Manejo da matéria orgânica do solo no semi-árido

Alguém me fez recentemente esta pergunta: tendo em vista a baixa produção de biomassa no ambiente semi-árido da caatinga, há possibilidade de se seqüestrar carbono nos solos daquele bioma? Em minha opinião, a questão da possibilidade de seqüestrar-se não está ligada apenas à quantidade de material orgânico ao solo.
O teor de matéria orgânica em um qualquer solo será um balanço entre o que chega e o que é perdido. Mesmo que a quantidade adicionada seja pequena, se de alguma forma as perdas são diminuídas, pode-se chegar a acumular matéria orgânica no solo. Quanto à fonte, não há dúvida de que os resíduos vegetais, tanto aéreos quanto subterrâneos, são os principais originadores de matéria orgânica no solo. Mas de que forma o material orgânico pode ser perdido? A principal forma de perda é pela atividade decompositora de microrganismos, que utilizam o material orgânico como fonte de energia e de carbono para seus componentes celulares.
Algumas condições ambientais e do material orgânico favorecem a atividade microbiana. A riqueza de nitrogênio em relação ao carbono (relações C/N estreitas, comuns em tecidos vegetais de leguminosas e plantas herbáceas), a presença de compostos de mais fácil decomposição (compostos solúveis em água, proteínas, celulose, hemiceluloses), aeração do solo (por exemplo, pelo revolvimento causado por arado e grade, nas atividades agrícolas), fracionamento físico do material orgânico (também causado pela ação de implementos agrícolas). Claramente, isto pode ser revertido utilizando-se espécies com relação C/N alta, ricas em compostos de difícil decomposição (lignina, polifenóis), utilização de sistemas de manejo minimizadores do revolvimento do solo.
Mas há outras formas pelas quais se pode perder matéria orgânica. No semi-árido, uma que considero crucial é a eliminação dos restos de culturas agrícolas e das próprias folhas da vegetação natural no período de seca por animais domésticos, principalmente caprinos. Os sistemas agrícolas já perdem material orgânico por definição devido à exportação do material colhido. A manutenção dos restos de culturas nos campos de cultivo é uma forma interessante de se acumular matéria orgânica e de se colher os benefícios deste acúmulo, tais como controle da erosão, maior eficiência na retenção de água (a matéria orgânica pode reter até vinte vezes sua massa em água), ciclagem de nutrientes, diminuindo a necessidade de uso de fertilizantes.
Quando se permite que os animais domésticos se alimentem a partir dos restos de cultura ou quando estes restos são retirados dos campos para qualquer tipo de utilização, o sistema só perde. Há dados de pesquisa sugerindo que as taxas de erosão do solo mesmo sob a vegetação de caatinga relativamente conservada são consideráveis. O empobrecimento na matéria orgânica do solo exacerba este tipo de problema. Alguns solos da região semi-árida são razoavelmente ricos nos elementos nutrientes conhecidos como bases trocáveis, como cálcio, magnésio e potássio, mas a maior parte do nitrogênio necessário ao desenvolvimento de espécies não leguminosas provem da matéria orgânica do solo.
Já existem alternativas ou pelo menos boas idéias, como o manejo da caatinga desenvolvido na Embrapa Caprinos, o plantio de bancos de proteína (áreas plantadas com leguminosas resistentes à seca, cujo material é rico em proteínas) juntamente com o raleamento seletivo da caatinga. Há algum tempo o Professor Rui Bezerra Batista, da UFPB, já aposentado, chamou a atenção à possibilidade de os minerais de argila 2:1, típico de solos de regiões semi-áridas, poderem agir protegendo física ou quimicamente a matéria orgânica nativa. Talvez os Departamentos de Solos das universidades nordestinas devessem dedicar recursos a pesquisas nesta área. O manejo da matéria orgânica do solo em um bioma frágil e fragilizado como a caatinga deve ser o mais racional possível, para que ganhos monetários aparentes não sejam dependentes de perda de qualidade ambiental. De toda forma, a criatividade é necessária.
Recentemente, uma equipe de cientistas argentinos observou em uma área semi-árida da Patagônia a perda de material orgânico do solo pela ação direta de luz solar, um processo denominado de fotodegradação da matéria orgânica. Obviamente, é muito provável que isso ocorra também no semi-árido nordestino, talvez até em maior intensidade. Isto é um incentivo veemente para a manutenção da cobertura vegetal, de preferência com a vegetação nativa. Não há dúvida que a vegetação da caatinga, por sua adaptação às condições de solo e clima é a mais adaptada para a fixação e o seqüestro de carbono.
Uma coisa deve-se ter em mente: apesar de as quantidades de carbono potencialmente estocáveis não serem tão altas, o pouco que se puder reter ou enriquecer pode ter um papel relevante na manutenção do funcionamento saudável dos ecossistemas do semi-árido.

