Enquanto como uma maçã
Há dias em que me torno ainda mais introvertido e contemplativo que o normal. Por gostar muito de ciência, por trabalhar como pesquisador, em geral meus devaneios dizem respeito ao lado científico dos mais mundanos eventos. Por recomendação médica, reduzi drasticamente meu consumo de doces e massas, de maneira que tenho aumentado o consumo de frutas em meus lanches ao longo do dia. Hoje, enquanto saboreava uma maçã, surpreendi-me considerando todo o trabalho agronômico provavelmente dispendido na produção daquela única fruta.
O devaneio científico começou ao observar umas pequenas rachaduras meio ressecadas, pouco visíveis ao olho não treinado, junto à depressão em que se insere a haste, no topo do fruto. Uma leve deficiência de boro, talvez, ou falta de água durante o crescimento do fruto, talvez ambos os problemas, talvez nenhum destes. Alguns frutos podem vir a ficar mal formados se houver problemas de polinização, por alguma razão.
A variedade de maçã que prefiro, do grupo Fuji, parece-me ser bastante doce. Imagino o árduo trabalho de seleção e melhoramento ao longo dos anos levando quem sabe a maiores taxas de fotossíntese ou, mais certamente, a uma maior alocação de açúcares para os frutos em detrimento de outras partes das plantas, estratégia comuníssima no melhoramento de quase todas as plantas cultivadas durante a história da agricultura.
Em minha infância sertaneja, poucos frutos eram tão inacessíveis quanto a maçã – distante e exótica, além de cara. Não há como não pensar no trabalho quase épico dos agrônomos responsáveis pela aclimatação desta cultura às condições brasileiras, as mudanças em termos de necessidades de temperatura, fotoperíodo, condições de solo, trabalho grandemente desconhecido. Aliás, este tipo de aclimatação, no Brasil, não é comum à macieira: uva, soja, trigo, espécies milenarmente cultivadas sob condições temperadas, transplantadas a condições subtropicais ou tropicais, não por meio de mágica ou milagre, mas pelo trabalho dedicado e árduo de agrônomos e agricultores brasileiros.
Tudo isso enquanto comia uma maçã.
Discussão - 11 comentários
Caro Ítalo
Um texto cheio de virtualidades,tendo como vedeta uma maçã,um fruto de ressonâncias naturais e sobrenaturais. Enquanto a comia,ia pensando nela,na sua criação,na sua composição,na sua nutrição. Fez o que um recolector lá dos começos não teria feito,que só estaria interessado em matar a fome.
Algumas vezes tenho feito uma reflexão similar. E agora,
manuel,refaz lá o que destruiste,uma maçã,uma laranja,seja o que for. E sinto-me um incapaz.
Voltando à sua maçã,e à leve deficiência de boro. A propósito,recordo-me que das típicas deficiências de boro,uma é o "internal cork" da maçã. E recordo-me,sobretudo,do meu primeiro trabalho,que foi precisamente uma carência de boro em videiras.
O seu texto é também um louvor ao trabalho quase épico dos agrónomos,face à complexa realidade que lhes coube,de uma variedade quase infinita de solos,culturas,climas.
Muito boa saúde e um abraço.
Independente da Agronomia, terminou por escrever uma bela crônica! Parabéns, Ítalo.
Nunca havia pensado nessas coisas.Nas raras ocasiões em que penso enquanto como uma maça, lembro de Newton, que levou uma na cabeça e entendeu a gravidade. E depois, no século XX, um cientista de escrita inspirada chamado John Wheeler explicava a seus alunos a relatividade geral de Einstein usando a superfície de uma maça...
Caro Ítalo
A propósito da sua "leve deficiência de boro", aqui lhe deixo mais uma página do "caderno do agrónomo".
FOME OCULTA
Passou-se isto num tempo em que as plantas andavam e falavam. Eram duas plantas que já há muito se não viam,coisas que acontecem a quem tem a sua vida. Uma, era a aveia,a outra,a cevada. Eram também comadres.
