“Um subdesenvolvido erudito”

Goethe, por meio do Poeta, no “Prólogo no Palco” de seu Fausto, já reclamava que o gosto do público piorava e o teatro se rendia às necessidades comerciais. Já então, ou desde muito antes, a Alta Cultura perdia espaço para a cultura do entretenimento, substituição levada ao extremo em nossos tempos, em que um Pedro Bial posa de intelectualoide. Imaginar que um intelectual pudesse apresentar um reality show é comparável a se pensar um ativista dos direitos animais narrando com entusiasmo uma briga de galos. Mas é assim a manipulação da realidade da Globo.

Assisti ali agora uma entrevista em que esse Genetton Moraes Neto tenta conversar com o cantor paraibano Geraldo Vandré e achei o negócio todo constrangedor, embora eu tenha terminado de assistir com uma boa impressão do artista. O repórter quer o tempo todo arrancar respostas “simples e diretas”, mastigadinhas e pré-digeridas, de Vandré, que se esquiva habilmente. O cantor, na verdade, consegue ao longo de toda entrevista evitar as tentativas de espetacularização de sua pessoa que o repórter faz, suas respostas, quase inaudíveis boa parte do tempo, são sutis, lacônicas e reticentes, mas não ambíguas. Perguntado por que não canta mais, ele é bem claro – porque não há espaço mais para uma arte de qualidade, há espaço e desejo de consumo de entretenimento, de “cultura” massificada e sem significado e, como ele mesmo diz num trecho memorável, “ele não faz qualquer coisa”. Vandré me pareceu infinitamente decepcionado com o rumo do mundo, mas seu espírito não está anestesiado.

Eu penso entender a ânsia da Globo em entrevistar Geraldo Vandré. Há um momento na entrevista em que o obtuso repórter tenta constrangedoramente arrancar de Vandré um reconhecimento de decepção de que sua canção Caminhando tenha sido transformada em canção de protesto, mas não consegue, o artista não é tolo. A tentativa foi bem clara de anular, neutralizar como insignificante um momento de verdadeira cidadania, de  transcendência, embora fugaz, da História Brasileira, da resistência à podre ditadura, à qual a Globo verdadeiramente não se opôs. Mas não se trata de simplesmente diminuir um fato histórico.

A própria entrevista e a malfadada tentativa de espetacularização de um erudito subversivo faz parte de um movimento mais amplo – a neutralização da resistência à indústria de entretenimento excremental. Não é outra coisa o que se faz ao se expor constantemente a figura do escritor paraibano Ariano Suassuna ao público, ao se vulgarizar de forma rasa sua obra, para que o público não identifique Suassuna como o crítico ferrenho da massificação cultural que a própria Globo promove, mas como “o autor daquela comédia que passou na Globo”.  É uma manobra terrivelmente sutil, ardilosa. Suassuna é uma figura carismática, é um homem do espetáculo, da aula-espetáculo, que a Globo não mostra, é uma imagem que vende, certamente contra sua vontade. Este outro paraibano Vandré recusa-se até mesmo a isso: ao invés de uma peça cômica, mais ao gosto do público, anuncia que está produzindo um poema sinfônico e fecha magistralmente, “não há nada mais subversivo que um subdesenvolvido erudito”.

Discussão - 3 comentários

  1. Ale disse:

    Muito bom!!!! Gostaria de ver a citada entrevista... Abs

  2. [...] leiam este trecho do excelente texto de Ítalo Guedes, meu colega de Scienceblogs, sobre a recente “cultura” preferida: Perguntado por que [...]

  3. Rodrigo Rogovski disse:

    Olá Ale, a entrevista encontra-se no YouTube. Caso ainda não tenha visto tá aí o link.

    http://www.youtube.com/watch?v=TYextKTVePY

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