Discussão - 7 comentários

  1. manuel disse:

    Caro Ítalo
    Em primeiro lugar,quero louvá-lo pelo empenho que o Ítalo tem posto no seu Geófagos,tanto mais que tem o seu trabalho aí na Embrapa. Depois,agradecer-lhe o ter-me trazido a Caatinga Brasileira,de que nada sabia.
    Quanto ao tema,podiam ter-lhe feito uma pergunta de resposta menos complicada. E o Ítalo não podia ter começado melhor. O teor é um balanço entre o que chega e o que é perdido. E pelos vistos,aí na Caatiga chega pouco,por não poder chegar mais.É assim. E se calhar,perde-se muito.
    Eu não sei os teores de MO dos solos da Caatinga,mas sei dalguns daqui. De um conjunto de 20 solos representativos do Sul de Portugal,onde a queda pluviométrica é da ordem de 600-700mm,os teores(%) MO estão entre o,84 e 2,64,o que parece pouco. Acontece ainda que em solos argilosos,em que predomina a montmorilonite,estão entre o,84 e 2,31. Portanto,aqui o ser argila tipo 2:1,parece não ter produzido grande coisa.
    É assim,parecia haver muito pouco a fazer. Aqui,no caso dos cereais,as culturas predominantes na altura,era deixado na terra o restolho,em que predominava a raíz,que estando bem desenvolvida dará uma rica contribuição. Teria passado, também,gado,vacum e ovelhas,cabras algumas,que deixariam alguma coisa,de não desprezar.Depois,não se pode esquecer as temperaturas elevadas,meses seguidos,o sol,claro,a relativa pouca chuva. Enfim,é assim,não se podem fazer milagres.Só mais uma observação daqui. Tive ocasião de acompanhar, por alguns anos, uma série de ensaios de fertlização e calagem,em condições de regadio,com milho,sorgo,girassol,sobretudo,o primeiro. Tratava-se de solos de aluvião,argilosos. Pois aqui os teores de MO não eram melhores(1,18 a 2,45). E um deles,por coincidência o de 1,18,era estrumado lautamente,de vez em quando,por haver lá vacas estabuladas.
    Foi uma surpresa saber que na Caatinga há argilas do tipo
    2:1 e que os solos são,por natureza,mais férteis do que os latossolos. Valha-lhes isso,que para alguma boa coisa há-de servir.
    E pronto,Ítalo,mais uma vez os meus elogios,e a minha admiração pelo seu empenho,sinal de que trabalha por gosto,o que torna as coisas menos pesadas. Um abraço.

  2. Caríssimo Manuel,
    Interssantíssimas informações você nos traz. Olhe, os teores médios de matéria orgânica dos solos da caatinga não são muito diferentes destes solos do sul de Portugal de que você fala. São teores baixos, mas de acordo com a biomassa natural produzida e com as condições de decomposição. O problema é quando nem esse pouco é conservado. Concordo que aparentemente o fato de possuir argilas 2:1 pouco contribuem para o enriquecimento em MO. Falta saber, no entanto, qual porcentagem desta pouca matéria orgânica é química ou fisicamente protegida por estas mesmas argilas, seja por oclusão no interior de agregados, seja pela formação de complexos argilo-orgânicos, seja por outros mecanismos possíveis. A retirada da vegetação natural e sua substituição por culturas mal adaptadas e pessimamente manejadas em muito contribui para o decréscimo nestes já baixos teores e pela triste perda de solos por erosão hídrica, já que os solos da região são naturalmente erodíveis e as chuvas, torrenciais, bastante erosivas. Sim, há por aquelas plagas muita argila 2:1, inclusive montmorillonita: a pluviosidade média varia em torno dos 600 a 700mm anuais, de maneira que o intemperismo químico não é intenso, e os solos se desenvolvem majoritariamente sobre granitos e gneisses. A maior ocorrência deste tipo de argila deve ser nos solos que classificamos como Luvissolos, antes chamados Bruno Não-Cálcicos, talvez correspondentes a alguns Alfisols americanos. Há uma riqueza em bases trocáveis, às vezes conduzindo mesmo à salinização em áreas irrigadas mal manejadas. O grande problema é o nitrogênio, dependente do teor de matéria orgânica do solo, que quase não há. Uma boa parte das espécies nativas da caatinga é composta de leguminosas, as quais aproveitam a simbiose com bactérias fixadoras de nitrogênio para prover esta ausência no solo. Manuel, realmente trabalho por gosto, e muito mais gosto encontro quando posso divulgar o pouco que sei, sem nenhuma hipocrisia. Não tenho tido muito tempo, mas decidi tentar encontrar tempo para o blog mesmo assim, até para minha saúde mental. Fico aliás muito grato que haja leitores fiéis como você e alguns outros. Essa fidelidade não pode ser decepcionada nem esquecida.
    Grande abraço.