Ai comadre,dizia a aveia,tenho andado muito mal. Não sabia o que tinha. Eu dormia,eu descansava,eu comia,mas não me sentia nada bem. Era um mal estar,que não o queria para a comadre.Um dia,não podendo mais,fui ao médico.
E sabe o que ele me disse? Que o que eu tinha era fome. Fome,eu? Mas,doutor,podemos ter muitas necessidades,mas lá em casa não se passa fome,graças a Deus. Mas o certo é que a senhora tem mesmo fome. Não dá é por ela. É uma fome oculta. Que coisa tão esquisita. Pode explicar-me? Com todo o gosto,aliás,é a minha obrigação.
Sabe,a nossa comida tem de ser muito variada,o que quer dizer que temos de comer várias coisas. E cada coisa tem a sua quantidade indispensável. E na comida da senhora há uma coisa que está entrando em quantidade insuficiente.
E eu,comadre,de boca aberta. Então,doutor,o que é que tenho de fazer? E ele lá me passou uma receita,recomendando-me que eu cumprisse o que lá ia. É o que tenho feito há já uns dias. Pois estou a passar muito melhor,fique a comadre sabendo. O médico disse que a cura completa ia levar o seu tempo. É o que eu espero,pois como andei,aquilo não era viver.
Esperando que o consumo de frutas lhe esteja a eliminar alguma fome oculta,mais um abraço,Ítalo.
Caro Manuel, obrigado por seus dois comentários, como sempre relevantes. Até pensei também nas nuances um tanto místicas e míticas da maçã, mas resolvi ficar só com a Agronomia. Obrigado por dividir conosco mais este belo texto de seu caderno do agrônomo. Cara Clotilde, obrigado pelo elogio, foi um texto feito um pouco ao correr da pena (do teclado?), realmente "surpreendi-me" pensando naquilo e pensei que podia dar um post, que bom que você gostou como crônica, embora saiba que há ainda muito a melhorar no estilo. Igor, gostei que você tenha acrescentado mais esta possibilidade quando pensar em maçãs, estamos em ótima companhia então, Newton e Einstein, pena que os agrônomos não sejam tão conhecidos. Obrigado a todos pelos comentários.
Eu gosto mais da maçã Gala! hehe
Mas seria bem interessante vc contar pra gente a adaptacao dessas espécies exóticas aqui no Brasil!
Caro Ítalo
Animado pela sua amável aceitação das páginas do caderno,
aqui fica mais uma,ainda relacionada com deficiências. Desta
vez,é um caso concreto. Pode ser que tenha alguma utilidade.
UM CASO DE CARÊNCIA DE MANGANÉSIO EM VIDEIRAS
Muitos anos atrás,numa região de vinha que tinha por centro o Cartaxo e se estendia do Vale de Santarém à Cruz do Campo,alguém que se detivesse a observar as videiras na época de vegetação, em certas manchas dessa zona,verificaria,com estranheza,o colorido anormal que as parras apresentavam. A contrastar com o verde costumado,surgia ali um aspecto inteiramente novo. A cor verde mantinha-se junto às nervuras,mas os espaços entre elas tingiam-se de amarelo,a formar como que verdadeiros meandros.
Estas manchas localizavam-se nas bermas de algumas estradas,tendo profundidades variáveis,indo nuns locais mais para o interior,noutros limitando-se às primeiras filas. Eram,no entanto,quase sempre contínuas. Tanto as castas brancas como as tintas mostravam os mesmos sintomas,embora as brancas os apresentassem com mais nitidez,a ponto de num povoamento,mesmo à distância,se distinguirem com facilidade umas das outras. O amarelo nas castas brancas era mais claro,de aspecto leitoso,sobressaindo melhor no fundo verde do resto da folha.
A alteração do pigmento começava pelas folhas mais idosas,subindo,a pouco e pouco,para as da extremidade,que,em certas condições,eram atingidas quase em simultêneo com as mais novas. Era a margem que,primeiro,se pintava de amarelo,caminhando a clorose progressivamente para o interior,apenas respeitando a vizinhança das nervuras.
