalhosa do que planejei. Não posso dar detalhes mas estou ocupadíssimo lavando raízes de brócolis. Interessante como há eventos recorrentes em nossas vidas. Quando entrei na iniciação científica, em 1995, um dos primeiros trabalhos que tive de fazer foi lavar raízes de girassol de um experimento com estresse hídrico. Quem não é da área deve achar estranho isso, lavar raízes. Mas a planta não se resume a caules e folhas. A maior parte das modificações ambientais afeta primeiramente ou principalmente as raízes e para observar os efeitos sobre as mesmas, é necessário antes retirar o substrato, qualquer que seja, a não ser que as plantas sejam cultivadas em solução nutritiva, que não é o caso.
É um trabalho lento, aborrecido e cansativo. Muito lento. Pessoas impacientes não deveriam sequer observar. Dependendo da espécie ou da idade, as raízes são extremamente finas e sensíveis. É o tipico trabalho de laboratório que não aparece em filmes mas tão próprio à prática científica cotidiana, árdua e ingrata. Mas nem sempre tão ingrata. Há ainda muita coisa na Ciência que se aproxima do artesanato, tarefas manuais requerendo abilidade, dedicação e atenção. Tarefas cujo resultado depende muito do posicionamento de quem pratica. Se se faz com espírito de artesão, em geral o resultado é bom, às vezes surpreende. Se se faz estabanadamente, com barulho e fúria… Não há como não lembrar de Robert Pirsig narrando o conserto de sua motocicleta por mecânicos sem atenção em uma oficina barulhenta.
O laboratório me espera, agora. Mas vou sem pressa.

Discussão - 7 comentários

  1. manuel disse:

    Caro Ítalo
    Pensei que estivessem de férias,pois,para além do Geófagos,
    um mero entretém,pelo menos,espera-vos o trabalho,que requer descansos adequados,a não ser que não se saiba fazer outra coisa,o que acontece por vezes. A propósito, o realizador Manoel de Oliveira disse,uma vez,que quando não trabalha, aborrece-se,e quando trabalha,goza.
    Com que então artesanato científico? Faz parte. Olhe,o Ítalo tem de lavar raízes,eu tive de limpar folhas de videiras,estava eu aí com 25 anitos,o tempo que já lá vai. Quanto a não ter orientador para guiar os passos,comigo não foi bem assim,mas aconteceu-me uma coisa que me parece valer a pena contar. Alguém muito amigo de ajudar levou-me a uma vinha doente,porque não podia ir a todas que doentes estavam. Lá chegados,apontou-ma,acrescentado que,dali em diante,era comigo. Grande parte das coisas que tive de fazer foram,de facto,comigo,mas se não me tivessem ensinado ,eu não era capaz de medir num densitómetro as riscas mais ou menos escuras que um espectrofotómetro de emissão tinha produzido em chapas,riscas essas relativas,entre outros nutrientes,ao manganésio,o mau da fita,por lá não estar na quantidade com que se tinha comprometido.
    Para terminar,por mim,está isento de qualquer culpa,e cá o espero,cá vos espero,no tempo que entenderem,muito atento e muito obrigado.
    Uma grande abraço para si,para todos,e muito bom trabalho,divertindo-se,e muito boa saúde.

  2. Rafael |RNAm| disse:

    Ítalo,
    parabéns pela alforria e pelo texto.
    Só pra constar, em biologia molecular tmb temos trabalhos de artesão. Sempre digo, após manipular uma membrana finíssima ou um gel escorregadio e frágil, que deveriamos sair do lab com um certificado de trabalhos manuais!
    Paciência, muita paciência. Mais uma característica imprescindível para um cientista.
    Abraço

  3. locatelli disse:

    Arte, ciência... tecnologia: (http://mvlocatelli.blogspot.com/2009/01/arte-ciencia-ecologia-e-orquidofilia.html). Uma coisa que me ocorreu, tão mais harmoniosas no que se referem às leis da natureza são as obras de artes produzidas pelo gênio humano, e tão melhores lavadas as raízes por quem sabe mais o que elas representam, e acredito que você esteja se saindo um artesão de primeira.
    Ítalo, estava sentindo falta de seus textos. Este aguçou ainda mais minha vontade de fazer uma leitura que há muito tempo venho me devendo (Zen e arte de consertar motocicletas).
    Saúde

  4. Alexandre Paiva da Silva disse:

    AUSÊNCIA + INDEPENDÊNCIA + TRABALHO + RECORRÊNCIA + PACIÊNCIA + CONSCIÊNCIA + SURPRESA = ARTESANATO + MÉTODO CIENTÍFICO + "ARTESÃO" = CIÊNCIA
    ESTAMOS FELIZES COM SUA VOLTA AO GEÓFAGOS ITALO...ARTESÃO CIENTÍFICO.
    ABRAÇO
    ALEXANDRE

  5. manuel disse:

    Caro Ítalo
    Desta vez, para lhe lembrar,e nos lembrarmos, que tudo quanto se faça com brócolis é por uma muito boa causa,tais são os benefícios para a saúde do seu consumo,de que a web está cheia. Pode dizer-se que não há mal em que eles não intervenham favoravelmente.
    Portanto,lavar raízes de bróculos é altamente meritório,com direito a medalha. O leitor,portanto,que tenha paciência,que,primeiro,estão os brócoli,e sem raízes nada feito.
    Um abraço.

  6. sibele disse:

    Não foi o Tio Albert que disse que o sucesso e a genialidade são 1% de inspiração e 99% de transpiração?
    Enfim, muito trabalho braçal, ou artesanal, como queira...
    Sucesso e genialidade para vc, Ítalo!

  7. Caro Ítalo! Tudo bom por aí?
    Fico feliz em te "ler"!
    Ás vezes tarefas solitárias e aparentemente automáticas fazem um bem danado para a Paz mental e, consequentemente, para a criatividade! Grande abraço!

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