  3. Vicente disse:

    "Só o conhecimento liberta!"
    José Martí
    Siga em frente, e parabéns pelo trabalho.

  4. Caro Vicente,
    Nem que seja uma liberdade puramente intelectual, já é muita coisa, ainda mais nestes tempos de subserviência intelectual, política, profissional. Obrigado pela visita.

  5. manuel disse:

    Caro Ítalo
    Mais uma vez,que a matéria deste seu post,como o Ítalo bem sabe,dá pano para manga,mas não uma manga qualquer,que é de MO que se trata,uma coisa muito difusa,muito complexa,de resto,como muito compexo é todo o solo,nas suas três vertentes,Química,Física e Biológica,interrelacionadas ainda. Que mundos estes que couberam aos agrónomos. A sorte dos médicos,e dos veterinários. Coitados dos agrónomos,que além dos solos,têm pela frente as muitas culturas,o clima vário.
    E peguemos no seu "Falta saber,no entanto,qual a porcentagem
    desta pouca matéria orgânica...". O trabalhão que isto tem dado sabe o Ítalo muito bem. A natureza dos ácidos húmicos,a sua relação com a parte mineral,sobretudo com as argilas,os complexos argilo-húmicos,os mecanismos da adsorção, troca iónica, formação de complexos com catiões adsorvidos,e não só,ligações de hidrogénio,e outros,que os químicos e os físicos não param.
    Tal como aí,há solos,aqui, que têm teores de MO elevados,
    como os da região litoral de entre Douro e Minho,o chamado Noroeste. Para isso, concorrem alguns factores,mais chuva,temperaturas menos elevadas,alta carga animal,com maiores disponibiidades de resíduos orgânicos,modo de exploração,mais do tipo familiar. Desta zona,a MO de 12 amostras de solos vai de 2,32 a 10,64%(média de 5,20).Que diferença com os teores do Sul.
    E pronto,Ítalo,não o maço mais. Mais uma vez,os meus parabéns pela sua entrega a uma causa,a da agronomia,de que,por muitos anos,o mundo não pode prescindir. Muito boa saúde e um abraço.

  6. Caro Manuel, deixe de se desculpar, você não nos maça, honra-nos com suas preciosas contribuições e ainda mais com seus eventuais escritos (creio que) autobiográficos.
    Grande abraço e muita saúde.

  7. Carolina Malala disse:

    Caro Ítalo,
    Fico muito feliz em ver a atenção dada a região Semi-árida do Brasil! Trabalhei exatamente em áreas em processo de degradação no semi-árido pernambucano e é exatamente isso que ocorre. O manejo da matéria orgânica é realmente dificultado em função de vários fatores, mas a criação extensiva, principalmente, de caprino-ovinos parece ser um dos principais causadores de redução da cobertura vegetal que melhor condiciona a manutenção da matéria orgânica.
    É muito difícil conscientizar o pequeno agricultor que o seu "bode" piora o sistema solo-planta, pois geralmente é dele que vem a subsistência familiar. Concordo que mais olhos devem ser voltados para este bioma tão versátil e repleto de possíveis oportunidades. Abraço, parabéns pelos textos!

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