Além da videiras,outras plantas,herbáceas e lenhosas,exibiam sintomas mais ou menos semelhantes. Era o caso das silvas e dos marmeleiros dos valados,dos pessegueiros,dos damasqueiros,das pereiras,das macieiras,das ameixeiras,das laranjeiras.
Em tempos,tinha-se concluído não se estar em presença de uma doença de origem parasitária. A explicação do mal poderia ser encontrada,assim, na nutrição. E foi nesse sentido que se avançou,acabando por se dar com o causador,o manganésio,que não estava a ser absorvido na quantidade necessária.
O solo,aparentemente,tinha,porém,manganésio para dar e vender,assim se pode dizer. Só que estava muito pouco disponível. Coisas que acontecem quando sucedem outras coisas. E o que tinha acontecido? Anos atrás, as estradas eram de macadame calcário. A passagem de carros e carretas levantava nuvens de poeira calcária,que o vento dominante se encarregava de ir depositando,sobretudo, numa das bermas. E calcário a mais faz das suas e,neste caso particular,levou o manganésio a um estado muito menos solúvel. Porque tirar o calcário era tarefa a pôr de lado,só havia duas saídas. Ou arrancar as videiras ou então alimentá-las por meio de pulverizações de uma solução de um sal de manganésio.
Esperando não estar a abusar,do seu espaço e da sua paciência,mais uma vez,os meus muitos agradecimentos.
Não há nenhum abuso, caro Manuel, pelo contrário, gostei muitíssimo de seu texto, deu-me até uma idéia para um post em breve. Coincidentemente, ainda hoje conversava com a Cláudia Chow sobre deficiências nutricionais em fruteiras e sobre o uso do calcário, que neste caso era antes solução que problema. Mas há algum tempo visitei um pomar de laranjas com uma visível deficiência em ferro. Fiquei intrigado, porque até onde sabia o solo sob o pomar tinha ferro disponível em abundância. Indagando o agricultor sobre o histórico da plantação, descobri a causa: um colega agrônomo, inexperiente ou descuidado, recomendara uma dose excessiva de calcário a ser aplicada nas covas, comprometendo a produção daquele pomar. Como dizem por aí, os erros dos médicos a terra esconde, mas os erros dos agrônomos, a terra mostra. Novamente, muito obrigado caro amigo Manuel e grande abraço.
Ítalo,
Este é o meu primeiro comentário no blog e fui induzido a escrever depois da boa leitura do seu texto.
Sou agrônomo e leitor do blog e ao ler a crônica da maçã li um texto que descreveu algo muito semelhante que aconteceu comigo. Um devaneio da ciência agronômica imbutida na melhoria genética das frutas. O objeto do devaneio, no meu caso, foi o epicarpo dos frutos (a famosa casca do fruto)Manga e kiwi que são exóticas como a maçã!
Confesso, aqui entre nós, que sou um devorador das frutas e alguns dias atrás quando as saboreava a única sobra foram as cascas. Fiquei matutando como chegaram a desenvolver as frutas de tão fácil descascamento!
Caro Rodrigo,
Bom saber que há mais um agrônomo entre nossos leitores e que tenha gostado do que encontrou por aqui. De fato, um de nossos objetivos é fazer com que as pessoas tenham um olhar um pouco mais "agronômico" sobre os alimentos, a agricultura, o meio ambiente. Fazê-las conscientes que até a facilidade com que retiram a casca de um fruto foi levada em consideração pelos melhoristas responsáveis pela seleção e desenvolvimento das variedades modernas. Mostrá-las que a agricultura é infinitamente mais do que simples aplicação de agrotóxicos, como parte da mídia faz tanta questão de frisar. Esperemos que pelo menos parte dessa grandeza do empreendimento humano chamado agricultura seja compreendida e que mais pessoas possam ter devaneios como os nossos quando saborearem sua comida. Obrigado pelos comentários e continue lendo o Geófagos.
Há um certo marshmallianismo nesse escrito.